PRISIONEIROS DA ARTE
José Sette
Sobre fundo negro algumas
explosões de luzes e imagens. Cenas de tiros trocados por policiais e marginais
na noite escura dos morros; os clarões provocados pelo movimento nervoso das
luzes de várias lanternas; o fogo mortal das metralhas nos detalhes de uma
guerra cruel; os rostos assustados da equipe de vídeo que trabalhava no local.
Acuado entre policiais e bandidos, a repórter registra em sua câmera de vídeo
às muitas cenas de violência e de terror que ali ocorrem. Dia amanhecendo, o
sol entre as pedras históricas, a serra e as montanhas que o circundam assoberbam
o oceano atlântico. Do alto dos quadros expostos da arte brasileira se podem
observar os interiores, os detalhes dos ateliês dos artistas plásticos
escolhidos para representarem os seus personagens nesta ficção, com suas cores,
objetos, pincéis e quadros multicoloridos. Detalhes do interior das prisões
onde estão detidos os presos, todos adolescentes. Campo de concentração. Muros
do Presídio. Uma repórter de tevê está de frente dos altos muros de uma
penitenciária: - Este é o retrato cruel do nosso sistema penal. Um fotógrafo
entusiasmado: - Como, com encanto e arte, os nossos artistas e intelectuais
podem ajudar aos jovens excluídos? – Como menores marginalizados, mal formados
socialmente, sem nenhum tipo de informação cultural, desconhecendo por total
falta de experiência existencial e cultural o mundo em que vive, podem tornar-se
prisioneiros de alguma arte e através dela se libertarem?... Ela: - Este é o
desafio que queremos fazer a todos vocês. Ele: - Este vai ser, sem dúvida, o
nosso melhor programa! Acertar na mosca com cheiro do sucesso. Olhando o
relógio: - Você está atrasada para o encontro! Ela sai sem se despedir e
arranca em disparada. Ele entra no gabinete da empresa beijando a mão da
senhora de cabelos brancos que está sentada atras de uma mesa cheia de
telefones: - Como vamos todos? A senhorita está cada vez mais bonita...
Passagem de tempo. Ele está sentado atrás de uma grande mesa onde se encontra três
objetos: um telefone, uma câmera de vídeo, um livro de autoajuda. Fumando um charuto ele escreve com uma velha caneta
sobre um papel em branco. Frases soltas. Assim ele permanecendo distraído, mesmo
quando fica à sua frente a jovem repórter. Ela então retira uma pasta e coloca o
projeto sobre a mesa. Ele: - Fale-me destes artistas que se envolveram no seu
novo projeto. Ela: - A proposta que eu tenho para esse grupo de artistas é
colocar esses jovens excluídos da sociedade em contato com a arte brasileira,
partindo-se do contato com o papel e as tintas - às artes plásticas - como
parte de uma cultura que se pretende livre, achegando-se às palavras,
desenhadas através do trabalho secular da formação dos textos tipográficos e
assim estimulando-se parte do intelecto ainda em formação, a compreender, com
encanto e arte, à sua época e o seu mundo. Ele: - Mas você não acha que já
saímos a muito do século de Gutenberg e seus tipos móveis? Já saímos da
renascença, do modernismo, do abstrato e vivemos um novo mundo, o mundo da
eletrônica, da física quântica, do computador... É preciso ser prático e
produtivo no mundo de hoje. Ela: - Você quer me pegar uma troça? Não vim até
aqui para te propor um tratado acadêmico sobre a história da comunicação.
