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segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Túnel do Tempo

Nunes Pereira em Belo Horizonte durante as filmagens na Oficina Goeldi do "Um Filme 100%Brazileiro"1985
O culto vudu no Brasil: a visão de um documentário
Entrevista do Professor Nunes Pereira a Sérvulo Siqueira
www.guesaaudiovisual.com/

Não se trata de macumba, mas de vudu mesmo:este culto existe no Brasil, apesar de, quando se fala nele, as pessoas pensarem só no Haiti. Embota tenha em comum com a macumba a origem africana, o vudu é um culto com características próprias. Seu panteão encontra-se em Lagos, na Nigéria e no Daomé. Os adeptos, ao contrário dos praticantes da macumba, estão diminuindo no Brasil. Nunes Pereira, um de seus estudiosos, atribui o fato à falta de continuidade na formação de sacerdotisas do culto (nochês).
"A Casa das Minas — Introdução" é parte do que se pretende um amplo documentário cinematográfico sobre o culto vudu. A oportunidade do filme, segundo Carlos Silva - juntamente com José Sette e Rolando Santos seu diretor e produtor - surge do fato de que o vudu "está se perdendo ao revés das palavras dos cultos e isto começa a desaparecer e a ser tão corrompido que não mais pode ser sequer conservado". Diz o professor Nunes Pereira, autor da obra em que se inspirou o filme: "0 documentário já não consegue mais preservar a integralidade da tradição africana, de acordo com minha conceituação vai servir para estudiosos como eu".
Com duração de 30 minutos, o documentário começa no gabinete de trabalho de Nunes Pereira - prateleiras que abrigavam uma biblioteca há pouco vendida ao governo do Pará -, com o professor recordando traços de sua meninice em São Luís do Maranhão. Estes traços se localizam na "Casa das Minas" onde Felicidade Nunes Pereira - sua mãe e uma nocbê- participava como uma das oficiantes do culto. De suas lembranças vamos para Jacarepaguá, onde o professor nos introduz num querebetã, que quer dizer terreiro, em idioma nagô.
Dona Zuleide, praticante do culto, fala de algumas de suas características. O modo de preparo da comida, que participa de um ritual onde entram também os huntós, tocadores de atabaque, únicos homens participantes de uma cerimônia oficiada exclusivamente por mulheres. O altar se encontra em uma construção ao lado do querebetã. Sua disposição, segundo Nunes Pereira, "já não tem mais nenhuma ligação com o altar especificamente africano, representa uma adulteração. O altar legítimo da tradição africana - dentro de suas concepções religiosas, politicas e sociais - é sempre uma árvore, um baobá. Entre nós é a cajazeira. É sempre uma árvore e representa como que uma catedral na natureza, um santuário. Dai o fato de dona Zuleide nos falar multo de sua ligação com a natureza".
Do altar registrado pelo filme - uma disposição triangular em torno de um quarto - contendo elementos representando divindades - passamos para um jardim onde se completará o ritual de um culto vudu. A câmera destaca pedras estranhas e bonitas que parecem ter sido esculpidas. Nunes Pereira diz que elas estão ligadas á cosmologia do culto minajêgê:
— São pedras caídas do céu. Pedras de raio ou seixos rolados do leito dos rios e têm aquela forma porque sofreram erosão devido à influência do sol ou sob a ação das águas. Não compõem nenhum significado mas estão ligadas ao culto dos vudus. Viajando no altiplano andino - na Bolívia e Peru - encontrei à margem das estradas pedras semelhantes a estas, observa Carlos Silva.
As últimas sequências do documentário registram o sacrifício de um galo e o momento em que os vudus "baixam" no querebetã.
— Este sacrifício - observa o professor - não somente "representa uma homenagem à divindade como também se constitui num alimento do vudu e da nochê. São preparados com temperos especiais que dão força às oficiantes, representando também um elemento de integração no culto. Entretanto, aquela matança do galo revelada no filme - que é uma coisa impressionante - não é vista por todo o mundo, é um fato secreto.
Carlos Silva fala dos seus planos imediatos e futuros.
— Já filmamos na Casa das Minas do Maranhão, na Rua São Pantaleão, em São Luís. A primeira parte é o que está representado no livro: a velha cajazeira. o ambiente onde se formou a meninice do professor Nunes Pereira. Por outro lado, documentamos a festa de São Sebastião de Acóssi e uma visita da Casa das Minas - dos participantes do culto vudu - ao terreiro Nagô, para caracterizar isto que o professor chama de esgalhamento, a ramificação de vários cultos dentro do tronco cultural nagô. Há neste segmento um aspecto de volta ao passado, usa-se por isso um negativo que dá um tom ligeiramente sépia.
