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sábado, 26 de fevereiro de 2011

UM POUCO SOBRE O CAPITAL

Marx

PARTE DOIS

Duplo Caráter do Trabalho Representado na Mercadoria

Numa primeira aproximação, a mercadoria apareceu-nos sob um duplo aspecto: valor-de-uso e valor-de-troca. Vimos em seguida que todas as características que qualificam o trabalho enquanto produtor de valores-de-uso, desaparecem quando ele se exprime no valor propriamente dito. Este duplo caráter do trabalho consubstanciado na mercadoria foi posto em relevo, pela primeira vez, por mim. Como a economia política gira à volta deste ponto, precisamos de analisá-lo mais detalhadamente. Tomemos duas mercadorias, por exemplo, um fato e 10 metros de tecido; admitindo que a primeira tinha o dobro do valor da segunda, então se 10 metros de tecido = x, o fato = 2 x.
O fato é um valor-de-uso que satisfaz uma necessidade particular. Resultam de um gênero particular de atividade produtiva, determinada pelo seu fim, modo de operação, objeto, meios e resultado.
Ao trabalho que se manifesta na utilidade ou valor-de-uso do seu produto chamamos nós, muito simplesmente, trabalho útil. Sob este ponto de vista, ele é sempre considerado com referência à sua utilidade prática. Assim como o fato e o tecido são duas coisas úteis diferentes, [valores-de-uso qualitativamente distintos,] também o trabalho do alfaiate que faz o fato se distingue [qualitativamente] do trabalho do tecelão que faz o tecido. Se estes objetos não fossem valoresde-uso de qualidade diferente e, portanto, produtos de trabalhos úteis de qualidade diversa, não poderiam contrapor-se como mercadorias. Não se troca um fato por um fato igual, um valor-de-uso pelo mesmo valor-de-uso.
Ao conjunto dos valores-de-uso de todas as espécies corresponde um conjunto de trabalhos úteis igualmente diversos, conforme o gênero, a espécie, a variedade - uma divisão social do trabalho.
Esta é condição de existência da produção de mercadorias, embora reciprocamente a produção de mercadorias não seja condição de existência da divisão social do trabalho. Nas antigas comunidades da Índia, o trabalho encontra-se socialmente dividido sem que por isso os produtos se tornem mercadorias. Ou, tomando um exemplo mais familiar, em cada fábrica existe uma divisão sistemática do trabalho, mas a essa divisão não corresponde a troca, entre os trabalhadores, dos seus produtos individuais. Somente os produtos de trabalhos privados [autônomos] e independentes uns dos outros se apresentam uns perante os outros como mercadorias, reciprocamente permutáveis.
Em suma: o valor-de-uso de cada mercadoria contém um trabalho útil especial ou provém de uma atividade produtiva que responde a um fim particular. Não se podem contrapor valores-de-uso como mercadorias a não ser que contenham trabalhos úteis de diferente qualidade. Numa sociedade em que os produtos assumem em geral a forma de mercadoria, isto é, numa sociedade de produtores de mercadorias, a diferença entre os diversos géneros de trabalho útil, executados independentemente uns dos outros como assunto particular de produtores autônomos, conduz a um sistema multi-ramificado, a uma divisão social do trabalho. De resto, é totalmente indiferente para o fato ser usado pelo alfaiate ou por um dos seus clientes; em ambos os casos, serve de valor-de-uso. A relação entre o fato e o trabalho que o produz também não se altera absolutamente em nada pelo facto de a sua confecção constituir uma profissão particular, um elo da divisão social do trabalho. Desde que a necessidade de se vestir a isso o forçou, o homem confeccionou vestuário durante milhares de anos, antes que alguém se tornasse alfaiate. Mas a existência do tecido ou fato, ou de qualquer elemento da riqueza material não fornecida pela natureza, sempre pressupôs um trabalho produtivo especial destinado a adaptar as matérias naturais às necessidades humanas. O trabalho enquanto produtor de valores-de-uso, enquanto trabalho útil é, independentemente das formas de sociedade, condição da existência do homem, uma necessidade eterna, o mediador da circulação material entre a natureza e o homem [isto é, da vida humana].