Trabalho com reportagens perigosas, investigativas, você se esqueceu? Qual é o
nosso momento histórico? Ou se é o novo ou se é o velho, pouco me importa. As
injustiças continuam as mesmas e assim só conversando nós caminhamos para trás,
para o problema, logo quando eu venho lhe falar do futuro e das soluções! Ele: - Tudo bem! Gosto de suas idéias, das
que eu li em seu projeto. Mas não vá comprometer nossa emissora com seus discursos
panfletários. Lembre-se que o mundo, no despertar desse novo milênio, é ainda
regido pelas leis da livre concorrência. Ela: - Acredite! Você não vai se
arrepender, o programa é bom e será um sucesso... E não é dos aplausos dos
miseráveis que se constitui a arte do fazer e do receber fortunas? Ele: - É
realmente muito interessante essa sua idéia de envolver os artistas em seu
projeto. Ela: - O programa será construído nas conversas diária, lúdica, com os
criadores, os artistas e seus sonhos abolicionistas, libertários para com os meninos
infratores. Então estando no ateliê, Ela pergunta a todo país: - Qual é o seu
nome e o que representa para você viver, criar e conviver com as desigualdades
sociais de uma grande cidade brasileira? Não obtém nenhuma resposta. Os meninos
continuam presos atrás das grades. Ela então pergunta ao menino de rosto
marcado pela tristeza: - Qual é o seu nome e por que você está preso? Detalhes
das máquinas de impressão e da tipografia. Ela continua: - Qual é a cor, e qual
é o som que você mais gosta? Você pode reproduzi-los? E depois pergunta para os
psicólogos que trabalham com os adolescentes:- Como o senhor vê a situação dos
menores presos à margem da sociedade? Não haveria outra maneira de reintegrá-lo
socialmente? O menino então chora e conta a história de Hosana Frederico da
Cruz, um menino brasileiro pobre que vive e mora na rua das grandes cidades. Todo
mundo chora e roga a Deus para retirar de Hosana esse enorme flagelo. As
máquinas de impressão começam a trabalhar. Cenas externas que documentam a
narrativa do empregado. O Papel é impresso com tintas fortes. A volta dos
meninos para a prisão. A prisão amontoada. As chaves. As grades. As camas. As
celas. Ele para Ela: - A desumanização do mundo moderno é real. O sistema nega
esta constatação. Os homens negam a sua desumanização, pois se dizem
vocacionados a fazer o bem. Vocação negada, mas também afirmada na própria
negação. Vocação negada na injustiça, na exploração, na opressão, na violência
dos opressores. Mas afirmada nos anseios de liberdade, de justiça, de luta dos
oprimidos pela recuperação de sua humanidade roubada. Os Prédios Públicos. O
Juizado do menor. Os representantes do estado. Os Secretários. O Delegado de
plantão e a polícia de rua. Os promotores, etc. Ela pergunta para um Juiz: -
Senhor Juiz, quando o senhor julga um menor, em quais critérios, o passado da
criança, o presente ou o futuro, o senhor se baseia para pronunciar a sentença?
O trabalho humilde na agricultura de uma família pobre. A periferia da cidade e
seus habitantes. Os catadores de lixo. Os meninos que pedem esmola com suas
famílias. Os menores trabalhando na rua das grandes cidades. O parque gráfico frequentado
pelos menores sobre a supervisão dos artistas ali presente. A repórter pergunta
para os artistas: - Como está à relação de vocês com estas crianças, cite o
nome de algumas delas e nos diga como você a vê? Cenas de mendicâncias pelas
ruas. Detalhes de pessoas nos carros parados numa esquina e o medo estampado no
rosto dos seus passageiros quando se aproxima deles uma criança, uma família
esmolando. A senhora abre o vidro elétrico do seu carro último tipo e dá uma
esmola a uma criança. A repórter: - O oprimido quer de volta a sua humanidade
roubada pelo opressor e por isso, cedo ou tarde, irá à luta contra quem o fez
desumano. Assim é que o poder dos opressores, quando se pretende amenizar ante
a revolta dos oprimidos, quase sempre se expressa em generosidade passageira.
