OpinArte Produção Artística - Arte Histórica - Filme de Animação ; Boris Stepantsev - Texto ; Domenico Losurdo
DE FORD A HITLER Alguém se lembra do elogio do Ku Klux Klan ao "genuíno americanismo de Henry Ford"? Amplamente admirado, o magnata automobilístico condenava a Revolução Bolchevique acusando-a de ser, em primeiro lugar, o produto de uma conspiração judaica. Fundou até uma revista, o Oearborn Independent, cujos artigos publicados foram reunidos em 1920 num único volume intitulado O Judeu Internacional. O livro transformou-se imediatamente numa referência básica do anti-semitismo internacional, foi traduzido para alemão e adquiriu grande popularidade. Nazis destacados, como Von Schirach e mesmo Himmler vieram mais tarde a reconhecer terem sido inspirados ou motivados por Ford. Segundo Himmler, o livro de Ford desempenhou um papel "decisivo" (ausschlaggebend) não só na sua formação pessoal, como também na do Führer. Também aqui se evidencia o carácter inconsistente de qualquer comparação esquemática entre a Europa e os Estados Unidos, como se a praga do anti-semitismo não afectasse ambos. Em 1933 Spengler considerava necessário esclarecer este ponto: a fobia anti-judaica que confessava abertamente, não devia confundir-se com o racismo "materialista" típico "dos anti-semitas na Europa e na América". [11] O anti-semitismo biológico que se agitava impetuosamente no outro lado do Atlântico era considerado excessivo mesmo por um autor como Spengler, que se expressava sem qualquer pudor nos seus escritos, contra a cultura e a história judaicas. Por esta razão, entre outras, Spengler foi considerado tímido e inconsequente pelos nazis, cujas preferências se situavam noutro lado: O Judeu Internacional continuou a ser publicado com todas as vénias no Terceiro Reich, e com editoriais que enfatizavam o singular mérito histórico do seu autor (por haver trazido à luz a "questão judaica"), estabelecendo uma linha de continuidade entre Henry Ford e Adolfo Hitler. O OCIDENTE E A "DEMOCRACIA DO POVO DOMINANTE" É oportuno destacar o paradoxo que caracterizou os Estados Unidos desde a sua fundação, sintetizada no século XVIII pelo escritor britânico Samuel Jonson: " Como poderemos suportar os estridentes gritos de liberdade dos proprietários de escravos?" [12] A democracia desenvolveu-se na América do Norte no seio da comunidade branca simultaneamente com a escravização dos negros e a deportação dos índios. Em 22 dos primeiros 36 anos como nação independente, a presidência esteve nas mãos de proprietários de escravos. Também eram proprietários de escravos os que redigiram a Declaração de Independência e a Constituição. Sem escravatura (mais a correspondente segregação racial) não se pode entender a "liberdade americana": as duas estavam vinculadas, sustentando-se uma à outra. Enquanto a escravatura assegurava o firme controlo sobre as classes "perigosas" no âmbito da produção, a expansão para o Oeste servia para desactivar o conflito social, transformando o proletariado potencial numa classe de proprietários agrícolas, ainda que a expensas dos povos originários, que seriam expulsos ou aniquilados. Depois da Guerra da Independência, a democracia norte-americana experimenta novos desenvolvimentos durante a presidência de Jackson na década de 1830: a extensão do sufrágio e a eliminação, em grande parte, das restrições relacionadas com a propriedade na comunidade branca, eram concomitantes com a rigorosa deportação dos índios norte-americanos e com o crescente ressentimento e violência contra os negros. O mesmo se pode dizer do período compreendido entre o final do século XIX e a metade da segunda década do século XX, onde se combinaram reformas como a instauração da eleição directa dos membros do Senado, o voto secreto, a introdução de eleições primárias e