O IDIOMA DE
ROGÉRIO SGANZERLA E OS IDIOTAS DA TELENOVELA
Gilberto
Felisberto Vasconcellos
Resumo:
Nesse texto buscamos memórias de vida, leituras e imagens sobre o cineasta
Rogério Sganzerla e buscamos situá-lo na dinâmica da arte e das letras
brasileira.
Somente
agora li os seus Textos Críticos, dois volumes publicados em 2004 pela editora
da Universidade de Santa Catarina. Lembrei de meus encontros em São Paulo com
Rogério Sganzerla, acompanhado às vezes por Jairo Ferreira, e no Rio de Janeiro
junto com José Sette. Não me recordo do primeiro encontro, talvez tivesse sido
entre 1977-1978, ambos escrevíamos crônicas para o jornal A Folha de São Paulo
sob a direção de Cláudio Abramo. Também escreviam na mesma página Glauber
Rocha, Paulo Françis e Hugo Celidonio. Uma noite jantamos eu e Rogério no filé
do Morais, a certa altura ele meteu o sarrafo em mim dizendo que só tematizava
meus amigos. Coisa de patotinha. Rogério era três anos mais velho do que eu. De
Paris, artigo publicado no jornal, referi-me a uma frase de Oswald de Andrade:
“o barbante não tem fim”, cujo assunto tocava de leve em seus filmes. De volta ao
Brasil, um dia ele me disse que eu deveria continuar o lance do barbante.
Falava sempre de maneira elíptica e metonímica. Olha o boné do Lula. Boné não
dá pé. O cara usa boné. Boné é mau. No Rio eu lhe telefonava, ia em seu apê na
Urca, depois saíamos para tomar uns tragos. De madrugada eu pegava o ônibus
para Petrópolis, José Sette se dispôs a me levar até a rodoviária. Rogério:
“não leve ele não, esse cara é do Partidão”. Eu achava engraçado, José Sette
ria, manera Rogério. No entanto, isso não impedia que eu o procurasse numa boa,
ainda que me intrigasse, Rogério não gosta de mim, pensava; porém não era bem
assim, é que eu curtia mais os filmes de Glauber Rocha, nisso entrava o
marxismo, daí identificar-me com o Partidão. Depois de sua morte evoquei essas
e outras conversas com os meus amigos Gilberto Santeiro e Elyseo Visconti, que
também já partiram, partiram primeiro, dizia Luis da Câmara Cascudo. Era
Rogério Sganzerla anti-marxista? Tenho a impressão de que ele confundia
marxismo com stalinismo. Não há em sua prosa alusão ao trabalhismo de Vargas ou
de Jango. Em O Bandido da Luz Vermelha se aparece Vargas, é na pele de Adhemar
de Barros; ademais esse belo filme é tecido linguisticamente com os romances de
Oswald de Andrade (Miramar e Serafim) e o escritor modernista esteve às turras
com o “anão Vargas” de 1930 a 1954. Não posso afirmar com certeza se a eclipse
de Vargas no cineasta de Joaçaba deveu-se a influência da turma udenoliberal do
jornal Estado de São Paulo (Ruben Biáfora e Flávio Tambellini); o golpe
anti-trabalhista de 1964 surge apenas uma única vez em seus escritos até 1967.
No kinobar do presidente Almeida Salles na Rua São Luiz eu lhe sugeri (tinha
terminado de escrever meu livro Collor a Cocaína dos Pobres) para filmar o
candidato marajá como o bandido anti-vermelho. Rogério Sganzerla, e não o
melífluo Roberto D’Ávila, poderia ter dirigido na televisão a campanha
eleitoral de Brizola em 1989, data desastrosa na história do Brasil. Lendo
agora os seus artigos, observo que neles, junto com a metalinguagem sobre
código do cinema, há alguma coisa meio existencialista centrada no amor e na
morte, Godard é onipresente, mas não o Godard marxista. Digo abordagem um tanto
quanto existencialista, o que não quer dizer psicologista, porque os
personagens dos seus filmes carecem de psicologia. Nada de arroubos emotivos e
subjetivistas. Quem tiver de sapato não sobra. Ele preferia o cinema “arte das
aparências” refratário ao “complexo de seriedade”, o que não quer dizer que
fosse anti-intelectual, como se diz erroneamente quanto às brigas e
divergências com o Cinema Novo. Oswald de Andrade também foi pichado de inculto
e chutador, que não lia um livro por inteiro. Começando como crítico de cinema
muito jovem (17 anos), espécie de Rimbaud da crítica, Rogério era dotado de uma
notável capacidade intelectual, sem deixar de aduzir que os seus filmes ainda
hoje despertam o maior interesse por causa da mimese, embora subjetivamente
declarasse contrário aos “enfatismos” e “simbolismos sociais”. Rogério
Sganzerla estava, do ponto de vista linguístico, menos chegado à hipérbole do
que à litotes. No Rio de Janeiro foi visto como um meteco, e não como um
marginal. Quem melhor filmou São Paulo não retratou o boêmio ou o
