Impactos na Pátria Grande
Por Orlando
Senna
A derrota do kirchnerismo
na Argentina muda o cenário político da América do Sul e estimula dúvidas sobre
como será o futuro do Mercosul. O bloco conformado em março de 1991 ganhou
contornos nitidamente esquerdistas a partir de 2000 com a ascensão das
lideranças de Lula no Brasil, Chávez na Venezuela, Néstor Kirchner na
Argentina, José Mujica no Uruguai, Fernando Lugo no Paraguai, Rafael Correa no
Equador, Michelle Bachelet no Chile, Evo Morales na Bolívia. Foram
implementadas saudáveis políticas de inclusão social em todos esses países e a
economia brasileira, eixo mais importante da região, alcançou um crescimento
surpreendente. Até os analistas mais conservadores perceberam a força política,
base dos projetos de inclusão social, do que denominaram “uma aliança entre
governos progressistas e bolivaristas”, com o Brasil puxando os primeiros e a
Venezuela os segundos. A partir de 2011 esse cenário começou a se deteriorar,
as economias nacionais começaram a se desequilibrar, o mercado comum previsto
pelo Mercosul não avançou, a inflação voltou a ser um problema e a corrupção
grassou em vários países.
Seguiram-se outros acontecimentos como em uma
onda de choque: em 2012 a deposição de Lugo; no mesmo ano um plano de
desestabilização, que prossegue até o momento, do governo de Evo Morales com
uma campanha da direita para dividir a Bolívia em duas; em 2013 a morte de
Chávez, criador e comandante da proposta bolivarista (emancipar os países
latino-americanos dos interesses econômicos, políticos e culturais da Europa e
dos EUA), dita “socialismo do século XXI”; em 2014 a estressante campanha para
a reeleição de Dilma Rousseff, que venceu por uma diferença de apenas 3,3%,
ficando clara a grande cisão na população brasileira. E, claro, as
manifestações de insatisfação popular na maior parte dos países da região,
combustível da instabilidade psicossocial, emocional, que se manifesta agora,
nas últimas luzes (ou sombras) de 2015.
Oposições
No Equador bolivarista, a Revolução Cidadã de
Correa, que promoveu amplas reformas sociais e políticas, está causando enorme
polêmica com uma emenda constitucional em tramitação que autoriza a reeleição
ilimitada para a presidência da república. Correa anunciou que não será
candidato a um terceiro mandato e confia que sua frente, a Alianza PAIS,
vencerá as eleições de 2017. Ou seja, que fará seu sucessor. Mas está sempre
advertindo que “a democracia corre perigo” e que há indícios de um golpe de
estado em andamento. No Peru progressista, o presidente Ollanta Humala busca
uma estabilidade a cada dia mais difícil, com forte oposição no Congresso. Em
março, em uma demonstração de força, o Congresso destituiu a primeira-ministra
Ana Jara, acusando-a de envolvimento em escândalo de espionagem, rastreamento
de milhares de pessoas, incluindo opositores do governo. Em cem anos, é a
terceira vez que o parlamento peruano destitui primeiros-ministros.
No Chile, a popularidade do governo de Michelle
Bachelet caiu vertiginosamente. A reação antigoverno foi impulsionada por
denúncias de corrupção de grandes empresários (desvio de dinheiro para
campanhas, propinas) e de políticos de diferentes partidos, incluindo da base
do governo, a frente de centro-esquerda Nueva Mayoría. Bachelet enfrentou a
crise com uma reforma do governo (trocou seus 26 ministros de uma só vez, por
exemplo) mas a turbulência não foi debelada, principalmente porque as denúncias
apontaram para seu filho, Sebastián Dávalos, acusado de tráfico de influência
para conseguir dez milhões de dólares para compra de terras. A Colombia,
governada pelo neoliberal Juan Manuel Santos, afogada no narcotráfico e com
bases dos EUA em seu território, atua agressivamente contra o governo da
Bolívia, apoiando o movimento separatista que atormenta o presidente Evo. No
Paraguai, o presidente Horacio Cartes, milionário envolvido em processos de
corrupção, preso nos anos 1980 por evasão de divisas, continua a celebrar a
deposição de Lugo e anunciar avanços macroeconômicos (crescimento do PIB,
inflação baixa), embora a pobreza tenha crescido durante seus três anos de
governo, alcançando 35% da população.
Gigante atordoado
Para não parecer pessimista e dizer que não
falei de flores, o Uruguai está indo bem, com o exemplo luminoso de José Mujica
orientando o governo de Tabaré Vázquez, eleito no ano passado com a maior
votação da história do país nos últimos 70 anos e levando adiante o projeto da
esquerdista Frente Ampla. É como uma ilha de equilíbrio político e consciência
cívica em um subcontinente tenso e conflagrado. Adjetivos que nos remetem às
grandes economias da região: Brasil, Argentina e Venezuela.
O Brasil vive sua maior crise política dos
últimos 50 anos, agravada por um desgaste agudo de sua economia, pela
interrupção e inversão do crescimento contínuo que vimos nos últimos anos.
Neste momento o gigante sul-americano está caindo da posição de sétima maior
economia global para a nona. O aspecto mais assustador é o impacto da corrupção
colossal protagonizada por políticos, altos funcionários públicos e pela casta
antes intocável dos grandes empresários. Já estão na cadeia políticos e
parlamentares de todos os partidos e, na avalanche, ex-ministros do presidente
Lula e congressistas do Partido dos Trabalhadores. Em consequência, a base
política popular de Lula e do PT diminuiu consideravelmente e os festejados
programas de inclusão social estão ameaçados.
Novo cenário
Na Argentina, Cristina Kirchner entrega o poder
a Mauricio Macri, que se define como de centro-direita. No próximo 6 de
dezembro haverá eleições parlamentares cruciais na Venezuela, mergulhada em uma
crise econômica que atinge em cheio a população pela escassez de alimentos e
produtos básicos e inflação galopante (fala-se em 200% em 2015), aumentando o
poder da oposição. O suspense relacionado com essas eleições é a possibilidade
do governo perder a maioria na nova Assembleia Nacional, como apontam as
pesquisas eleitorais. Se isso acontecer e os princípios democráticos forem
mantidos, o poder passará às mãos da MUD, a Mesa de la Unidad Democrática, que
se apresenta como liberal.
As primeiras declarações de Macri, como
presidente eleito argentino, foram sobre o fortalecimento das relações
comerciais Brasil/Argentina e a expulsão da Venezuela do Mercosul, acusando
Maduro de desrespeito aos direitos humanos. Dilma não concorda com a expulsão
da Venezuela, mas pediu ”transparência” a Maduro. Ou seja, muitos choques
estremecendo o sonho gerado em 2000 de uma América do Sul solidária e
libertária, humanista e inclusiva. De quem a culpa? Das potências do Norte e do
Leste? Da nossa incompetência? De ambos? Muitas interrogações pairando no ar.
Marx: ”tudo o que era sólido se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é
profanado”.
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