Segundo Masuda Goga, com os primeiros imigrantes,
desembarcou um bastante especial, o poeta de haicai Shuhei Uetsuka (1876-1935),
que usava o haimei (nome
literário) de Hyôkotsu. Neste haicai percebe-se o caráter
descritivo do haicaísta japonês.
A nau imigrante
chegando: vê-se lá no alto
a cascata seca.
Em Mirandópolis, SP, na Colônia Aliança. (1926) viveu o
poeta e professor Kenjiro
Sato. Ele dividia o trabalho na roça com aulas de haicai.
Cabe aqui um comentário: o
haicai é parte integrante dos programas de ensino da
educação infantil no Japão ainda
hoje.
Jardim de violetas
(deixe-nos a sós)
eu e a borboleta.
Neste haicai há a imagem reiterada da solidão como condição
para o estado de
contemplação. Reafirma-se a idéia de que a solidão é algo
bom, o contrário do que
ocorre com o imaginário brasileiro, em que a solidão é algo
triste, depressivo.
Sementes de algodão
agora são de vento
as minhas mãos.
O camponês no cultivo do algodão aparece nesse haicai, como
se praticasse tai shi.
Ainda nesse período inicial de contato com japoneses no
Brasil, acontece o
pioneirismo baiano do haicai brasileiro. É Afrânio Peixoto
(1876-1947) que arrisca uma
definição para o haicai:
Em seu livro “Trovas populares brasileiras” (1919) apresenta
o haicai: mais simples
que a nossa trova. Epigrama lírico de tercetos breves, de
cinco, sete e cinco sílabas, que
expressam emoções, imagens, comparações, sugestões,
suspiros, desejos, sonhos.
Afrânio traduz do francês alguns clássicos japoneses:
Pétala caída
Que torna de novo ao ramo:
Uma borboleta! (Moritake)
Pensei que nevava Lírios... minha branca amada
Vinha aparecendo... (Kitô)
Mas Afrânio Peixoto também produziu seus próprios haicais.
Neles aparecem traços
de religiosidade como marca da poesia de recolhimento
emotivo:
Na poça de lama
como no divino céu
também passa a lua.
As coisas humildes
têm seu encanto discreto:
o capim melado...
O haicai atinge o modernismo e se lança nos seus desejos de
quebra de regras:
Luís Aranha (1921) no poema Drogaria de éter e de sombra,
sonha que estava no
Japão, “passeava de richka e fazia haicais” e escreve:
Jogaste tua ventarola para o céu
Ela ficou presa no azul
Convertida em lua.
Pardas gotas de mel
Voando em torno de uma rosa
abelhas
Manuel Bandeira (1886-1968) define haicai como “um gênero
difícil, não pela forma
em si, mas por exigir um pouco daquele milagre da gota de
água, que é o de, em sua
exigüidade, refletir todo o universo”. Um dos pioneiros na
tradução de Bashô, exaltação
ao silêncio:
Quatro horas soaram.
Levantei-me nove vezes
Para ver a lua.
A cigarra... ouvi:
Nada revela em seu canto
Que ela vai morrer.
Fecho a minha porta.
Silencioso vou deitar-me.
Prazer de estar só...
Quimonos secando
Ao sol. Oh aquela manguinha
Da criança morta!
Oldegar Vieira – Folhas de Chá e polêmica na ABL. Perde o
prêmio de 1938 para
Cecília Meireles. Resultado duramente contestado pelo
acadêmico Fernando Magalhães.
Folhas de Chá foi publicado em 1940 com ilustrações de Anita
Malfatti – uma aula de
haicai em sua introdução de 28 páginas (os haicais
desagradam aos preguiçosos de
pensar e aos preguiçosos de sentir...), antes dos 191
haicais:
A fogueira branca
dos vaga-lumes parece
um baile de estrelas.
Oh! Velho portão...
Sobre a ferrugem floresce
uma trepadeira.
Guilherme de Almeida (paulista), e Abel Pereira (baiano)
traçam um caminho de
forma presa às rimas e à métrica. De tão cioso dessa
produção, Guilherme de Almeida
passa a dar nome a esse tipo de haicai – haicai guilhermino:
Mesmo generosa
Na vida, cai abatida
A árvore frondosa. (A P)
O cheiro bem forte
Das telhas novas nas velhas
Barcaças do Norte. (A P)
Olho a noite pela
Vidraça. Um beijo, que passa,
Acende uma estrela. (G A)
Diamante. Vidraça.
