ABAIXO TEXTOS - CRÍTICAS - ENSAIOS - CONTOS - ROTEIROS CURTOS - REFLEXÕES - FOTOS - DESENHOS - PINTURAS - NOTÍCIAS

Translate

domingo, 27 de janeiro de 2013

UM PONTO UM CONTO



PRISIONEIROS DA ARTE
José Sette

Sobre fundo negro algumas explosões de luzes e imagens. Cenas de tiros trocados por policiais e marginais na noite escura dos morros; os clarões provocados pelo movimento nervoso das luzes de várias lanternas; o fogo mortal das metralhas nos detalhes de uma guerra cruel; os rostos assustados da equipe de vídeo que trabalhava no local. Acuado entre policiais e bandidos, a repórter registra em sua câmera de vídeo às muitas cenas de violência e de terror que ali ocorrem. Dia amanhecendo, o sol entre as pedras históricas, a serra e as montanhas que o circundam assoberbam o oceano atlântico. Do alto dos quadros expostos da arte brasileira se podem observar os interiores, os detalhes dos ateliês dos artistas plásticos escolhidos para representarem os seus personagens nesta ficção, com suas cores, objetos, pincéis e quadros multicoloridos. Detalhes do interior das prisões onde estão detidos os presos, todos adolescentes. Campo de concentração. Muros do Presídio. Uma repórter de tevê está de frente dos altos muros de uma penitenciária: - Este é o retrato cruel do nosso sistema penal. Um fotógrafo entusiasmado: - Como, com encanto e arte, os nossos artistas e intelectuais podem ajudar aos jovens excluídos? – Como menores marginalizados, mal formados socialmente, sem nenhum tipo de informação cultural, desconhecendo por total falta de experiência existencial e cultural o mundo em que vive, podem tornar-se prisioneiros de alguma arte e através dela se libertarem?... Ela: - Este é o desafio que queremos fazer a todos vocês. Ele: - Este vai ser, sem dúvida, o nosso melhor programa! Acertar na mosca com cheiro do sucesso. Olhando o relógio: - Você está atrasada para o encontro! Ela sai sem se despedir e arranca em disparada. Ele entra no gabinete da empresa beijando a mão da senhora de cabelos brancos que está sentada atras de uma mesa cheia de telefones: - Como vamos todos? A senhorita está cada vez mais bonita... Passagem de tempo. Ele está sentado atrás de uma grande mesa onde se encontra três objetos: um telefone, uma câmera de vídeo, um livro de autoajuda.  Fumando um charuto ele escreve com uma velha caneta sobre um papel em branco. Frases soltas. Assim ele permanecendo distraído, mesmo quando fica à sua frente a jovem repórter. Ela então retira uma pasta e coloca o projeto sobre a mesa. Ele: - Fale-me destes artistas que se envolveram no seu novo projeto. Ela: - A proposta que eu tenho para esse grupo de artistas é colocar esses jovens excluídos da sociedade em contato com a arte brasileira, partindo-se do contato com o papel e as tintas - às artes plásticas - como parte de uma cultura que se pretende livre, achegando-se às palavras, desenhadas através do trabalho secular da formação dos textos tipográficos e assim estimulando-se parte do intelecto ainda em formação, a compreender, com encanto e arte, à sua época e o seu mundo. Ele: - Mas você não acha que já saímos a muito do século de Gutenberg e seus tipos móveis? Já saímos da renascença, do modernismo, do abstrato e vivemos um novo mundo, o mundo da eletrônica, da física quântica, do computador... É preciso ser prático e produtivo no mundo de hoje. Ela: - Você quer me pegar uma troça? Não vim até aqui para te propor um tratado acadêmico sobre a história da comunicação. Trabalho com reportagens perigosas, investigativas, você se esqueceu? Qual é o nosso momento histórico? Ou se é o novo ou se é o velho, pouco me importa. As injustiças continuam as mesmas e assim só conversando nós caminhamos para trás, para o problema, logo quando eu venho lhe falar do futuro e das soluções!  