de instituições de referendo, etc". com factos sobremaneira trágicos para a população negra (alvo dos esquadrões do terror do Ku Klux Klan) e a expulsão dos índios norte-americanos dos seus últimos territórios e a sua submissão a uma brutal aculturação, com a intenção de os despojar inclusive da sua identidade cultural. Relativamente a este paradoxo, numerosos intelectuais norte-americanos se referiram a uma Herrenvolk democracy, ou seja uma democracia apenas para "Senhores" (para usar uma expressão do tipo das que Hitler apreciava). Na realidade, a categoria "democracia do povo dominante" pode ser útil para explicar a história do Ocidente como um todo. Desde o final do século XIX e nos princípios do século XX, a extensão do sufrágio na Europa marcha a par com a colonização e a imposição de relações laborais de servidão e semi-servidão aos povos submetidos. O governo democrático na Europa estava fortemente entrelaçado com o poder da burocracia e com a violência policial, e o estado de sítio nas colónias. Em última análise, trata-se do mesmo fenómeno que ocorrida nos Estados Unidos, com a diferença que na Europa era menos evidente porque os povos colonizados viviam do outro lado do oceano. MISSÃO IMPERIAL E FUNDAMENTALISMO CRISTÃO Em 1899, a revista Christian Oracle explicava assim a decisão de mudar o seu título para Christian Century: "Cremos que o próximo século será testemunha de triunfos do cristianismo jamais vistos, e que será mais verdadeiramente cristão que qualquer dos precedentes". Mais adiante o presidente McKinley explicava que a decisão de anexar as Filipinas procedia da inspiração do "Todo poderoso" que, depois de escutar as incessantes preces do presidente, numa noite de insónia, o tinha por fim, libertado de toda a dúvida e indecisão. Não teria sido adequado deixar a colónia nas mãos da Espanha, ou entregá-la "à França ou à Alemanha, nossos rivais no comércio do Oriente". Nem, peIa mesma razão, teria sido correcto deixar as Filipinas aos próprios filipinos, que eram "incapazes de se autogovernar", o que teria Ievado o país a um estado de "anarquia e desgoverno" ainda pior que o resultante da dominação espanhola: "Não temos outra alternativa senão tomarmos tudo a nosso cargo, e educar os filipinos, civilizá-los e cristianizá-los, e, peia graça de Deus, fazer o mais que pudermos por eles, como companheiros nossos por quem Cristo também morreu. Voltei então para a cama e dormi profundamente". [13] Hoje conhecemos os horrores perpetrados durante a repressão do movimento independentista nas Filipinas: a guerrilha desenvolvida pelos filipinos foi enfrentada com a destruição sistemática de campos e gados, pelo confinamento maciço da população em campos de concentração, onde pereciam vítimas da fome e da doença, e inclusive em alguns casos, do assassinato de todos os varões maiores de dez anos. Sem dúvida que, apesar das dimensões dos "danos colaterais", a marcha da ideologia imperial-religiosa da guerra se reactivou triunfalmente durante a Primeira Guerra Mundial, quando o presidente Wilson a eIa se referia como se se tratasse de uma cruzada real, de uma "guerra santa, a mais sagrada em toda a história", destinada a impor a democracia e os valores cristãos em todo o mundo. A mesma plataforma ideológica foi aplicada a outros conflitos no século XX, sendo a Guerra Fria particularmente exemplar neste aspecto. John Foster Dulles, era definido por Churchill como "um severo puritano". Dulles orgulhava-se de que "ninguém no Departamento de Estado conhece a Bíblia como eu". O seu fervor religioso não era de modo nenhum um assunto privado: "Estou convencido que aqui temos a necessidade de fazer que os nossos pensamentos e práticas políticas reflictam com a maior fidelidade a convicção religiosa de que o homem tem a sua origem e destino em