revolucionário e sim bandido insular, desorganizado, solipsista, e o fez de
maneira tão física que se confunde com a polícia, o que dá margem a pensar que
na São Paulo bandeirante a polícia é objeto de amor e admiração. Em um final de
tarde, crepúsculo cinzento, boteco próximo à Rua da Consolação, estávamos eu,
Jairo Ferreira e Rogério bebericando umas cervejotas. De repente Rogério chamou
nossa atenção para um tipo alto, magro, terno e gravata, que acabara de entrar
com passos lentos, olha só que delegado não daria esse cara. Segundos depois o
bar ficou coalhado de policiais, era uma blitz pedindo documento sob as ordens
do delegado esquálido. Nesse dia disse-lhe que estava a fim de fazer um livro
sobre Gilberto Freyre. Sai dessa, retrucou, melhor é Oswald de Andrade. Em um
artigo da década de 80 observou, no entanto que o autor de O Rei da Vela,
teatro dedicado ao gaúcho Álvaro Moreira, não citou e não sacou Noel Rosa, que
escrevia tão bem quanto outro Rosa, Guimarães Rosa. Explicitou que “o pieguismo
meloso” de Chico Buarque não tinha nada a ver com o filósofo da Vila Isabel.
Rogério me convidou para ver na moviola, estúdio Jean Manzon em frente à
biblioteca Mário de Andrade, o filme que estava montando sobre Noel Rosa. Gal
Costa canta, aí comentei que a voz da baiana estava mal, porque não sintonizava
com os pulmões de Noel Rosa. Depois vi o filme pronto e, confesso, gostei mais
da maneira com que ele filmou Luiz Gonzaga em Sem essa, Aranha. Neste filme
estava o sertão, sanfona plebeia no Rio, assim como Copacabana Mon Amour trazia
a superstição da estrada Rio-Bahia. O que não me agrada em seus filmes (Nem
tudo é Verdade) é o excesso de música, o que subtrai o silencio e prejudica a
fruição da imagem. Há João Gilberto demais; afinal, Rogério curtia o cinema
mudo estudado por Orson Welles na feitura de Cidadão Kane. O moderno cinema
brasileiro é vassalo da música popular, o enchimento sonoro surge sem razão de
ser no andamento dos filmes, como se o cineasta estivesse inseguro diante
daquilo que está mostrando, daí a música muleta para seduzir o que já foi
ouvido. É o that’s it, é o isso aí, de que falava Theodor Adorno contra
fetichismo da mercadoria radiofônica. A Bossa-Nova e a Tropicália, ao invés de
salvarem, atrapalharam muitos filmes, não só os de Rogério como também os de
Glauber, a exemplo de Jorjamado é Claro. Ironia da história, depois da morte de
ambos, Glauber e Rogério estão mais próximos e irmanados esteticamente do que o
cineasta baiano e os seus amigos do Cinema Novo, os quais converteram-se em
ideólogos da telenovela, o principal instrumento do poder multinacional.
Frederico Mendonça, o Fredera, escreveu sobre o pianista Tenório JR., O Crime
contra Tenório. Com os festivais da canção houve um processo de “estupidez
musical via Roberto Carlos ou da cancionalização da música brasileira via
Festivais e emepebê, e este advento se deu concretamente a partir de 64”.
Roberto Carlos parabenizou em 1986 José Sarney por ter proibido a exibição do
filme Je Vous Salue Marie de Jean-Luc Godard. Os músicos instrumentistas
tiveram de bater cabeça para a cancionística bundalelê. A canção converteu-se
na semântica dominante popilantraroquitropicaliasertanejuniversitária.
Jovem-Guarda. Pilantragem. Swingado. Bugalu. Roquipopi. Tudo gritando
lovimiplis. O cinemão é feito pelos filhos da telenovela, a qual exibe o
fascismo da sorte. Tudo por acaso, nada tem causa, tudo é aleatório. Dinheiro
não falta para os filhos da telenova; o que inexiste no entanto, como anteviu
Rogério, é talento no “Cinema Novo-Rico”, que é imoral e obsceno porque se
regozija com o subdesenvolvimento. Estou em desacordo com o juízo superficial
acerca de um Rogério tropicalista, porque o seu cinema é nítido, incisivo,
apodítico, e não pusilânime e apologético a favor do arrivismo vencedor na
dialética do desenvolvimento capitalista desigual. Em sua prosa o que se nota é
a influência de Oswald de Andrade e da poesia concreta com seus jogos
paranomásicos e os trocadilhos ásperos e com raiva analítica. A linguagem do
cinema que se volta sobre si mesma não é diferente da função poética na
linguística dos poetas concretos, ou seja, o caráter autorreflexivo da
linguagem. Releva dizer o que passou até então despercebido: a entrevista que
Rogério fez em 1966 com Glauber antes de ser realizado o filme Terra em Transe.
