O VIAJANTE
CLANDESTINO
Mia Couto
- Não é arvião. Diz-se:
avião.
O menino estranhou a emenda de sua mãe. Não mencionava
ele uma criatura do ar? A criança tem a vantagem de estrear o mundo, iniciando
outro matrimónio entre as coisas e os nomes. Outros a elas se semelham, à vida
sempre recém-chegando. São os homens em estado de poesia, essa infância
autorizada pelo brilho da palavra.
- Mãe: avioneta é a neta do avião?
Vamos para a sala de espera, ordenou a mãe. Sala de
esperas? Que o miúdo acreditava que todas as salas fossem iguais, na viscosa
espera de nascer sempre menos. Ela lhe admolestou, prescrevendo juízo. Aquilo
era um aeroporto, lugar de respeito. A senhora apontou os passageiros, seus
ares graves, sotúrnicos. O menino mediu-se com aquele luto, aceitando os
deveres do seu tamanho. Depois, se desenrolou do colo materno, fez sua a sua
mão e foi à vidraça. Espreitou os imponentes ruídos, alertou a mãe para um
qualquer espanto. Mas a sua voz se arfogou no tropel dos motores.
Eu assistia a criança. Procurava naquele aprendiz de
criatura a ingenuidade que nos autoriza a sermos estranhos num mundo que nos
estranha. Frágeis onde a mentira credencia os fortes.
Seria aquele menino a fractura por onde, naquela toda
frieza, espreitava a humanidade? No aeroporto eu me salvava da angústia através
de um exemplar da infância. Valha-nos nós.
O menino agora contemplava as traseiras do céu,
seguindo as fumagens, lentas pegadas dos instantâneos aviões. Ele então se
fingiu um aeroplano, braços estendidos em asas. Descolava do chão, o mundo
sendo seu enorme brinquedo. E viajava por seus infinitos, roçando as malas e
as pernas dos passageiros entediados. Até que a mãe debitou suas ordens. Ele
que recolhesse a fantasia, aquele lugar era pertença exclusiva dos adultos.
- Arranja-te. Estamos quase a
partir.
- Então vou despedir do passaporteiro
A mãe corrigiu em dupla dose. Primeiro, não ia a
nenhuma parte. Segundo, não se chamava assim ao senhor dos passaportes. Mas só
no presente o menino se subditava. Porque, em seu sonho, mais adiante, ele se
proclama:
- Quando for grande quero ser
passaporteiro.
E ele já se antefruía, de farda, dentro do vidro. Ele
é que autorizava a subida aos céus.
- Vou estudar para migraceiro.
- És doido, filho. Fica quieto.
O miúdo guardou seus jogos, constreito. Que criança,
neste mundo, tem vocação para adulto?
Saímos da sala para o avião. Chuviscava. O menino
seguia seus passos quando, na lisura do alcatrão, ele viu o sapo. Encharcado,
o bicho saltiritava. Sua boca, maior que o corpo, traduzia o espanto das
diferenças. Que fazia ali aquele representante dos primórdios, naquele lugar de
futuros apressados?
O menino parou, observente, cuidando os perigos do
batráquio. Na imensa incompreensão do asfalto, o bicho seria esmagado por cega
e certeira roda.
- Mãe, eu posso levar o sapo?
A senhora estremeceu de horror. Olhou vergonhada,
pedindo desculpas aos passantes. Então, começou a disputa. A senhora obrigava o
braço do filho, os dois se teimavam. Venceu a secular maternidade. O menino,
murcho como acento circunflexo, subiu as escadas, ocupou seu lugar, ajeitou o
cinto. Do meu assento eu podia ver a tristeza desembrulhando líquidas missangas
no seu rosto. Fiz-lhe sinal, ele me encarou de soslado. Então, em seu rosto se
acendeu a mais grata bandeira de felicidade. Porque do côncavo de minhas mãos
espreitou o focinho do mais clandestino de todos os passageiros.
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