POUCO AMOR NÃO
É AMOR
Nelson
Rodrigues
Nem Balbino, nem Arlete confessariam o seguinte: — o
amor de ambos nascera no cemitério.
A menina acompanhava o enterro da avó. E o rapaz, que
não conhecia a morta, nem a neta, estaria interessado em outro defunto. Parou
um momento para espiar a sepultura aberta e o caixão que chegava. E viu Arlete,
à beira do túmulo, assoando-se no lencinho amarrotado. Ela adorava a avó e
estava fora de si. Fazia um sol brutal — a luz era uma agressão. Balbino
postou-se logo atrás da pequena e, sem querer, adotou uma tristeza de falso
parente, de falso conhecido. Pouco depois, estava ao lado da moça. Tudo o
interessou em Arlete, inclusive a coriza. E foi aí que começou o flerte.
Na saída do cemitério, Balbino juntou-se ao grupo de
familiares, de amigos. Pararam todos, na porta, para as despedidas. Ninguém
ali conhecia aquele rapaz fino, educado, que cumprimentava os presentes, um
por um. Esquecia-me de dizer que o rapaz estava de luto, não sei por quem.
Ao apertar a mão da menina, deixou-lhe um papelzinho.
Ela, ainda chorosa, teve um movimento de espanto, quase de susto.
Ele diz entredentes:
— Meu telefone.
Arlete, meio desconcertada, ia dizer qualquer coisa.
Mas já o rapaz se afastava, em passadas largas, como se fugisse. Pois bem: — a
pequena (jeitosa de corpo e de rosto) tomou um táxi, com o pai, a mãe e o tio.
Fez a viagem para casa com aquilo na cabeça. Chega, diz que vai ao banheiro, e
lá, com um sentimento de culpa, olha o número: — prefixo 29.
Parecia-lhe uma falta de respeito a atitude de
Balbino. Pensava: — “Num enterro, ora veja!”. Podia ter jogado fora ou rasgado
o papelzinho. Mas guardou, sei lá por quê. Decidiu, porém: — Não telefono.
Até o fim do dia, ora chorava pela avó, ora pensava em
Balbino. Deitou-se cedo, mas só conseguiu pegar no sono alta madrugada. De
manhã, bem cedinho, estava de pé. Escovou os dentes, lavou o rosto,
imaginando: — “O telefone não deve ser do trabalho, deve ser de casa”. Durante
uns dez minutos ficou matutando. Valeria a pena ou não?
Finalmente, com o coração batendo mais forte, discou.
Atende uma voz de homem. Começa:
— Foi o senhor que.
Não teve nem tempo de completar. Ele se antecipou, radiante:
— Já sei, já sei! É aquela senhorinha de ontem. Muito
prazer.
Nervosa, atalha:
— O senhor fez aquilo. Um momento. Fez aquilo em hora
e local impróprios. Afinal, o senhor não tinha o direito!
Estava ofegante, quase chorando. Do outro lado da
linha, ele se desmanchava:
— Tem toda a razão. Está ouvindo? Toda a razão. Mas
não me interprete mal. Com licença. Um minutinho só. Eu seria incapaz de,
entende? O que senti por si foi uma forte simpatia. Pelo amor de Deus, não
pense que…
Parou. Ela não sabia o que dizer, o que pensar. E o
rapaz, mais seguro, continuou:
— Viu como foi bom eu ter lhe dado o meu telefone? A
senhorinha…
Preferia “senhorinha” a “senhorita”. Podia chamá-la de
você, mas uma certa cerimônia, no começo, ajuda. Continuou, com a boca no
fone, sentindo que o romance estava nascendo:
— Lhe dei o meu telefone e vou ter a satisfação de
saber o seu nome. O meu é Balbino. — E disse, por extenso: — José Marcondes
Balbino. Por obséquio, sua graça?