Deus". [14] A esta fé, associavam-se outras categorias teológicas fundamentais na luta política internacional: os países neutrais que recusavam tomar parte na cruzada contra a União Soviética estavam em "pecado", enquanto que os Estados Unidos, à cabeça dessa cruzada, representavam o "povo moral" por definição. Em 1983, Ronald Reagan, quando a Guerra Fria atingia o seu clímax, apontou a necessidade de derrotar o inimigo ateu (a URSS), com claros acentos teológicos: "Há no mundo pecado e maldade, e as Escrituras e Jesus nosso senhor ordenaram-nos que nos oponhamos a isso com todo o nosso poder". [15] Alinhando-se com esta tradição e radicalizando-a ainda mais, George W. Bush conduziu a sua campanha eleitoral sob um autêntico dogma: "A nossa nação é a eleita de Deus e foi escolhida peIa História como um modelo de justiça para o mundo". A história dos Estados Unidos está marcada peIa tendência a transformar a tradição judaico-cristã numa espécie de religião nacional que consagra o excepcionalismo do povo norte-americano e a missão sagrada que lhe foi confiada. Não é este entrelaçamento de religião e política sinónimo de fundamentalismo? Não foi por acaso que o termo fundamentalismo foi utilizado pela primeira vez no âmbito do protestantismo norte-americano. Certamente que qualquer administração norte-americana terá os seus hipócritas, os seus intriguistas e os seus cínicos; mas não há motivos para duvidar da sinceridade de Wilson ou, actualmente, de Bush Jr. Não devemos esquecer o facto de que os Estados Unidos não são uma verdadeira sociedade secular, a arraigada convicção de representar uma causa sagrada e divina facilita não só a constituição de uma frente unida em tempos de crise, mas também a repressão e banalização das páginas mais obscuras da história estadunidense. Durante a Guerra Fria, Washington patrocinou sangrentos golpes de Estado na América Latina e colocou no poder brutais ditadores militares; em 1965, promoveu na Indonésia o massacre de centenas de milhares de comunistas ou seus simpatizantes. No entanto, por mais desagradáveis que possam ser, esses detalhes não alteram a santidade da causa personificada pelo "Império do Bem". Max Weber costumava referir-se à "moralina" (farisaísmo) norte-americana. "Moralina" não significa mentira, nem hipocrisia consciente. É tão só a hipocrisia dos que são capazes de mentir a si mesmos, o que se assemelha à falsa consciência assinalada por Engels. De todo o modo, não é fácil compreender totalmente essa mescla de fervor religioso e moral, por um lado, e a clara e aberta tentativa de domínio político, económico e militar do mundo, por outra. É sem dúvida, esta amálgama (combinação explosiva), este peculiar fundamentalismo, que constitui actualmente a grande ameaça à paz mundial. O fundamentalismo norte-americano intoxica um país que, designado e autorizado por Deus, considera irrelevantes a ordem internacional actual e as regras humanitárias. É neste quadro que devemos situar a deslegitimação das Nações Unidas, o desprezo peIa Convenção de Genebra, e as ameaças proferidas não só contra os seus inimigos, como também contra os seus "aliados" na OTAN. O DESPOTISMO IMPERIAL Além de combater o "mal" e defender os valores cristãos e norte-americanos, a guerra contra o Iraque (não contando com outras guerras em perspectiva) pretende expandir a democracia por todo o mundo. Retomemos por um momento o jovem indochinês que em 1924 denunciava o linchamento de negros. Mais tarde regressou ao seu país e aí adoptou o nome pelo qual seria mundialmente conhecido: Ho Chi Minh. Durante os incessantes bombardeamentos norte-americanos no Vietnam, terá o dirigente vietnamita recordado os horrores perpetrados contra os negros pelos defensores da supremacia branca? Por outras palavras, a emancipação dos afro-norte-americanos