Milagres econômicos, reconhecimento, empregos, tudo vai melhorar! Eles têm a
necessidade, para que sua generosidade continue tendo oportunidade de
realizar-se, da permanência da injustiça social. A ordem injusta é a fonte
geradora, permanente, desta falsa generosidade que se nutre da morte, do
desalento e da miséria... É como disse São Gregório: - “Talvez dês esmolas... Mas, de onde as tiras, senão de suas rapinas
cruéis? Se o pobre soubesse de onde vem o teu óbolo, ele o recusaria. Ele te
diria: não sacies a minha sede com as lágrimas de meus irmãos. De que vale
consolar um pobre, se tu fazes outros cem?” Crianças pobres vendo aparelhos
de televisão nas vitrinas da cidade. Gangue de moleques de rua fumando craque
ou cheirando cola. Pequenos assaltos (criança rouba na rua a bolsa de uma
senhora). Um assalto seguido de assassinato. Sangue, muito sangue no asfalto. Ela
então pergunta para um juiz sobre os problemas carcerários do país: - Porque a
cada dia aumenta a violência e aumenta a utilização de menores em práticas
criminosas? Os menores que estão nas ruas e quando não são presos, cometendo
pequenos delitos, são barbaramente sacrificados, assassinados. Quando são
presos, busca-se nas prisões a solução para um problema que é social, cultural
e não penal, pois não é a violência familiar, a miséria, a fome e a total
ausência de garantia mínima de dignidade humana que leva esses menores às ruas,
às drogas e à criminalidade. Na gráfica
alguns menores infratores trabalham com o desenho, com a gravura, descobrem as
cores e a prática de impressão. Manipulam os tipos, construindo frases e
pensamentos, vendo assim de pronto o resultado dos seus impulsos artístico
impresso nas mais diversas formas. A repórter pergunta para os menores
aprendizes: - Conte para nós o que você está achando de fazer isso aqui... Você
está fazendo arte? Todos os menores falam sobre o que estão fazendo. A arte e o
ser artistas os orientam. Ele, levantando-se de uma cadeira: - São muitas as
questões que se sucedem! Desenvolverão estes jovens, um novo pensamento, uma
nova moral, uma nova busca existencial, mais equilibrada e mais saudável? Como
poderá influenciar o ser, o saber, o ver, a informação paradoxal que você quer
passar, nesta nova realidade, numa mudança de atitude social desses meninos? Ela:
- Só o tempo nos dirá. Chega de criança marginal, sem lei e sem alma! É com
certeza isso que eu pretendo expor, estudar, concluir, na realização desse
retrato cruel, desse retrato vivo de um Brasil já há muito esquecido, onde ainda
podemos libertar um prisioneiro do sistema penal e transformá-lo tornando-o com
um simples decreto um “Prisioneiro da Arte”. Ele: - Evidentemente, todos
conhecem bastante bem a lei e eles estarão sempre dispostos a cumpri-la, à
risca, mas você sabe que tudo pode quando se trata de salvaguardar os direitos
dos poderosos o melhor é construir mais presídios... Já com relação aos pobres,
esse é outro assunto, não é mesmo? Ela:- Já se constatou que a construção de
novos presídios, até hoje não deu solução a outro grande problema: a
superlotação, o que quer dizer promiscuidade, violência e corrupção. Quanto
mais presídios, mais presos, mais superlotação, mais violência e mais
corrupção. Precisamos modificar as leis e suas punições, mediante a aplicação
real das penas sem prisão - as penas alternativas - as crianças e os
adolescentes são os que mais sofrem este tratamento desumano, com a violação
flagrante da Convenção Americana de Direitos Humanos, quando a internação é,
segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, o último recurso que se deve
lançar mão. Ele: - O sistema penal, como método para prevenir o crime e
ressocializar o criminoso, não fracassou em diversos países e em diversas
épocas dos países civilizados. Ela: - Jamais se viu alguém sair de um cárcere
melhor do que quando entrou, provando que o encarceramento do homem não o
melhora, nem o aperfeiçoa, nem corrige a falha cometida, nem o limpa de culpa
para um retorno à vida da sociedade que ele perturbou com sua conduta
delituosa. Ele: - O sistema penal proclama os benefícios do efeito dissuasivo
da punição, subscrevendo-se sob a política soberana do medo. Ela: - O sistema
quando cria e reforça, de tempo em tempo, as desigualdades sociais, conserva a
estrutura vertical de dominação e de poder pelo medo e isso não é justo e nós
sabemos que só uma revolução social anticapitalista, futurista, anárquica,
libertária, que seja feita pela e para a educação cultural, pode
definitivamente tudo isso transformar.
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