Arisca, áspera asa risca
O ar. E brilha. E passa. (G A)
O haicai também visita a produção dos marginais dos anos 70:
Fraga (publicitário gaúcho) utiliza-se do haicai para
ironizar a condição política dos
anos 70:
Imenso sossego:
carneiro dormindo
no próprio pelego.
Pela minha vista,
marcha o ganso,
a passo nazista.
Guilherme Mansur, poeta ouro-pretano, arrisca alguns haicais
que se consagraram:
primeiros ruídos da chuva
alguém remexendo
um saco de pães.
Paulo Leminski, poeta marginal paranaense, popularizou-se
como um dos grandes
haicaístas brasileiros:
Confira
tudo que respira
Conspira
Nuvens brancas
passam
em brancas nuvens
Millôr Fernandes, com sua forma irônica de textualizar,
apresenta-se como haicaísta
em suas colunas jornalísticas e os coleta e os publica em
livros:
É tudo natural:
A galinha – poedeira;
O galo – teatral.
As nuvens, meu irmão,
são leviandades
da criação
Olga Savary, grande mestra do haicai, uma das responsáveis
pela apresentação de
Bashô para os brasileiros, dá-nos também uma mostra da criação
pela sensibilidade
filosófica, de pensar escrevendo, de escrever pensando – uma
maneira nossa de produzir
contemplação:
Onde começa e acaba
estando em tudo e em nada
estar na origem: água.
O poeta cria o sonho
compensando o que lhe falta
com o muito que lhe sobra
Débora Novaes de Castro, paulistana grande divulgadora do
haicai, com promoção
de certames literários e edição de antologias importantes na
mostra do haicai brasileiro:
Maria Fumaça
um trem que apitando vem
saudade que passa...
o vento travesso
apanha e leva consigo
a folha caída Alice Ruiz, curitibana, segue o legado de
Leminsk.
Aqui uma mostra de seus haicais
sutilmente eróticos:
dentro do sono
o corpo se descobre
sem dono
teu sol
me dis-sol-vendo
até minha raiz
Aníbal Beça, amazonense, mostra que o haicai de fato é
poesia de todos os
brasileiros. Tanto ocorre no reduto nipônico do sul e do
sudeste, quanto no norte. Seus
haicais se confundem com a floresta, tão naturais que são:
Num piscar de olhos
pestanas batem as asas -
foi-se a borboleta.
Mijando escondida
recatada cascata
no lago se alivia.
J. B. Donadon-Leal, em Minas, publica Dô – caminho (1992)
pela Massao Ohno.
Cabe aqui um comentário sobre a importância de Masso Ohno na
edição e divulgação do haicai no Brasil. Grande editor e sensível para editar a
poesia que não tinha acesso às
grandes editoras nacionais.
Eu a visse agora
véu sobre os cabelos brancos
choraria um rio.
Som da lenta chuva
entoando uma canção
que rádio não toca.
Jardim & Avenida (1997) pela EDUFOP, numa mostra do
contraste
contemporâneo entre vida natural e urbanidade:
Parece haicai
a voz contida do inverno,
pupa... cedro seco.
Não mais te suportas,
pois habita teu subsolo
a fome dos trens.
Projeto aldravista de haicais. Em 2005 a Associação Aldrava
Letras e Artes lança o
livro nas sendas de bashô, quatro poetas numa única edição.
Quase! – a primeira senda do livro, de Andreia Donadon Leal
nos apresenta haicais
livres:
O sol
acendeu
o céu.
Galhos, folhas poucas,
parecem lagartas pretas:
maduras amoras.
Enquanto sol – segunda senda, de Gabriel Bicalho
apresenta-nos haicais
guilherminos e com títulos:
Indiferença
À musa inflexível
a estátua grita: onde está
tua alma sensível?
Gaivota
Gaivota a planar:
ensejos de pescar beijos na face do mar.
Prenúncio de chuva – terceira senda, de J.S. Ferreira,
apresenta-nos haicais livres,
com temas políticos:
Baobá sem folhas
sobrevive no deserto:
lição da Namíbia.
No costão de pedras
a bromélia solitária
oferece flores.
Brejinho – quarta senda, de J. B. Donadon-Leal,
apresenta-nos haicais livres,
tematizando a singeleza:
Um sol preguiçoso
tira soneca na tarde
coberto de nuvens.
Brota um capinzinho
entre asfalto e meio-fio.