Ele: - Tudo bem! Gosto de suas idéias, das que eu li em seu projeto. Mas não vá comprometer nossa emissora com seus discursos panfletários. Lembre-se que o mundo, no despertar desse novo milênio, é ainda regido pelas leis da livre concorrência. Ela: - Acredite! Você não vai se arrepender, o programa é bom e será um sucesso... E não é dos aplausos dos miseráveis que se constitui a arte do fazer e do receber fortunas? Ele: - É realmente muito interessante essa sua idéia de envolver os artistas em seu projeto. Ela: - O programa será construído nas conversas diária, lúdica, com os criadores, os artistas e seus sonhos abolicionistas, libertários para com os meninos infratores. Então estando no ateliê, Ela pergunta a todo país: - Qual é o seu nome e o que representa para você viver, criar e conviver com as desigualdades sociais de uma grande cidade brasileira? Não obtém nenhuma resposta. Os meninos continuam presos atrás das grades. Ela então pergunta ao menino de rosto marcado pela tristeza: - Qual é o seu nome e por que você está preso? Detalhes das máquinas de impressão e da tipografia. Ela continua: - Qual é a cor, e qual é o som que você mais gosta? Você pode reproduzi-los? E depois pergunta para os psicólogos que trabalham com os adolescentes:- Como o senhor vê a situação dos menores presos à margem da sociedade? Não haveria outra maneira de reintegrá-lo socialmente? O menino então chora e conta a história de Hosana Frederico da Cruz, um menino brasileiro pobre que vive e mora na rua das grandes cidades. Todo mundo chora e roga a Deus para retirar de Hosana esse enorme flagelo. As máquinas de impressão começam a trabalhar. Cenas externas que documentam a narrativa do empregado. O Papel é impresso com tintas fortes. A volta dos meninos para a prisão. A prisão amontoada. As chaves. As grades. As camas. As celas. Ele para Ela: - A desumanização do mundo moderno é real. O sistema nega esta constatação. Os homens negam a sua desumanização, pois se dizem vocacionados a fazer o bem. Vocação negada, mas também afirmada na própria negação. Vocação negada na injustiça, na exploração, na opressão, na violência dos opressores. Mas afirmada nos anseios de liberdade, de justiça, de luta dos oprimidos pela recuperação de sua humanidade roubada. Os Prédios Públicos. O Juizado do menor. Os representantes do estado. Os Secretários. O Delegado de plantão e a polícia de rua. Os promotores, etc. Ela pergunta para um Juiz: - Senhor Juiz, quando o senhor julga um menor, em quais critérios, o passado da criança, o presente ou o futuro, o senhor se baseia para pronunciar a sentença? O trabalho humilde na agricultura de uma família pobre. A periferia da cidade e seus habitantes. Os catadores de lixo. Os meninos que pedem esmola com suas famílias. Os menores trabalhando na rua das grandes cidades. O parque gráfico frequentado pelos menores sobre a supervisão dos artistas ali presente. A repórter pergunta para os artistas: - Como está à relação de vocês com estas crianças, cite o nome de algumas delas e nos diga como você a vê? Cenas de mendicâncias pelas ruas. Detalhes de pessoas nos carros parados numa esquina e o medo estampado no rosto dos seus passageiros quando se aproxima deles uma criança, uma família esmolando. A senhora abre o vidro elétrico do seu carro último tipo e dá uma esmola a uma criança. A repórter: - O oprimido quer de volta a sua humanidade roubada pelo opressor e por isso, cedo ou tarde, irá à luta contra quem o fez desumano. Assim é que o poder dos opressores, quando se pretende amenizar ante a revolta dos oprimidos, quase sempre se expressa em generosidade passageira. Milagres econômicos, reconhecimento, empregos, tudo vai melhorar! Eles têm a necessidade, para que sua generosidade continue tendo oportunidade de realizar-se, da permanência da injustiça social. A ordem injusta é a fonte geradora, permanente, desta falsa generosidade que se nutre da morte, do desalento e da miséria... É como disse São Gregório: - “Talvez dês esmolas... Mas, de onde as tiras, senão de suas rapinas cruéis? Se o pobre soubesse de onde vem o teu óbolo, ele o recusaria. Ele te diria: não sacies a minha sede com as lágrimas de meus irmãos. De que