— Iremos depois à Bahia, ao Haiti e à Africa buscar a fonte deste culto que se propagou no Brasil. E assim, teremos um painel que servirá de registro seguro para historiadores e etnólogos. Só a primeira e segunda partes do filme já estão feitas — diz Carlos Silva.
Moronguetá: uma visão da nossa cultura
- Carlos, como surgiu a idéia do filme?
— Quando foi publicado o livro "Panorama da alimentação indígena", o Rolando - um dos autores do filme - chegou em casa com a obra e nós, depois de ler e discutir, chegamos à conclusão de que ela tinha uma visão da cultura brasileira. Em segundo lugar, o que nos chamou a atenção foi o fato de que ela trata de assuntos sobre os quais não há muita coisa publicada. Existem trabalhos de Silva Mello, Câmara Cascudo e Oswaldo Orico mas de qualquer maneira a bibliografia não é muito extensa. Quando chegamos na casa do professor Nunes Pereira fomos conversar sobre o "Moronguetá", ainda não conhecíamos o livro "A casa das minas". Tomamos contato com, este livro que é uma publicação pioneira da Sociedade Antropológica Brasileira de 1947, é a primeira edição desta sociedade que foi dirigida por Artur Ramos. Depois de tomarmos conhecimento com o corpus desta obra, decidimos filmar. registrar a realidade de uma cultura que está em contágio cora outras e por isso se corrompe. Como disse um documentarista africano que esteve no Brasil, o cinema é o veiculo ideal para registrar a cultura da África, porque a cultura negra é eminentemente visual. Não tínhamos dinheiro e as possibilidades de obter um financiamento eram muito remotas. Daí optamos por filmar com um mínimo de recursos, filmar o professor aqui na biblioteca, situá-lo como um estudioso também de gabinete e depois fazer uma pesquisa de campo. Isto se constituiria numa introdução ao assunto. A pesquisa de campo seria realizada num querebepã, que é um vocábulo minajêgê usado para designar um terreiro. Por outro lado, havia a dona Zuleide Amorim, que é ligada à Casa das Minas. Assim, pensamos nós, através da venda de uma cópia deste filme, poderíamos prosseguir o nosso trabalho.
- Professor Nunes Pereira, o que é "A casa das minas"?
- A Casa das Minas é um centro de religiosidade afro-brasileira. Negros e escravos - chamados de "contrabando" - que conseguiram chegar a Minas Gerais e Bahia e mais tarde ao Maranhão, fundaram as bases da liturgia dos vudus, cujo panteon mais representativo se encontra em Lagos, na Nigéria e no Daomé. Eles trouxeram toda a liturgia do culto para o Brasil - isto já tem mais de cem anos - e, levado por trabalhadores, seringueiros e mulheres, ele estendeu-se até a Amazônia. Assim você encontra este culto também em Porto Velho. Mãe Esperança, uma maranhense octogenária, fundou um terreiro lá, que continua agora sob a direção de Chica Macaxeira. Ela é mãe de santo, o que no idioma minajêgê se diz nochê. Este culto teve uma expressão religiosa muito grande na Amazônia. Os mais conhecidos eram o de mãe Andresa Maria e o Nagô. Eu me preocupei mais com o culto vudu da Casa das Minas. Do nagô se pode dizer que era o tronco da religiosidade dos cultos vudus no Brasil e na Africa. Ele se esgalhou no culto do minajêgê mas o representativo é a imagem deste tronco puramente nagô: ioruba, fon e nagô. 0 nagô é um ramo, uma língua. Minha ligação com a Casa das Minas, vem do fato de minha mãe ter sido iniciada no culto vudu, ela era uma noviche, uma sacerdotisa ou, como se diz na umbanda, uma filha de santo. Na minha obra lá está o nome dela - Felicidade Nunes Pereira - e isto também consta no filme. 0 santo de minha mãe, seu vudu, é Poli Bogi, que juntamente com Zanadone são as figuras mais representativas do panteon minajêgê. Zanadone, no entanto, já não baixa mais no terreiro, senão episodicamente, e quando o faz é uma divindade violenta. Uma vez no Maranhão eu pude presenciar quando ela baixou em mãe Filomena, que era uma nochê. Sua ação se estendeu de tal maneira que prostou por terra várias noviches, dando-lhes feições verdadeiramente horrorosas, como se fosse uma máscara. Zanadone não baixava naquele terreiro há muitos anos. Existe um tambor para chamá-lo que tem proporções muito grandes, é maior de um metro e vem da África. É feito de uma madeira especial. Mas este santo não "baixa" mais. Ele subiu. Há uma outra divindade que não foi mencionada no meu livro mas que vai aparecer no novo a ser lançado: Savanô - uma outra divindade que eu identifiquei recentemente graças a uma conversa que tive com uma nochê de um querebepã do Maranhão.
- Professor, seria possível estabelecer uma relação de sincretismo com os santos católicos?
— Zanadone, por exemplo, eu não sei, mas Poli Bogi é São Sebastião. Entretanto, no Maranhão este sincretismo não era tão nítido como na Bahia. Por isto mesmo, mãe Andresa dizia que "santo negro é santo negro". Isto não queria dizer que os santos negros não tivessem ótimas relações com os santos católicos.
No rosto, os traços de uma verdadeira princesa negra
- Professor, qual é o santo que dona Zuleide recebe no filme ?
— E Poli Bogi, o santo da minha mãe. Dona Zuleide é ligada à Casa das Minas mas não é uma nochê. A última nochê foi mãe Filomena. Agora, na Casa do Nagô ainda existem nochês. O que aconteceu é que, com a morte de mãe Andresa Maria, o culto vudu entrou em decadência. Vieram outras nochês mas não tiveram a força de irradiação e sobretudo de penetração social que ela tinha. Um grande sociólogo francês que visitou mãe Andresa Maria reconheceu nela traços e qualidades de uma verdadeira princesa negra. Uma mulher nobre, pela maneira como o recebeu. Grandes escritores passaram pelo Maranhão e foram visitar esta famosa nochê. E havia - dando uma estrutura verdadeiramente emocionante ao culto minajêgê - um fundamento moral de alta incorruptibilidade. No entanto, com a morte de mãe Andresa Maria e, mesmo no tempo em que ela vivia, não obstante a insistência para que novos grupos de moças fossem iniciadas, as nochês voltavam as costas a esta solicitação. Por outro lado, era preciso que as noviches fossem virgens, embora este não seja um fator fundamental, uma vez que não havia necessidade de comprovação. E houve também perseguições policiais, porque o culto vudu era proibido.
- Não havia uma identificação com a magia negra?
— Há magia negra no vudu mas há também uma identificação com a maçonaria, pelo fato de que ambos têm uma linguagem secreta. Nesta minha obra que vai editada agora, eu faço largas referências às interligações da maçonaria com o vudu. Os maçons ajudaram muito o movimento de libertação dos escravos. Tanto assim que quando morria um maçon eles batiam tambor na Casa das Minas em homenagem ao morto. Entretanto, só agora descobri elementos que provam isto. Este é um estudo que pretendo desenvolver amplamente e já estou no rastro de vários documentos que provam esta ligação. Eu mesmo já assisti ao enterro de um maçom e obrigatoriamente o cortejo parava na porta da Casa das Minas quando o tambor batia em surdina. O aspecto desta ligação rta mais político e nascia da integração destas duas sociedades secretas.
Carlos Silva observa que "na Casa das Minas do Maranhão, situada na Rua São Pantaleão, em São Luís, durante a festa que nós filmamos, você vê um altar sacrário católico". - Num determinado momento, entram as rezadeiras com uma orquestra de trombones, banjos e começam a cantar ladainhas. Neste instante, o povo canta junto. Quando acaba a cantoria, entram as noviches e cantam uma outra música em língua africana. E aí que você nota a distinção que elas querem fazer. Este é um costume muito antigo que demonstra o desejo de camuflar - através da introdução de elementos da liturgia católica - a sua crença.
-- Professor, como é que o sr., um estudioso vê o filme? Qual é a sua importância?
— A importância do filme está no fato de ele fixar verdadeiramente aspectos legítimos e firmar também adulterações que foram feitas no culto. Uma delas é, por exemplo, o fato de dona Zuleide fazer o sacrifício do galo à vista de todos. O sacrifício de animais; galinhas, cabras, carneiros, cobras é feito sempre numa certa área do querebetã por homens, sacrificadores especiais, e não por mulheres. Mesmo no bogã de mãe Valentina, na Bahia, que eu frequentei — da linha Minasmari, uma outra extensão do culto — são somente homens os sacrificadores. O filme confirma a autenticidade de meus estudos e de adulterações muito sérias na estrutura litúrgica. E a importância disto para o estudioso é que ajuda a restabelecer a pureza e a continuidade da tradição.

Matéria publicada no jornal O GLOBO em 25 de agosto de 1977.

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