Os valores-de-uso tecido, fato, etc. - isto é, os corpos das mercadorias - são combinações de dois elementos, matéria e trabalho. Se lhes retirarmos a soma total dos diversos trabalhos úteis que contêm, sempre resta um resíduo material. Qualquer coisa fornecida pela natureza e que nada deve ao homem. Ao produzir, o homem só pode agir tal como a própria natureza; quer dizer, ele apenas pode modificar as formas da matéria. Mais: nessa obra de simples transformação, ele é ainda constantemente coadjuvado pelas forças naturais. O trabalho não é, portanto, a única fonte dos valores-de-uso que produz, da riqueza material. Ele é o pai e a terra a mãe, como diz William Petty.
Deixemos agora a mercadoria enquanto objeto útil e voltemos ao seu valor. Segundo a nossa hipótese, o fato vale o dobro do tecido. Todavia, trata-se apenas de uma diferença quantitativa que, de momento, não nos interessa. Note-se, pois, que se 1 fato é igual a duas vezes 10 metros de tecido, 20 metros de tecido são iguais a 1 fato. Enquanto valores, o fato e o tecido são coisas da mesma substância, expressões objetivas de um trabalho idêntico. Mas a confecção dos fatos e a tecelagem são trabalhos [qualitativamente] diferentes. Existem, contudo, situações sociais em que a mesma pessoa é alternadamente alfaiate e tecelão, em que, portanto, estas duas espécies de trabalho são simples modalidades do trabalho de um mesmo indivíduo, e não funções fixas de indivíduos diferentes, tal como o fato que o nosso alfaiate faz hoje e as calças que fará amanhã são apenas variações do mesmo trabalho individual. Um simples olhar mostra ainda que, na nossa sociedade capitalista, de acordo com as flutuações da procura de trabalho, uma dada porção de trabalho humano é fornecida ora sob a forma de confecção de vestuário, ora sob a forma de tecelagem. É possível que essas variações da forma do trabalho não possam efetuar sem atritos; contudo, elas são inevitáveis.
Em última análise, se abstrairmos do seu caráter útil, toda a atividade produtiva é apenas um dispêndio de força humana. A confecção do vestuário e a tecelagem, apesar da sua diferença [qualitativa], são ambas um dispêndio produtivo de cérebro, músculos, nervos, mãos do homem e, neste sentido, trabalho humano. [Trata-se apenas de duas formas diferentes de despender trabalho humano.]
Sem dúvida, a força humana de trabalho, que não faz mais que mudar de forma nas diversas aditividades produtivas, tem de estar mais ou menos desenvolvida para poder ser despendida sob esta ou aquela forma. Mas o valor das mercadorias representa simplesmente trabalho do homem, um dispêndio de força humana em geral. Ora, tal como na sociedade civil um general ou um banqueiro desempenham um grande papel, enquanto que ao homem vulgar cabem apenas funções secundárias, o mesmo se passa com o trabalho humano: é um dispêndio da força de trabalho simples que [em média,] todo o homem comum, sem desenvolvimento especial, possui no seu organismo. É certo que o trabalho simples médio muda de caráter conforme as regiões e as épocas, mas numa dada sociedade é sempre determinado. O trabalho complexo (skilled labour, trabalho qualificado) é apenas trabalho simples potenciado, ou melhor, multiplicado, de modo que uma dada quantidade de trabalho complexo corresponde a uma quantidade maior de trabalho simples. A experiência mostra que esta redução se faz constantemente. Mesmo quando uma mercadoria é produto do trabalho mais complexo, o seu valor equipara-a numa proporção qualquer ao produto de um trabalho simples, representando, portanto, apenas uma quantidade determinada de trabalho simples. As diversas proporções segundo as quais as diferentes espécies de trabalho são reduzidas ao trabalho simples, como sua unidade de medida, estabelecem-se na sociedade sem que os produtores disso se apercebam, parecendo-lhes, portanto, estabelecidas pelo costume. Daí resulta que, na análise do valor, todas as variedades de força de trabalho devem ser consideradas como força de trabalho simples. Portanto, do mesmo modo que nos valores tecido e fato se abstrai da diferença dos seus valoresde-uso, igualmente se abstrai, no trabalho que estes valores representam, da diferença das suas formas úteis: confecção e tecelagem. E tal como os valores-de-uso tecido e fato são combinações de atividades produtivas especiais com o fio e a fazenda, enquanto que, ao invés, os valores destas coisas são meras cristalizações de um trabalho idêntico -, assim também os trabalhos contidos nesses valores relevam, não pela sua relação produtiva com o fio e a fazenda, mas apenas como um dispêndio da mesma força [ de trabalho] humana. A tecelagem e a confecção criam o tecido e o fato [como valores-de-uso] precisamente porque têm qualidades diferentes; mas [a substância de] os valores do fato e do tecido, criam-na apenas na medida em que possuem uma qualidade comum: a qualidade de trabalho humano. Contudo, o fato e o tecido não são apenas valores em geral, mas valores de uma grandeza determinada; e, de acordo, com a nossa hipótese, 1 fato vale o dobro de 10 metros de tecido.Como se explica esta diferença? A explicação está no facto de o tecido conter apenas metade do trabalho do fato, de modo que, para a produção deste último, a força de trabalho deve ser despendida durante o dobro do tempo exigido pela produção do primeiro.
Se, portanto, quanto ao valor-de-uso, o trabalho contido na mercadoria apenas é relevante qualitativamente, já no que se refere à grandeza do valor, ele apenas releva quantitativamente [uma vez que já foi reduzido a trabalho humano puro e simples]. No primeiro caso, trata-se de saber como se processa o trabalho e o que é que produz; no segundo, trata-se de saber a quantidade, a sua duração. Como a grandeza de valor de uma mercadoria representa apenas a quantidade de trabalho nela contido, daí resulta que todas as mercadorias, numa certa proporção, devem ter sempre valores da mesma grandeza. Se a força produtiva, por ex., de todos os trabalhos úteis exigidos pela confecção de um fato, permanecer constante, então a grandeza do valor dos fatos aumenta com o seu número. Se 1 fato representa x dias de trabalho, 2 fatos representarão 2x, e assim por diante. Mas admitamos que a duração do trabalho necessário à produção de 1 fato aumente para o dobro, ou se reduza a metade; no primeiro caso, 1 fato passa a ter tanto valor como anteriormente 2, e no segundo, 2 fatos passam a ter apenas o valor de 1, embora em ambos os casos o fato continue a prestar os mesmos serviços e o trabalho útil nele contido continue a ser da mesma qualidade. Mas a quantidade de trabalho gasto na sua produção, essa não permanece a mesma.
Uma quantidade maior de valores-de-uso constitui, evidentemente, uma maior riqueza material; com dois fatos podem vestir-se dois homens, com um fato, apenas um; etc. Todavia, a um acréscimo da massa da riqueza material pode corresponder um decréscimo simultâneo do seu valor. Este movimento contraditório deriva do duplo caráter do trabalho. A eficácia de um trabalho útil, num certo espaço de tempo, depende da sua força produtiva ou produtividade [12]. Por isso, o trabalho útil torna-se uma fonte mais ou menos abundante de produtos na razão direta do aumento ou da diminuição da sua força produtiva. Pelo contrário, uma variação desta força não afeta nunca diretamente o trabalho representado no valor. Uma vez que a força produtiva pertence ao trabalho concreto e útil, já não poderá afetar o trabalho desde que se abstraia dessa forma concreta e útil. Quaisquer que sejam as variações da sua força produtiva, o mesmo trabalho, no mesmo tempo, produz sempre o mesmo valor. Porém, num mesmo espaço de tempo, o mesmo trabalho produz mais valores-de-uso se aumentar a sua força produtiva, e menos se ela diminuir. Qualquer variação da força produtiva que aumente a fecundidade do trabalho e, por conseguinte, a massa dos valores-de-uso por ele produzidos, faz também diminuir o valor dessa massa assim aumentada, se reduzir o tempo total de trabalho necessário à sua produção. E vice-versa. Das considerações precedentes, resulta que, embora se não possa falar propriamente em duas espécies de trabalho na mercadoria, todavia o mesmo trabalho apresenta-se nela sob dois aspectos opostos, conforme se reporte ao valor-de-uso da mercadoria, como seu produto, ou ao valor dessa mercadoria, como sua pura expressão objetiva. Todo o trabalho é, por um lado, dispêndio, no sentido fisiológico, de força humana, e é nesta qualidade de trabalho igual,[abstrato,] que ele constitui o valor das mercadorias. Todo o trabalho é, por outro lado, dispêndio da força humana sob esta ou aquela forma produtiva, determinada por um objectivo particular, e é nessa qualidade de trabalho concreto e útil que ele produz valores-de-uso ou utilidades. Tal como a mercadoria tem, antes de tudo, de ser uma utilidade para ser um valor, assim também o trabalho tem de ser, antes de tudo, útil, para ser considerado dispêndio de força humana, trabalho humano, no sentido abstrato do termo.
Estão agora determinadas a substância do valor e a grandeza de valor. Resta analisar a forma do valor.

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