CANÇÃO ESTRATOSFÉRICA DO SUBMUNDO
Fabio
Carvalho
Quando a vi pela
primeira vez, Sylvia Klein tinha dezessete anos. Como nefelibata ela passava em
frente à grade do Parque Municipal na direção contrária da minha, destacando-se
de maneira cintilante em meio à multidão cinza. Foi recorrente minha visão,
cheguei a marcar a hora para vê-la passar. Ali seu caminhar já era brilhante.
Branca e rosa como uma boneca de porcelana, não disfarçava sua voluptuosidade
de roqueira. Observei seu trajeto cantante, no coro, nos progressivos até
chegar a metaleira, que mais a absorvia, sempre tomada de opinião. A dedicação
ao canto lírico a transmutou para óperas, operetas e grandes concertos, ainda à
parceria de sua voz e o piano voador do Wagner Sander, depois voou para o
mimoso Caffeine Trio, melindrosas cantoras do rádio. Antes, no inicio dos anos
noventa começamos a conversar no extraordinário Café Urrubú dos meus atores
Hélio Zolini e Soraya De Borba. Fizemos nosso primeiro ensaio cinematográfico
na Igreja da Pampulha, em um plano-sequência para o filme Encontro Com Bardem,
onde canta sem edição Manuel de Falla, Dorival Caymmi e Pixinguinha, que para
meu espanto já sabia de cor. Foi
exato no dia em que ela completava trinta anos. Passamos uma temporada de
encontros casuais, na rua, em festas ou quando ela fez uma visita aos
bastidores do filme O General, acompanhando uma amiga. Mais adiante já em Porta
Do Palco, filme dedicado aos cinquenta anos de produção artística do nosso doce
patrimônio Julinho Varella, ela voltou para frente da minha objetiva. No Rio,
quando exibi Jimi Hendrix e a Fonoaudióloga que ela protagoniza, o cineasta
Luís Rosemberg Filho me perguntou: onde você encontrou essa bela atriz de
Moliére? Anos antes o mestre João Etienne tinha me dito que reconhecia o
verdadeiro ator, quando este tinha uma boa vaidade, uma necessidade de exibição
que começava na infância fazendo apresentações para os amiguinhos e para a
família, que em geral o cômico revela um grande ator dramático, o contrário nem
sempre acontece. O riso toca o especifico mágico humano para que se vertam as
lágrimas da tragédia existencial. Sua
explosão expressiva de cantriz é indubitável, sob a luz da interpretação da
natureza. Está claro que nada nasce pronto, é preciso um celestial esforço para
o polimento, ela o fez. Só
conheci pessoalmente o Wagner Sander no início dos ensaios desse encantado
Canção do Submundo. Ele fez contrariar a frase do Rogério Sganzerla, que
utilizo como minha: não quero conhecer ninguém que não conheço. Jovem, exímio
pianista, esse instrumento totalizante para a música como cinema para as artes,
cinéfilo, conhecedor da filosofia, culto e radical, como todo artista deveria
ser. Sempre fui wagneriano, hoje muito mais. Dirigir esses dois rebentos
fulgurantes, tem sido um experimento, um aprendizado imensurável no sentido de
dominar a arte de ser desnecessário, dominar a arte de colaborar sem
atrapalhar, já que aqui, eles acendem as luzes num gabarito altíssimo. Dominar
com carinho, das minas para o mundo. Ainda tive o prazer, com aquiescência da
Sylvia, de convidar o Adyr Assumpção para fazer Glauber falando Brecht. Meu
ator no O General e no Significações Amorosas, roteiro do Luís Rosemberg Filho,
que por enquanto não reuni condições para realizar. Articulado, também diretor,
dono de figura inclassificável e voz marcante, veio dar o tom mestiço ao
recital. Somos todos afrodescendentes. O feminino, sensual, corrosivo discurso
de Brecht e Weill, nos serve como uma metralhadora de esperanças em flor, como
reação ao grave momento limítrofe das intolerâncias, que o Brasil e o mundo
atravessam se ressentindo. Uma nova vida se descortina através da música. Nada
é mais político do que a arte pela arte.
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