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sexta-feira, 20 de novembro de 2015

UM CONTO DE REIS


POUCO AMOR NÃO É AMOR
Nelson Rodrigues

Nem Balbino, nem Arlete confessariam o seguinte: — o amor de ambos nascera no cemitério.
A menina acompanhava o enterro da avó. E o rapaz, que não conhecia a morta, nem a neta, estaria interessado em outro defunto. Parou um momento para espiar a sepultura aberta e o caixão que chegava. E viu Arlete, à beira do túmulo, assoando-se no lencinho amarrotado. Ela adorava a avó e estava fora de si. Fazia um sol brutal — a luz era uma agressão. Balbino postou-se logo atrás da pequena e, sem querer, adotou uma tristeza de falso parente, de falso conhecido. Pouco depois, estava ao lado da moça. Tudo o interessou em Arlete, inclusive a coriza. E foi aí que começou o flerte.
Na saída do cemitério, Balbino juntou-se ao grupo de fami­liares, de amigos. Pararam todos, na porta, para as despedidas. Ninguém ali conhecia aquele rapaz fino, educado, que cumpri­mentava os presentes, um por um. Esquecia-me de dizer que o rapaz estava de luto, não sei por quem.
Ao apertar a mão da menina, deixou-lhe um papelzinho. Ela, ainda chorosa, teve um movimento de espanto, quase de susto.
Ele diz entredentes:
— Meu telefone.
Arlete, meio desconcertada, ia dizer qualquer coisa. Mas já o rapaz se afastava, em passadas largas, como se fugisse. Pois bem: — a pequena (jeitosa de corpo e de rosto) tomou um táxi, com o pai, a mãe e o tio. Fez a viagem para casa com aquilo na cabeça. Chega, diz que vai ao banheiro, e lá, com um senti­mento de culpa, olha o número: — prefixo 29.
Parecia-lhe uma falta de respeito a atitude de Balbino. Pen­sava: — “Num enterro, ora veja!”. Podia ter jogado fora ou ras­gado o papelzinho. Mas guardou, sei lá por quê. Decidiu, po­rém: — Não telefono.
Até o fim do dia, ora chorava pela avó, ora pensava em Bal­bino. Deitou-se cedo, mas só conseguiu pegar no sono alta ma­drugada. De manhã, bem cedinho, estava de pé. Escovou os den­tes, lavou o rosto, imaginando: — “O telefone não deve ser do trabalho, deve ser de casa”. Durante uns dez minutos ficou ma­tutando. Valeria a pena ou não?
Finalmente, com o coração batendo mais forte, discou. Atende uma voz de homem. Começa:
— Foi o senhor que.
Não teve nem tempo de completar. Ele se antecipou, ra­diante:
— Já sei, já sei! É aquela senhorinha de ontem. Muito prazer.
Nervosa, atalha:
— O senhor fez aquilo. Um momento. Fez aquilo em hora e local impróprios. Afinal, o senhor não tinha o direito!
Estava ofegante, quase chorando. Do outro lado da linha, ele se desmanchava:
— Tem toda a razão. Está ouvindo? Toda a razão. Mas não me interprete mal. Com licença. Um minutinho só. Eu seria in­capaz de, entende? O que senti por si foi uma forte simpatia. Pelo amor de Deus, não pense que…
Parou. Ela não sabia o que dizer, o que pensar. E o rapaz, mais seguro, continuou:
— Viu como foi bom eu ter lhe dado o meu telefone? A senhorinha…
Preferia “senhorinha” a “senhorita”. Podia chamá-la de vo­cê, mas uma certa cerimônia, no começo, ajuda. Continuou, com a boca no fone, sentindo que o romance estava nascendo:
— Lhe dei o meu telefone e vou ter a satisfação de saber o seu nome. O meu é Balbino. — E disse, por extenso: — José Marcondes Balbino. Por obséquio, sua graça?
Arlete vacilou. Teve medo de confiar a sua identidade a um desconhecido. Mas refletiu que um nome é pouco, quase nada e que há muitas Arletes por aí. Disse, não sei por quê, comovida:
— Arlete.
O outro repetiu:
— Arlete.
E ela:
— Desiludido?
Exagerou:
— Lindo, lindo. — E insistia: — Bonito nome! Dou-lhe a minha palavra!
Ele não parou mais. Ora a chamava de senhorinha, ora de você ou, ainda, de meu anjo. Contou que era baiano e acres­centou, feliz:
— Por isso é que falo muito.
Como a menina insistisse em tratá-lo por senhor, Balbino arrisca:
— Seria muito sacrifício para você me chamar de você?
Arlete concordou. Era muito meiga e tinha uma facilidade espantosa para se afeiçoar por gente, bichos, móveis. Conver­saram cerca de uma hora. Quando saiu do telefone, a mãe pas­sou-lhe um pito:
— Tua avó foi enterrada ontem e você já está namorando?
Começou a chorar:
— A senhora faz essa idéia de mim? Oh, mamãe? Nunca pensei.
Explicou que era um rapaz que acabava de conhecer. Di­zia que:
— Não há nada, mamãe. Quer que eu jure?
Mas já conhecia toda a vida de Balbino. Tinha vinte e oito anos, era advogado (embora não exercesse a profissão) e vinha tentar a vida no Rio. No dia seguinte, foi ele que ligou. No fim de dez minutos de conversa, a menina não se conteve:
— Você que fala tão bem… Sabe que você fala bem pra chu­chu? Por que você não segue carreira?
Tentou explicar:
— Minha filha, o negócio não é assim, não. O advogado não tem outra saída. Ou é um Clóvis Beviláqua, ou uma besta. Já que não sou um Clóvis Beviláqua, também não quero ser uma besta.
Ela ainda suspirou:
