Wilson Grey "Um Filme 100% Brazileiro"
MODERNISMO E CINEMA
Elizabeth
Real
Um filme 100% brasileiro Segundo o diretor José
Sette de Barros, em uma entrevista dada à época de lançamento do filme, Um
filme 100% brasileiro pode ser considerado como uma síntese de todo o trabalho
que havia realizado até aquele momento, quando já completava vinte anos de
cinema: “nele está o melhor que eu fiz. Para mim, foi quando tive mais certeza
das coisas que eu queria” (BARROS, 1988). De volta de uma temporada na Europa,
onde conviveu intensamente com cineastas ligados ao cinema experimental
brasileiro (ou Cinema Marginal, como ficou conhecido), entre os quais Júlio
Bressane, Neville d’Almeida, Rogério Sganzerla, Eliseu Visconti e Silvio Lanna,
o diretor inicia sua carreira em 1973, com o curta-metragem Inside. Em 1976,
José Sette realizou seu primeiro longa-metragem, chamado Bandalheira infernal. Para
fazer o roteiro de Um filme 100% brasileiro, o diretor baseou-se em uma seleção
de textos e poemas escritos por Blaise sobre sua experiência no Brasil. O filme
inicia com a vinda do poeta de navio e seu desembarque em pleno carnaval
carioca. Segundo o diretor, ele pretendeu transpor para a tela o texto de
Cendrars sem modificá- lo a fim de manter intacta sua visão poética sobre as
coisas brasileiras. Na estrutura do filme, o diretor se concentra em três
textos escritos por Cendrars na segunda parte do livro: sobre o lobisomem de
Minas, sobre o “coronel Bento” e sobre Febrônio Índio do Brasil. O filme
afasta-se do realismo: Blaise é vivido por mais de um ator e seu defeito físico
é propositadamente ignorado (o poeta não possuía o braço direito, mutilado durante
a Guerra). Utiliza-se do teatro de bonecos e enfatiza a artificialidade dos
cenários pintados por três artistas plásticos que já haviam trabalhado com o
diretor em um filme anterior: Fernando Tavares, Oswaldo Medeiros e Paulo
Giordano, ligados à Oficina Goeldi, em Belo Horizonte. O diretor procurou
trazer para o filme, visualmente, o forte vínculo de Cendrars com as artes
plásticas: Em Um Filme 100% Brasileiro, onde eu precisava de novo de uma
cenografia forte, não tinha porque não chamar esses mesmos artistas plásticos.
Eles trabalharam em cima de todos os artistas que conviveram com Blaise
Cendrars. Se você tiver uma visão geral, você vai ver que tem Di Cavalcanti,
Anita Malfati, Tarsila do Amaral, lsmael Néri... Todos estão ali, essa
miscigenação da arte brasileira nos cenários do filme - este foi o meu
interesse fundamental ao colocar aquilo. E também uma homenagem ao cinema
expressionista alemão. Em todo o cenário eu tive uma preocupação de criar
aquela perspectiva do expressionismo. Então, a arte colocada nos cenários é uma
visão expressionista das artes plásticas brasileiras da época em que Cendrars
passou aqui (SETTE, 1988). Além do interesse de José Sette pelo Expressionismo
alemão, podemos destacar que essa “visão expressionista” realçava uma atmosfera
que perpassava o ambiente artístico da época. Anita Malfati, que estudara
pintura na Alemanha e nos Estados Unidos, apresentava características
expressionistas que causaram espanto durante a Exposição de Pintura Moderna,
realizada em 1917. Também Osvaldo Goeldi, que ilustrou muitas obras
modernistas, era influenciado pelo Expressionismo. O diretor utiliza-se, ainda,
de outras referências que extrapolam o universo modernista. A fala do
personagem do diabo, vivido por Wilson Grey, foi retirada de um conto de
Machado de Assis, considerado por Sette como um precursor do Modernismo. Vemos,
assim, que, da mesma forma que Joaquim Pedro, em O homem do pau brasil, José
Sette, em Um filme 100% brasileiro, parte de diversas referências culturais e
utiliza, de forma plena, as possibilidades que o cinema oferece como
instrumento criativo: sintetiza ideias, manipula imagem e som, apoderando-se de
recursos próprios de outras artes, seja o texto poético literário, seja a
tradição iconográfica que marcou a visualidade brasileira na primeira metade do
século XX. Ao escolher partir do olhar de um estrangeiro, vindo de Paris –
centro cultural internacional tão almejado por nossos artistas –, José Sette de
certa maneira inverte e ao mesmo tempo reforça a antropofagia que nos
caracteriza, que nasce com o Modernismo e revive nos tempos da Tropicália.
Conclusão Podemos entender que a retomada do Modernismo, a partir do final dos
anos 1960, não foi realizada de forma absoluta, quer dizer, os artistas que
buscaram inspiração nesse período da história cultural brasileira pinçaram
autores, obras e idéias específicas. Oswald de Andrade surge como a referência
principal, não apenas por suas obras, mas também por seu comportamento
irreverente que o fez conhecido como o “rebelde” do grupo modernista. O
conceito de antropofagia, reavivado pelos tropicalistas, predominou como ponto
de interesse do cinema que buscou dialogar com o movimento modernista iniciado
na década de 1920. Nos anos 1980, este diálogo dos cineastas passou a se dar a partir
de uma dupla referência: não apenas com o movimento do início do século XX, mas
com o período tropicalista, que se configurou como outro marco para a cultura
brasileira. E isso acontece porque esses filmes discutem também a forma de
fazer cinema, tendo como uma preocupação central a criação de novas formas de
expressão cinematográfica, descompromissadas com a representação padronizada
característica de um tipo de narrativa mais convencional. Como vimos, se no
Modernismo não se configurou uma movimentação inovadora em torno do cinema, no
Tropicalismo a situação era bem diferente: Com o
tropicalismo, abriu-se um ciclo de experimentação na seara do cinema que se
desdobrou em propostas de ruptura em setores distintos: na área do
longa-metragem (em filmes ligados ao que se rotulou de “cinema marginal”: Luiz
Rosemberg, Andrea Tonacci, Neville d’Almeida, Eliseu Visconti, entre outros);
na área do curta-metragem, nas novas linguagens e questionamentos radicais do
documentário convencional (XAVIER, 2006, p.8). Joaquim Pedro de Andrade era um
cineasta egresso do Cinema Novo. José Sette de Barros tinha proximidade com o
Cinema Marginal. Nos anos 1980, as fronteiras entre esses movimentos se
esfumaçam. O que fica são os filmes, fontes vivas de referência para o cinema
contemporâneo.
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