Arlete vacilou. Teve medo de confiar a sua identidade
a um desconhecido. Mas refletiu que um nome é pouco, quase nada e que há muitas
Arletes por aí. Disse, não sei por quê, comovida:
— Arlete.
O outro repetiu:
— Arlete.
E ela:
— Desiludido?
Exagerou:
— Lindo, lindo. — E insistia: — Bonito nome! Dou-lhe a
minha palavra!
Ele não parou mais. Ora a chamava de senhorinha, ora
de você ou, ainda, de meu anjo. Contou que era baiano e acrescentou, feliz:
— Por isso é que falo muito.
Como a menina insistisse em tratá-lo por senhor,
Balbino arrisca:
— Seria muito sacrifício para você me chamar de você?
Arlete concordou. Era muito meiga e tinha uma
facilidade espantosa para se afeiçoar por gente, bichos, móveis. Conversaram
cerca de uma hora. Quando saiu do telefone, a mãe passou-lhe um pito:
— Tua avó foi enterrada ontem e você já está
namorando?
Começou a chorar:
— A senhora faz essa idéia de mim? Oh, mamãe? Nunca
pensei.
Explicou que era um rapaz que acabava de conhecer. Dizia
que:
— Não há nada, mamãe. Quer que eu jure?
Mas já conhecia toda a vida de Balbino. Tinha vinte e
oito anos, era advogado (embora não exercesse a profissão) e vinha tentar a
vida no Rio. No dia seguinte, foi ele que ligou. No fim de dez minutos de
conversa, a menina não se conteve:
— Você que fala tão bem… Sabe que você fala bem pra
chuchu? Por que você não segue carreira?
Tentou explicar:
— Minha filha, o negócio não é assim, não. O advogado
não tem outra saída. Ou é um Clóvis Beviláqua, ou uma besta. Já que não sou um
Clóvis Beviláqua, também não quero ser uma besta.
Ela ainda suspirou:
— Uma carreira tão bonita!
Balbino vacila e acaba dizendo:
— Olha. Há outro motivo, compreendeu? O seguinte: —
minha vocação é outra.
— Qual?
Fez um mistério:
— Você saberá um dia. Não se incomode.
Os telefonemas diários continuaram. Na missa do sétimo
dia, lá compareceu o Balbino. Não sendo parente, não sendo nada, era o mais
grave talvez e, ainda por cima, num luto total. Terminada a missa, Arlete fez a
apresentação:
— Papai, aquele rapaz que lhe falei.
O velho teve a exclamação:
— Ah, o advogado?
Passou. Dois dias depois, Arlete falava no telefone.
E, súbito, o pai arranca o aparelho das mãos da pequena: — “Deixa que eu
falo”. Disse tudo:
— Ó rapaz! Escuta. Eu sou contra namoro de esquina, de
portão. Namoro é dentro de casa. Você não tem boas intenções? O quê? Suas
intenções não são boas?
— Claro, claro!
— Então vem pra cá, rapaz! Eu te espero pra tomar um
café contigo.
O velho quando gostava de uma pessoa era de uma efusão
brutal. Mais tarde, aparece Balbino, ressabiado. A cordialidade feroz do velho
o assustava. Mas o dono da casa o recebeu de braços abertos. O convívio com as
Novas Gerações o rejuvenescia. Fez perguntas:
— O amigo exerce a profissão?
Meio sem jeito, explicou:
— É o seguinte: — estou desiludido com os colegas. Por
exemplo: — na Procuradoria do Estado conheço vários que nem sabem o que é vara.
Parece piada, mas juro e posso até citar nomes. Um procurador que não sabe o
que é vara!
O velho achou graça:
— Vejo que o amigo gosta de paradoxo. Mas há talento.
Você se esquece do Otto Lara Resende? É uma mentalidade! E brilhante!