vale consolar um pobre, se tu fazes outros cem?” Crianças pobres vendo aparelhos de televisão nas vitrinas da cidade. Gangue de moleques de rua fumando craque ou cheirando cola. Pequenos assaltos (criança rouba na rua a bolsa de uma senhora). Um assalto seguido de assassinato. Sangue, muito sangue no asfalto. Ela então pergunta para um juiz sobre os problemas carcerários do país: - Porque a cada dia aumenta a violência e aumenta a utilização de menores em práticas criminosas? Os menores que estão nas ruas e quando não são presos, cometendo pequenos delitos, são barbaramente sacrificados, assassinados. Quando são presos, busca-se nas prisões a solução para um problema que é social, cultural e não penal, pois não é a violência familiar, a miséria, a fome e a total ausência de garantia mínima de dignidade humana que leva esses menores às ruas, às drogas e à criminalidade.  Na gráfica alguns menores infratores trabalham com o desenho, com a gravura, descobrem as cores e a prática de impressão. Manipulam os tipos, construindo frases e pensamentos, vendo assim de pronto o resultado dos seus impulsos artístico impresso nas mais diversas formas. A repórter pergunta para os menores aprendizes: - Conte para nós o que você está achando de fazer isso aqui... Você está fazendo arte? Todos os menores falam sobre o que estão fazendo. A arte e o ser artistas os orientam. Ele, levantando-se de uma cadeira: - São muitas as questões que se sucedem! Desenvolverão estes jovens, um novo pensamento, uma nova moral, uma nova busca existencial, mais equilibrada e mais saudável? Como poderá influenciar o ser, o saber, o ver, a informação paradoxal que você quer passar, nesta nova realidade, numa mudança de atitude social desses meninos? Ela: - Só o tempo nos dirá. Chega de criança marginal, sem lei e sem alma! É com certeza isso que eu pretendo expor, estudar, concluir, na realização desse retrato cruel, desse retrato vivo de um Brasil já há muito esquecido, onde ainda podemos libertar um prisioneiro do sistema penal e transformá-lo tornando-o com um simples decreto um “Prisioneiro da Arte”. Ele: - Evidentemente, todos conhecem bastante bem a lei e eles estarão sempre dispostos a cumpri-la, à risca, mas você sabe que tudo pode quando se trata de salvaguardar os direitos dos poderosos o melhor é construir mais presídios... Já com relação aos pobres, esse é outro assunto, não é mesmo? Ela:- Já se constatou que a construção de novos presídios, até hoje não deu solução a outro grande problema: a superlotação, o que quer dizer promiscuidade, violência e corrupção. Quanto mais presídios, mais presos, mais superlotação, mais violência e mais corrupção. Precisamos modificar as leis e suas punições, mediante a aplicação real das penas sem prisão - as penas alternativas - as crianças e os adolescentes são os que mais sofrem este tratamento desumano, com a violação flagrante da Convenção Americana de Direitos Humanos, quando a internação é, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, o último recurso que se deve lançar mão. Ele: - O sistema penal, como método para prevenir o crime e ressocializar o criminoso, não fracassou em diversos países e em diversas épocas dos países civilizados. Ela: - Jamais se viu alguém sair de um cárcere melhor do que quando entrou, provando que o encarceramento do homem não o melhora, nem o aperfeiçoa, nem corrige a falha cometida, nem o limpa de culpa para um retorno à vida da sociedade que ele perturbou com sua conduta delituosa. Ele: - O sistema penal proclama os benefícios do efeito dissuasivo da punição, subscrevendo-se sob a política soberana do medo. Ela: - O sistema quando cria e reforça, de tempo em tempo, as desigualdades sociais, conserva a estrutura vertical de dominação e de poder pelo medo e isso não é justo e nós sabemos que só uma revolução social anticapitalista, futurista, anárquica, libertária, que seja feita pela e para a educação cultural, pode definitivamente tudo isso transformar.


Nenhum comentário: