Maria Gladys no filme inacabado a "Última Odalisca" com a banda do Ion Muniz, Edisom Machado, joão Donato, Noveli, entre uns e outros...
ÚNICO TELEPÁTICO CINTILANTE
Fábio Carvalho
Aquele momento. O avesso do
tropeço, como disse o poeta Gilberto de Abreu. Reluzem no escuro do corredor em
curvas suas pernas brancas enquanto caminhavam na minha frente, guiando como
faróis a me iluminar. Uma mulher a cantar. Uma cidade a cantar, a sorrir, a
viver, lá dentro a crisálida virou uma colorida borboleta embaixo da saia
aurora boreal, vi como pela primeira vez. O olfato denuncia imediatamente o
achado lugar passado e não uma emoção relacionada a este novo lugar
desfigurado, sem identidade e com uma áurea de descoberta. Chique – Choque.
Após long time sem esse prazer, sorvi ostras frescas no Pecatore, oferecidas
pelo meu amigo ator cineasta, prestes ao nosso filme defronte a linha do trem
na Rua Sapucaí. De novo a mesma sensação perdida. Muito bom. Minha voz voltou.
A gata branca se aquietou exatamente debaixo do criado mudo como um bibelô,
ouvindo o trompete que do laptop tocava num som aveludado, graças à minha
trabalhosa equalização. Sem falar do piano. Rumo ao Marrocos, era a manchete do
jornal que embrulhou o presente que o Rogério Mancha me levou naquele
modorrento fim de tarde de domingo. À hora da Ave Maria, quando o céu azul anil
se perdeu no lusco fusco infalível, aumentando o friozinho gelado que nos fazia
acreditar que tudo poderia melhorar esquecendo a tragédia que o conhecimento
traduz. Calor dos trópicos. É tempo de se pensar. A partir de amanhã, amanhã é
Segunda Feira então a verdade que ninguém vê pode estar visível. Duvido
acreditando na dúvida. De novo a esperança é cega. Tão redonda a lua. Também
ouvindo essa música.
O Anjo Exterminador. Agora
vinte e duas e quarenta completei o ciclo dos Amantes Passageiros driblei todos
os comichões que detestam os bons filmes ruins sem enfrentar o medo das
próprias mazelas, que não foram criadas pelos documentários e sim pela ficção.
Vamos aceitar a ficção. O que seria do cinema apesar de tudo. Nem sei se
exatamente é uma pergunta. Por onde anda a interrogação? Belíssima aquela atriz
que vem de bicicleta e depois chega ao aeroporto, quem seria ela? Para onde ela
foi após aquela cena? Saio a procurar descobrir. Hoje só volto amanhã.
Finalmente uma afirmação. Aí fui até a sala e vi na televisão, em alto e bom
som num plano mal enquadrado, aquela fala que parecia brincadeira. Só para
ajudar o ritmo. Foi uma confusão de acasos que acarretou em mais um indevido
cigarro queimado. Nossa época é sem favor algum a pior das épocas, o Aranha
disse. Gostei dessas palavras. Um filme não é nunca relatório sobre a vida. Um
filme é um sonho. Um sonho pode ser vulgar, trivial e informe; é talvez um
pesadelo. Mas um sonho não é nunca uma mentira. Afirmou mais uma vez Orson
Welles, com sua extraordinária voz de trovão. Nem me lembro quando foi à última
vez que me mantive enredado nas montanhas por tanto tempo, ainda não sei se tem
sido bom ou não, mas compreendo que vem sendo necessário e casual. A qualquer
momento tudo pode mudar, ademais tenho que trabalhar, seduzir o sistema para
bancar as contas, ir ao mercado com minha sacola virtual de inutilidades. Pois
bem, essa é apenas uma das missões. As que me interessam são outras, bem mais
complexas. Tenho que começar tudo de novo, me mudar para dentro da maneira que
sempre fui. Cambiar. Encontrar a dialética. Quando trabalhei com o grande
cineasta Walter Lima Junior, tive o privilégio de seus ensinamentos que muito
me acrescentaram e me alimentaram a desenvolver uma visão particular. Ouvi dele
várias vezes que o experimentalismo deve ser parte de um processo e desaguar em
trabalhos mais claros e maduros, não ser eternamente experimental, como
acontecia com os trabalhos de muitos realizadores à nossa volta. Até o meu
próprio. De certa forma ele renegava o que para mim é seu melhor filme: “A Lira
do Delírio”. É certo que várias questões pessoais envolvidas com a difícil finalização
desse filme, lhe causam desconforto ao analisar sua obra. Mas ainda segundo
ele, conseguindo um distanciamento de análise, só a partir de “Inocência”, é
que começou a chegar perto do cinema de linguagem clássica que almejava. Os
títulos são indicativos. Não acredita na experimentação como forma de cinema.