e sua conquista dos direitos civis marcaram realmente uma mudança, ou continuam os Estados Unidos a ser uma Herrenvolk democracy, uma democracia de "Senhores", com a diferença de que agora os excluídos já não são os que estão dentro da mãe pátria, mas antes os que estão fora, como aconteceu no caso da "democracia" europeia? Podemos examinar a questão numa perspectiva diferente, considerando a reflexão de Kant: "Oue é um monarca absoluto? É aquele que quando decide que deve haver guerra, há guerra". Kant não se referia aos Estados do Antigo Regime, mas sim à Inglaterra, no limiar do seu século de desenvolvimento liberal. [16] De acordo com a posição kantiana, o actual presidente dos Estados Unidos deveria ser considerado um déspota por dois motivos. Primeiro, devido ao surgimento, na última década, de uma "presidência imperial" que, quando embarca em acções militares, as apresenta frequentemente ao Congresso como um facto consumado. Mas estamos ainda mais interessados no segundo aspecto: é a Casa Branca que soberanamente determina quando as resoluções das Nações Unidas são vinculativas ou não; é a Casa Branca que soberanamente decide que países são "Estados delinquentes" e se é legal submete-los a embargos que irão causar o sofrimento de toda uma população, ou ao fogo infernal de bombas de fragmentação ou de urânio empobrecido. A Casa Branca decide soberanamente a ocupação militar desses países, pelo tempo que considerar necessário, condenando os seus dirigentes e os seus "cúmplices" a prolongadas penas de prisão. Contra estes e contra os "terroristas", chega a ser legitimado o "assassinato selectivo", ou melhor, um assassinato que é tudo menos selectivo, como o bombardeamento de um restaurante porque se pensava que Saddam Hussein podia estar lá. As garantias legais não se aplicam de todo aos "bárbaros" . A tudo isto se junta a crescente intolerância que Washington manifesta para com os seus "aliados" ocidentais. Também a eles exige que sigam com humildade a vontade da nação eleita por Deus, cujo presidente se comporta como se fosse um soberano mundial, sem o controle de qualquer organismo internacional.
NOTAS
1. Wade, Wyn Craig. 1997. The Rery Cross: The Ku Klux Klan in America. New York and Oxford: Oxford University Press.
2. MacLean, Nancy. 1994. Behind the Mask 01 Chivalry: The Making of the Second Ku Klux Klan. New York and Oxford: Oxford University Press.
3. Rosenberg, Alfred. 1937. Der Mythus des 20. Jahrhunderts. Munich: Hoheneichen. Publicado pela primeira vez em 1930.
4. lbid.
5. Hitler, Adolf. 1939. Mein Kampf. Munich: Zentralverlag der NSDAP. Publicado pela primeira vez em 1925.
6. Ruge, Wolfgang, and Wolfgang Schumann (eds.). 1977. Dokumentezurdeutschen Geschichte. 1939-1942. Frankfurt a. M.: Radelberg.
7. Spengler, Oswald. 1933. Jahre der Entsche idung. Munich: Beck. 1980. Der Untergang des Abendlandes. Munich: Beck. Original 1918-23.
8. Hoffrnann, Géza voo. 1913. Die Rassenhygiene in den Vel'9inigt9n Staaten von Nordamerika. Munich: Lehmanns.
9. Günther, Hans S. R. 1934. Rassenkunde des deutschen Volkes. Munich: Lehmanns. Publicado pela primeira vez em 1922.
10. Fredrickson, George M. J. The Black Image in the White Mind: The Debate on Afro-American Character and Destiny, 1817-1914. Hanover, N.H.: Wesleyan University Press. Publicado pela primeira vez em 1971.
11. Spengler, op.cit.
12. Foner, Erich. 1998. The History of American Freedom. London: Picador.
13. McAllister Uno, Brian. 1989. The U. S. Army and Counterinsurgency in the Philippine War, 1899-1902. Chapel HiII and London: University of North Carolina Press.
14. Kissinger, Henry. 1994. Diplomacy. New York: Simon and Schuster.
15. Draper, Theodore. 1994. "Mission Impossible". New York Review of Books (6 October).
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