— Uma carreira tão bonita!
Balbino vacila e acaba dizendo:
— Olha. Há outro motivo, compreendeu? O seguinte: — minha vocação é outra.
— Qual?
Fez um mistério:
— Você saberá um dia. Não se incomode.
Os telefonemas diários continuaram. Na missa do sétimo dia, lá compareceu o Balbino. Não sendo parente, não sendo nada, era o mais grave talvez e, ainda por cima, num luto total. Terminada a missa, Arlete fez a apresentação:
— Papai, aquele rapaz que lhe falei.
O velho teve a exclamação:
— Ah, o advogado?
Passou. Dois dias depois, Arlete falava no telefone. E, súbi­to, o pai arranca o aparelho das mãos da pequena: — “Deixa que eu falo”. Disse tudo:
— Ó rapaz! Escuta. Eu sou contra namoro de esquina, de portão. Namoro é dentro de casa. Você não tem boas intenções? O quê? Suas intenções não são boas?
— Claro, claro!
— Então vem pra cá, rapaz! Eu te espero pra tomar um ca­fé contigo.
O velho quando gostava de uma pessoa era de uma efusão brutal. Mais tarde, aparece Balbino, ressabiado. A cordialidade feroz do velho o assustava. Mas o dono da casa o recebeu de braços abertos. O convívio com as Novas Gerações o rejuve­nescia. Fez perguntas:
— O amigo exerce a profissão?
Meio sem jeito, explicou:
— É o seguinte: — estou desiludido com os colegas. Por exemplo: — na Procuradoria do Estado conheço vários que nem sabem o que é vara. Parece piada, mas juro e posso até citar no­mes. Um procurador que não sabe o que é vara!
O velho achou graça:
— Vejo que o amigo gosta de paradoxo. Mas há talento. Você se esquece do Otto Lara Resende? É uma mentalidade! E brilhante!
Balbino, grave, admitiu uma exceção para o Otto, que, se­gundo concordou, falava bem “pra burro”. A conversa durou até alta madrugada. Na saída, o futuro sogro bateu-lhe nas costas:
— Venha sempre, rapaz!
A partir de então, todos os dias, Balbino ia para a casa da namorada. Começou a ser apresentado como “meu noivo”. E toda a rua sabia que Arlete estava de amores com um advogado.
Uma noite, a sogra vira-se para Balbino:
— Está de luto por quem?
O rapaz tomou um susto. Ele próprio não sabia. Estava de luto, eis tudo. E teve de confessar, vermelho, confuso:
— Por ninguém. Eu sou assim mesmo.
Foi bastante honesto com a família. Disse que se casaria quando melhorasse de situação. Fez mistério:
— Estou esperando por uma vaga. — E repetiu, baixando a vista: — Uma vaga.
Não se sabia, nem ele disse, que vaga seria essa. Mas os vi­zinhos, os parentes passaram a falar da “vaga” como de alguém, de uma pessoa. O tempo foi passando. Cinco, seis meses, oito e nada ainda. Já o interpelavam na calçada:
— Mas sai ou não sai essa vaga?
— Estou caprichando.
Até que o pai de Arlete avisou, piscando o olho:
— Estou mexendo também os meus pauzinhos. Tenho re­lações, amizades. — E baixava a voz: — Vem por aí uma bomba.
Uma tarde, Balbino entra e é abraçado, beijado, apalpado por todo mundo. Olha em torno: — “Mas o que é que há?” O sogro adiantou-se, de olho rútilo:
— Rapaz! Arranjei o teu emprego. E sabe onde? Na Procu­radoria! Tu vais ser companheiro do Otto, do Laet, do Genolino. E olha: são Oitocentos pacotes!
Atônito, Balbino olha as caras que o cercavam. Alguém o puxa pelo braço. Desprende-se, num repelão:
— Com licença. Um momento. Meu sogro, há um equívo­co. Eu não pedi nada. Eu estava esperando uma vaga e final­mente.
No seu assombro, o velho balbucia:
— Você recusa?
Explicou:
— Um momento. É que a tal vaga saiu, finalmente. Saiu ho­je. Recebi esta tarde a comunicação.
O sogro aperta a cabeça entre as mãos:
— Quer dizer que… Então eu banquei o palhaço?
O outro perdeu a paciência:
— Escuta, escuta! Direito não é minha vocação. Entende? Não é minha vocação. Não dou para esse troço, juro. E tenho a minha vocação. Ouviu? Ponho a minha vocação acima de tu­do! De tudo!
Esganiçou-se tanto que, afinal, conseguiu intimidar a famí­lia. Pausa. Ele arqueja. Um dos presentes pensa: — “Será que ele é epilético?”. O sogro o olhava, amargurado e mudo. Final­mente, o velho quer saber:
— Que vocação é essa? Pra ser melhor do que procurador do Estado, deve ser de rajá, de Rockefeller. Fala!
O genro ergue a fronte, enche o tórax e parece desafiar o mundo:
— Vocação de coveiro. Arranjei a vaga no São João Batis­ta. Coveiro, sim! É a minha vocação. Coveiro!
Houve, ali, um silêncio maravilhado. Os presentes se en­treolharam. O primeiro a se recuperar foi o velho. Abotoa Balbino:
— Isso é piada? Responde! É piada?
Berrou também:
— É a minha vocação! Todo mundo tem a sua. Eu também tenho a minha. Se Deus quiser, hei de enterrar muita gente boa.
Ia contar que tivera o primeiro aviso de sua predestinação quando, aos sete anos, enterrara um cachorro atropelado. Mas não teve tempo de nada. O velho passa-lhe, por baixo, um rapa tremendo. Caiu para se levantar e cair novamente. Saiu, de lá, a tapas, a pescoções. A sogra berrava da porta:

— Urubu! Urubu!

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