Ao contrário de muitos que pensam que você faz o mesmo filme sempre, como
Fellini dizia, Walter defende que o cineasta tem que se impor sempre um novo
desafio, galgar novos graus de trabalho dentro da estrutura compartimentada da
industria cinematográfica tão deformadora e inalcançável para a produção
nacional. Hoje, acredito que esta posição, acarreta também uma espécie de
condenação muito própria e útil ao falso mercado que nos domina. Evidente que
todo mundo deseja crescer naquilo que faz, e não simplesmente ficar nadando
contra a maré, mas acho que por vezes a rebeldia como forma de produção pode
impulsionar outras possibilidades de crescimento com mais liberdade. Como
sabemos “A Lira do Delírio” é um grande clássico do cinema brasileiro, e
experimental, como outros grandes filmes desse cineasta com trajetória tão
marcante. Quero crer que todo cinema brasileiro é de alguma maneira
experimental, apesar do desgaste da palavra. Palavras existem para serem
desgastadas. Júlio Bressane termina seu texto “O experimental no cinema
nacional” com a seguinte frase: Noto que nosso cinema ou é experimental ou não
é coisa alguma! De minha parte, a realização do novo longa metragem que agora
começo a montar, de maneira completamente atonal, me fez sentir voejando. Vamos
a time-line. Nem no meu começo nessa matéria, fiz um filme tão desprendido de
qualquer aparato técnico, humano e financeiro. A coisa fluiu com tanta
facilidade e prazer que me descobri em êxtase. Já tinha experimentado esta
sensação em alguns momentos durante a feitura de outros filmes, mas nunca
durante o filme todo, como nesse. Posso dizer também que isto não significa
nada além do mistério que desejo perscrutar. Uma conversa com meu umbigo. Cinema
Nunca Mais é o nome do filme longo que acabei de terminar, feito também
bastante livremente, mas mesmo assim ainda escrevi um roteiro, tive alguns
apoios financeiros e participação efetiva de várias pessoas de uma maneira mais
ou menos profissional que garantiram um formato próximo do já decodificado,
naturalmente manjado no universo cinema. Nada contra, pois é meu metier, também
meu ofício, meu ganha pão e sem contestações onde trabalho bem, aqui noutro
aspecto, penso exatamente no meio como expressão. Vamos lá, “Limite” o filme
insuperável. O tempo é uma coisa ilusória, não existe, diz Mário Peixoto. O
Aranha responde: o obstáculo passa a ser também um incentivo a arte, a criação.
Então fiz “Jimi Hendrix e a Fonoaudióloga” assim: sem roteiro, sem dinheiro,
sem tema, sem luz artificial, sem assistentes, sem equipe, sem desenho de som,
sem técnico de som, sem microfone, sem consultor, sem coletivo, sem produtor,
sem constipação, sem permissão, sem automação, sem falsificação, sem lei, sem
comichão, sem curadoria, sem certificado, sem aprovação, sem perseguição, sem
autorização, sem organização, sem obediência, sem conjuração, sem maledicência,
sem retenção, sem coadjuvantes, sem afetação, sem discriminação, sem ensaio,
sem bajulação, sem enrolação, sem indisposição, sem insatisfação, sem colisão,
sem vergonha, sem ingratidão, sem continuidade, sem razão social nem
contrapartida. Esqueci outras palavras que queria colocar aqui, mas essas já
bastam para esse joguinho da amarelinha. Jean-Luc Godard perguntou a Fritz
Lang:
- Há algo que me espanta em
um realizador mais velho como o senhor, no Abel Gance ou no Renoir, que
conhecemos, é seu incrível sentido de juventude. Estar sempre interessado nas
coisas, na altura que nascem, como se acontecessem pela primeira vez. Em novos
problemas. O que acha?
- Ouça, acho que a nossa
profissão, a arte do cinema, não existe apenas para este século. Acho que é uma
arte para os jovens.
Sinto que fiz esse novo filme
com a juventude que incide em mim, ela me deu o êxtase. Os enganos bem
aquecidos. Fiz também com uma camerazinha Mini DV emprestada, com atores
convidados ao acaso dos encontros, com simpatizantes, com situações inventadas
na hora, com cenas que sobraram de outros filmes, com locações não definidas,
incorporando os acontecimentos do momento, assim como: manifestações de rua por
um Brasil melhor; um Ópera Galo na Copa Libertadores e tudo mais que podia
desviar minha atenção. A mensagem é o filme, a sua projeção. Jéferson Airplane
ao vivo em agosto e Takatanga aqui no lap-top. Bem, agora só me resta finalizar
tudo que estou falando aos ventos sem morder a língua. Temos que pegar esse
avião, enfim vamos à suspensão.
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