Nesta entrevista Glauber afirmou que o Cinema Novo nasceu do concretismo, do
“revisionismo” feito pela poesia concreta no suplemento literário do Jornal do
Brasil. A única ressalva é que o nacionalismo não era presença forte na poesia
concreta, então o Cinema Novo (leia-se: ele, Glauber) radicalizou o
nacionalismo de 22, tornando-o de feição anti-imperialista: “a bomba e fome
dividem a terra”. No idioma rogeriano, tal qual nos filmes de Glauber, não há
ascensão social dos personagens. Em Rogério, à diferença de Glauber, está
escancarada a espinafração, muitas vezes amarga. Em seus filmes não surge o
devir histórico ou a ideia de revolução antiimperialista. Fato é que a vida de
Rogério virou um inferno quando pegou na câmera para filmar, antes escrevia
crítica em São Paulo e não lhe caíram de pau: “quem irá me defender a não ser
eu mesmo?”, perguntava em 1981. Glauber, Rogério, poesia concreta, a florestas
de signos, na qual o segredo está na música. Com que música? Em
Contracomunicação Décio Pgnatari se empolgou com Caetano Veloso, superior a
Villa-Lobos e Claudio Santoro. Em alguns textos de Augusto e Haroldo de Campos
a estrela de Santo Amaro da Purificação refulge ao lado de James Joyce e
Maikovski. Em termos de avaliação crítica, parece que nem o Espírito Santo é
infalível. Excelentes musicólogos, os poetas concretos ergueram o axé da
emepebexéu, e isso talvez tivesse ocorrido por causa do modo de produção
auricular da sociedade brasileira. É preciso fazer o revisionismo crítico
depois que a ditadura se foi sem ir, e que a máscara da democracia elide a
realidade desastrosa, social e econômica do país. Vejamos um lugar comum veiculado
pelas vozes que dão o lé com crê acadêmico: poesia concreta, indiferente ao
nacionalismo anti-imperialista? Não é verdade, a julgar pelo livro de 1964
feito pelos irmãos Campos sobre Sousândrade, no qual “o câncer de Wall Street”
é escancarado, a Comuna de Paris (o primeiro governo proletário) é elogiada e
posta em destaque a “dinheirocracia” capitalista, para não mencionar a
contradição colônia-metrópole, tal qual aparece no livro Re-operação do Texto
de Haroldo de Campos. “Hoje se pode ver que o grande cantor revolucionário
brasileiro – em conteúdo novo e forma nova – não foi exatamente Castro Alves,
que celebrou em versos bombasticamente retóricos temas que já estavam de certo
modo consciencializados por seu tempo (a abolição da escravatura, por exemplo),
mas Sousândrade, cuja consciência antecipadora apanhou em cheio o conflito
fundamental da América Latina subdesenvolvida e submetida a um estatuto
colonial, no mundo do capitalismo que se transforma em imperialismo”. Em 1971,
em seu livro Contra-comunicação Décio Pgnatari alertou para a metamorfose do
guaraná à Coca-Cola. “O lucro exige um tempo linear”. No país bacharel dos
bolhas machadopenumbrando no Supremo Tribunal Federal, a contenção da linguagem
concretista é luta de classes. Injuriado com a sociologia do “juste milieu”,
Oswald de Andrade abriu o jogo: afinal, sou cinematográfico ou gongórico? No
mundo acadêmico foi montada a lenda de que o lastro participante da literatura
estava com a crítica sociológica, enquanto a poesia de Perdizes era formalismo
alienado. Algo similar sucedeu no Cinema Novo carioca, que lidava com os temas
sociais, filmes de denúncia da miséria, cujos cineastas foram entregando o time
para a televisão coadjuvante de Wall Street. O curioso é que até mesmo “o
marxismo” do PC stalinista deu alpiste para a patota liberal do Cinema Novo
qualificar Rogério de “direita”, o qual tinha paixão pela forma (um filme é um
filme é um filme) mas não negligenciava o referencial cognitivo do cinema.
Enfim, venceu o triunvirato Roberto Campos, Roberto Marinho e Fernando Henrique
Cardoso. O ex-Cinema Novo passando por cima do legado de Glauber Rocha
justificará (com adesão da Tropicália anti-comunista) o golpe de 64.
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