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quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

UM CONTO DE REIS

CANÇÃO ESTRATOSFÉRICA DO SUBMUNDO

                                                      Fabio Carvalho


Quando a vi pela primeira vez, Sylvia Klein tinha dezessete anos. Como nefelibata ela passava em frente à grade do Parque Municipal na direção contrária da minha, destacando-se de maneira cintilante em meio à multidão cinza. Foi recorrente minha visão, cheguei a marcar a hora para vê-la passar. Ali seu caminhar já era brilhante. Branca e rosa como uma boneca de porcelana, não disfarçava sua voluptuosidade de roqueira. Observei seu trajeto cantante, no coro, nos progressivos até chegar a metaleira, que mais a absorvia, sempre tomada de opinião. A dedicação ao canto lírico a transmutou para óperas, operetas e grandes concertos, ainda à parceria de sua voz e o piano voador do Wagner Sander, depois voou para o mimoso Caffeine Trio, melindrosas cantoras do rádio. Antes, no inicio dos anos noventa começamos a conversar no extraordinário Café Urrubú dos meus atores Hélio Zolini e Soraya De Borba. Fizemos nosso primeiro ensaio cinematográfico na Igreja da Pampulha, em um plano-sequência para o filme Encontro Com Bardem, onde canta sem edição Manuel de Falla, Dorival Caymmi e Pixinguinha, que para meu espanto já sabia de cor.  Foi exato no dia em que ela completava trinta anos. Passamos uma temporada de encontros casuais, na rua, em festas ou quando ela fez uma visita aos bastidores do filme O General, acompanhando uma amiga. Mais adiante já em Porta Do Palco, filme dedicado aos cinquenta anos de produção artística do nosso doce patrimônio Julinho Varella, ela voltou para frente da minha objetiva. No Rio, quando exibi Jimi Hendrix e a Fonoaudióloga que ela protagoniza, o cineasta Luís Rosemberg Filho me perguntou: onde você encontrou essa bela atriz de Moliére? Anos antes o mestre João Etienne tinha me dito que reconhecia o verdadeiro ator, quando este tinha uma boa vaidade, uma necessidade de exibição que começava na infância fazendo apresentações para os amiguinhos e para a família, que em geral o cômico revela um grande ator dramático, o contrário nem sempre acontece. O riso toca o especifico mágico humano para que se vertam as lágrimas da tragédia existencial.  Sua explosão expressiva de cantriz é indubitável, sob a luz da interpretação da natureza. Está claro que nada nasce pronto, é preciso um celestial esforço para o polimento, ela o fez.  Só conheci pessoalmente o Wagner Sander no início dos ensaios desse encantado Canção do Submundo. Ele fez contrariar a frase do Rogério Sganzerla, que utilizo como minha: não quero conhecer ninguém que não conheço. Jovem, exímio pianista, esse instrumento totalizante para a música como cinema para as artes, cinéfilo, conhecedor da filosofia, culto e radical, como todo artista deveria ser. Sempre fui wagneriano, hoje muito mais. Dirigir esses dois rebentos fulgurantes, tem sido um experimento, um aprendizado imensurável no sentido de dominar a arte de ser desnecessário, dominar a arte de colaborar sem atrapalhar, já que aqui, eles acendem as luzes num gabarito altíssimo. Dominar com carinho, das minas para o mundo. Ainda tive o prazer, com aquiescência da Sylvia, de convidar o Adyr Assumpção para fazer Glauber falando Brecht. Meu ator no O General e no Significações Amorosas, roteiro do Luís Rosemberg Filho, que por enquanto não reuni condições para realizar. Articulado, também diretor, dono de figura inclassificável e voz marcante, veio dar o tom mestiço ao recital. Somos todos afrodescendentes. O feminino, sensual, corrosivo discurso de Brecht e Weill, nos serve como uma metralhadora de esperanças em flor, como reação ao grave momento limítrofe das intolerâncias, que o Brasil e o mundo atravessam se ressentindo. Uma nova vida se descortina através da música. Nada é mais político do que a arte pela arte.

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