Balbino, grave, admitiu uma exceção para o Otto, que,
segundo concordou, falava bem “pra burro”. A conversa durou até alta
madrugada. Na saída, o futuro sogro bateu-lhe nas costas:
— Venha sempre, rapaz!
A partir de então, todos os dias, Balbino ia para a
casa da namorada. Começou a ser apresentado como “meu noivo”. E toda a rua
sabia que Arlete estava de amores com um advogado.
Uma noite, a sogra vira-se para Balbino:
— Está de luto por quem?
O rapaz tomou um susto. Ele próprio não sabia. Estava
de luto, eis tudo. E teve de confessar, vermelho, confuso:
— Por ninguém. Eu sou assim mesmo.
Foi bastante honesto com a família. Disse que se
casaria quando melhorasse de situação. Fez mistério:
— Estou esperando por uma vaga. — E repetiu, baixando
a vista: — Uma vaga.
Não se sabia, nem ele disse, que vaga seria essa. Mas
os vizinhos, os parentes passaram a falar da “vaga” como de alguém, de uma
pessoa. O tempo foi passando. Cinco, seis meses, oito e nada ainda. Já o
interpelavam na calçada:
— Mas sai ou não sai essa vaga?
— Estou caprichando.
Até que o pai de Arlete avisou, piscando o olho:
— Estou mexendo também os meus pauzinhos. Tenho relações,
amizades. — E baixava a voz: — Vem por aí uma bomba.
Uma tarde, Balbino entra e é abraçado, beijado,
apalpado por todo mundo. Olha em torno: — “Mas o que é que há?” O sogro
adiantou-se, de olho rútilo:
— Rapaz! Arranjei o teu emprego. E sabe onde? Na Procuradoria!
Tu vais ser companheiro do Otto, do Laet, do Genolino. E olha: são Oitocentos
pacotes!
Atônito, Balbino olha as caras que o cercavam. Alguém
o puxa pelo braço. Desprende-se, num repelão:
— Com licença. Um momento. Meu sogro, há um equívoco.
Eu não pedi nada. Eu estava esperando uma vaga e finalmente.
No seu assombro, o velho balbucia:
— Você recusa?
Explicou:
— Um momento. É que a tal vaga saiu, finalmente. Saiu
hoje. Recebi esta tarde a comunicação.
O sogro aperta a cabeça entre as mãos:
— Quer dizer que… Então eu banquei o palhaço?
O outro perdeu a paciência:
— Escuta, escuta! Direito não é minha vocação.
Entende? Não é minha vocação. Não dou para esse troço, juro. E tenho a minha
vocação. Ouviu? Ponho a minha vocação acima de tudo! De tudo!
Esganiçou-se tanto que, afinal, conseguiu intimidar a
família. Pausa. Ele arqueja. Um dos presentes pensa: — “Será que ele é
epilético?”. O sogro o olhava, amargurado e mudo. Finalmente, o velho quer saber:
— Que vocação é essa? Pra ser melhor do que procurador
do Estado, deve ser de rajá, de Rockefeller. Fala!
O genro ergue a fronte, enche o tórax e parece
desafiar o mundo:
— Vocação de coveiro. Arranjei a vaga no São João
Batista. Coveiro, sim! É a minha vocação. Coveiro!
Houve, ali, um silêncio maravilhado. Os presentes se
entreolharam. O primeiro a se recuperar foi o velho. Abotoa Balbino:
— Isso é piada? Responde! É piada?
Berrou também:
— É a minha vocação! Todo mundo tem a sua. Eu também
tenho a minha. Se Deus quiser, hei de enterrar muita gente boa.
Ia contar que tivera o primeiro aviso de sua
predestinação quando, aos sete anos, enterrara um cachorro atropelado. Mas não
teve tempo de nada. O velho passa-lhe, por baixo, um rapa tremendo. Caiu para
se levantar e cair novamente. Saiu, de lá, a tapas, a pescoções. A sogra
berrava da porta:
— Urubu! Urubu!
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