A contingência e o absoluto
Assustado com o estado geral das coisas, no
mundo onde milhões de pessoas vagam e morrem em terras estrangeiras tentando
escapar da fome e da violência, onde uma guerra se espraia mundialmente
disfarçada em conflitos regionalizados, como se não fosse uma só, e
particularmente no Brasil, país idolatradamente amado que agora causa vergonha
e decepção aos brasileiros de bem e do bem por culpa de políticos, servidores
públicos e empresários criminosos, me aninhei na imagem e na lembrança de duas
pessoas muito importantes na minha vida.
Estava/estou assustado com a crise da espécie
humana mas também, ou consequentemente, com vontade de continuar a ser feliz,
de preservar minha partícula divina, essa partícula que todo mundo tem, mesmo
os que não sabem disso. E por isso me aninhei na minha professora Angelina
Campos Felippi Viana e no meu compadre Roberto Pires, o cineasta, que
protagonizam neste fim de semana eventos culturais na Bahia. Os convites estão
lado a lado na minha telinha: dona Angelina está lançando seu livro Aventureiros
& Sonhadores amanhã, sábado, no Centro Cultural Ecoviva em
Lençóis, na Chapada Diamantina; hoje, sexta-feira, o Instituto Memória Roberto
Pires, mantido por sua família, exibe no XI Panorama Internacional Coisa de
Cinema, em Salvador, o filme restaurado Abrigo Nuclear, realizado
por ele em 1981.
Militância
Roberto Pires, além de inventar lentes
anamórficas, fazer o primeiro filme longo da Bahia (Redenção, 1958),
alimentar a semeadura do Cinema Novo com seus clássicos A grande feira e Tocaia
no asfalto, ser o mestre incontestável de sua geração de diretores,
fotógrafos e editores no que se refere à tecnologia audiovisual, foi um
ambientalista em tempo integral em uma época em que esse assunto não circulava
na sociedade nem era uma pauta importante na mídia e na academia. Nos anos 1970
suas preocupações com o destino da humanidade estavam focados na possível
escassez de água no planeta, na exaustão das reservas de petróleo e no perigo
mortal da utilização da energia nuclear para fins pacíficos. Atenção: seu foco
não era a bomba atômica, a guerra nuclear, a proliferação das ogivas nucleares
de destruição em massa. Era o lixo das centrais nucleares de produção de
eletricidade, resíduos que continuarão radioativos durante milhares de anos.
Abrigo Nuclear, do qual participei como roteirista, é exatamente sobre isso: a
superfície da Terra envenenada pela radiação, inabitável para o ser humano.
Roberto realizou outros filmes sobre o tema, como Césio 137 e Alternativa
energética, mas é no Abrigo onde sua criatividade inquieta
e o foco central de sua militância ecológica estão mais presentes, além do seu
modus operandi artesanal. Amigos e familiares acreditam em uma possibilidade
nunca comprovada que, na sua campanha contra os males da contaminação gerada
pelo uso pacífico da energia nuclear, ele mesmo foi contaminado durante as
pesquisas e filmagens de Césio 137 e Alternativa
enérgica. Nunca desistiu. Testemunhou os acidentes radiológicos de
Chernobil e de Goiania (assunto de Césia 137) e já não estava entre
nós quando aconteceu a tragédia de Fukushima. Na verdade estava, sempre estará,
como modelo de militância em prol da humanidade.
Amor
Ao aninhar meu pensamento em Roberto e em dona
Angelina, o que busco são exemplos do humanismo de que tanto estamos
necessitados nesses tempos de bestializacão da espécie. Aos 94 anos de idade,
dona Angelina está dando à luz seu livro Aventureiros & Sonhadores,
que conta um século da história de sua terra natal, Lençóis, a pequena “capital”
da Chapada Diamantina. História prenhe de garimpeiros visionários, guerras
intestinas, riqueza e pobreza com detalhes e pontos de vista que só a vivência
faz alcançar. A cidade está em festa, muitos nativos espalhados pelo mundo
estão se encaminhando para lá, um grupo de teatro ensaia uma leitura do livro
em praça pública. Toda essa movimentação porque se trata da professora que
ensinou a várias gerações, da mestra de milhares de pessoas e todas essas
pessoas se sentem profundamente agradecidas e abençoadas por ter tido a sorte
de serem encaminhadas na vida por uma mulher tão amplamente competente, amorosa
e entregue à sua missão educadora.
Ela foi minha primeira e mais importante
professora, me alfabetizou e me mostrou caminhos, e fiquei profundamente
emocionado quando me convidou para fazer um prefácio do seu livro. Cito em
seguida trecho do que escrevi, na esperança de que, lendo-o, vocês entendam a
minha emoção e o que quero dizer quando uso o conceito humanismo e rezo para
que exemplos como ela continuem a nos iluminar, a nos ajudar a criar o nosso,
de cada um, sentido da vida.
“Lembro-me de
muitos momentos desse meu aprendizado com a melhor das professoras, das
epifanias que ela fazia acontecer no meu espírito infantil. Lembranças que,
pelo tempo, vêm à tona com a textura dos sonhos e da imaginação mas que
guardam, na essência, a nitidez dos alicerces, das bases e firmamentos que
norteiam meu viver. Enquanto escrevo, minha memória insiste em focar um desses
momentos emblemáticos, acontecido nos meus cinco ou seis anos de idade. Durante
uma das aulas de dona Angelina, meu primo Augusto Senna Maciel, sentado a meu
lado e induzido por algum ensinamento ou revelação dela, afirmou o que para mim
era um absurdo: Papai Noel não existe. Contestei, discutimos, elevamos a voz,
dona Angelina se aproximou, soube da nossa discordância e nos chamou para uma
conversa reservada. Na conversa, doce como sempre, deu razão a Augusto, me
informou que os verdadeiros Papais Noéis eram nossos pais e avós, eram eles e
não um velhinho de barba branca e roupa vermelha que deixavam presentes em
nossos sapatos durante a noite de Natal. Diante do meu assombro, da minha
possível cara de bezerro desmamado, ela sorriu e ressignificou o assunto: ‘não
fique triste, você vai continuar tendo seu Papai Noel, só que agora sabendo que
ele não é um só, são vários’. Foi o dia em que dona Angelina me ensinou a
relatividade da vida, a condicionalidade, a diferença entre o absoluto e a
contingência.”
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