Por que desistir?
Os haicais do livro “nas sendas de bashô” foram a base do
projeto “Da arte poética
à alfabetização: E. E. Dom Benevides”, Mariana – MG, com
alunos do ciclo básico de
alfabetização. O resultado desse projeto foi o de provocar
curiosidades nas crianças, a
ponto de se interessarem pela história do Japão, pela
geografia do Japão, pela
descoberta científica; por exemplo, quiseram saber o que é o
orvalho. Fizeram um
experimento de deixar uma folha à noite do lado de fora da
sala para recolhê-la de
manhã. Esses alunos viram o que é o sereno.
Pedestre em Tóquio:
a crença em almas penadas
atravessa os séculos (Tainara – 3ª série)
No céu enevoado
frio insuportável...
Gotas de orvalho. (Natanael – 3ª série)
Pela janela da sala de aula
vejo flores vermelhas e bambu.
Que bela paisagem! ( Paulo Henrique – 3ª série)
As crianças da sala de Educação Infantil desenvolveram o
projeto haicai na minha
mão, e produziram ilustrações para os haicais do livro “nas
sendas de bashô”. São
desenhos fantásticos que demonstram que elas compreenderam
mensagens nos
haicais.
As crianças do ciclo inicial de alfabetização da E. E. Dom
Benevides”, Mariana – MG
desenvolveram os seus haicais, com o espírito infantil que
deve fundamentar a
produção de haicias. Se essas crinaças não perderem esse
espírito, permanecerão
poetas.
Dinossauro Rex
tenho medo não
É atração nos desenhos da televisão.
Elefante gordo
Corre assustado de medo
Do pequeno rato.
Quá... quá...
Mamãe pata chama os filhotes
Pra papar. Jacaré não tem orelha
E vive escondido na beira da lagoa
Com o bocão cheio de dente!
Creio que se pode concluir após esta exposição, que os
caminhos do haicai brasileiro são retratos da diversidade nacional. Arrisco
dizer que, contrário ao que enunciou Manuel Bandeira, o haicai poderá ocupar
lugar de destaque na poesia popular pela sua simplicidade, não pela sua
complexidade. Ele permite a enunciação natural, ao contrário de outros gêneros
literários que exigem frases artificiais. O haicai é poesia para todos os
temas, para todas as tendências, para todas as idades.
Bibliografia
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Paulo: Hucitec,1989.
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2006.
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DONADON-LEAL, J. B. “Brejinho”. In: LEAL, A. D. et al. nas
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FERNANDES, Millôr. Hai-kais. São Paulo: L&PM, 1977.
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GOGA, H. Masuda. O haicai no Brasil. São Paulo: Oriento, 1988.
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13, São Paulo: Centro de Estudos Japoneses da USP, 1993:
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de bashô. Mariana:
Aldrava Letras e Artes, 2005.
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Artes e Escola Estadual Dom Benevides, 2006.
ODA, Teruko. “haicai – a poesia kigô.” In: CASTRO, Débora N.
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SAITO, Roberto, GOGA, H. M. e HANDA, Francisco (Orgs.) 100
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São Paulo: Massao Ohno, 1990.
VERÇOSA, Carlos. Oku – viajando com Bashô. Salvador:
Secretaria de Cultura da
Bahia, 1995.
*J. B. Donadon-Leal.
Poeta e ensaísta. Pós-doutor em Análise do Discurso (UFMG),
e
Doutor em Semiótica (USP). Professor de Semiótica no Curso
de Comunicação Social –
Jornalismo da UFOP. Membro da Academia Marianense de Letras.
Membro da Academia de Letras do Brasil. Membro da Academia de Letras do Brasil
– Mariana. Membro Correspondente da Academia Maceioense de Letras. Editor do
Jornal Aldrava Cultural. Membro efetivo da Academia Virtual Sala dos Poetas e
Escritores. Autor de Dô- caminho (1992), Marília - sonetos desmedidos (1996),
Jardim & Avenida (1997),
Gênese da poesia e da vida (1997), Sáfaro (1999), Aldravismo
- a literatura do sujeito
(2002), Leituras - ciência e arte na linguagem (2002),
brejinho - senda 04 de nas
sendas de Bashô (2005). Reflexões: a linguística na sala de
aula (Org.) 2007. Relatos
de Experiência - a linguística no ensino da língua
portuguesa (2008). Vereda dos Seixos
(2008).
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