A IDEIA DO
EZEQUIEL MAIA
Machado de
Assis
A idéia do
Ezequiel Maia era achar um mecanismo que lhe permitisse rasgar o véu ou revestimento
ilusório que dá o aspecto material às coisas. Ezequiel era idealista. Negava
abertamente a existência dos corpos. Corpo era uma ilusão do espírito,
necessária aos fins práticos da vida, mas despida da menor parcela de
realidade. Em vão os amigos lhe ofereciam finas viandas, mulheres deleitosas, e
lhe pediam que negasse, se podia, a realidade de tão excelentes coisas. Ele
lastimava, comendo, a ilusão da comida; lastimava-se a si mesmo, quando tinha
ante si os braços magníficos de uma senhora. Tudo concepção do espírito; nada
era nada. Esse mesmo nome de Maia não o tomou ele, senão como um símbolo.
Primitivamente, chamava-se Nóbrega; mas achou que os hindus celebram uma deusa,
mãe das ilusões, a que dão o nome de Maia, e tanto bastou para que trocasse por
ele o apelido de família.
A opinião dos
amigos e parentes era que este homem tinha o juízo a juros naquele banco
invisível, que nunca paga os juros, e, quando pode, guarda o capital. Parece
que sim; parece também que ele não tocou de um salto o fundo do abismo, mas
escorregando, indo de uma restauração da cabala para outra da astrologia, da
astrologia à quiromancia, da quiromancia à charada, da charada ao espiritismo,
do espiritismo ao niilismo idealista. Era inteligente e lido; formara-se em
matemáticas, e os professores desta ciência diziam que ele a conhecia como
gente.
Depois de
largo cogitar, achou Ezequiel um meio: abstrair-se pelo nariz. Consistia em
fincar os olhos na extremidade do nariz, à maneira do faquir, embotando a
sensibilidade ao ponto de perder toda a consciência do mundo exterior. Cairia
então o véu ilusório das coisas; entrar-se-ia no mundo exclusivo dos espíritos.
Dito e feito. Ezequiel metia-se em casa, sentava-se na poltrona, com as mãos
espalmadas nos joelhos, e os olhos na ponta do nariz. Pela afirmação dele, a
abstração operava-se em vinte minutos, e poderia fazer-se mais cedo, se ele não
tivesse o nariz tão extenso. A inconveniência de um nariz comprido é que o
olhar, desde que transpusesse uma certa linha, exercia mais facilmente a
miserável função ilusória. Vinte minutos, porém, era o prazo razoável de uma
boa abstração. O Ezequiel ficava horas e horas, e às vezes dias e dias,
sentado, sem se mexer, sem ver nem ouvir; e a família (um irmão e duas
sobrinhas) preferia deixá-lo assim, a acordá-lo; não se cansaria, ao menos, na
perpétua agitação do costume.
— Uma vez
abstrato, dizia ele aos parentes e familiares, liberto-me da ilusão dos
sentidos. A aparência da realidade extingue-se, como se não fosse mais do que
um fumo sutil, evaporado pela substância das coisas. Não há então corpos;
entesto com os espíritos, penetro-os, revolvo-os, congrego-me, transfundo-me
neles. Não sonhaste a noite passada comigo, Micota?
— Sonhei,
titio, mentia a sobrinha.
— Não era
sonho; era eu mesmo que estava contigo; por sinal que me pedias as festas, e eu
prometi-te um chapéu, um bonito chapéu enfeitado de plumas…
— Isso é
verdade, acudia a sobrinha.
— Tudo
verdade, Micota; mas a verdade única e verdadeira. Não há outra; não pode haver
verdade contra verdade, assim como não há sol contra sol.
As
experiências do Ezequiel repetiram-se durante seis meses. Nos dois primeiros
meses, eram simples viagens universais; percorria o globo e os planetas dentro
de poucos minutos, aniquilava os séculos, abrangia tudo, absorvia tudo,
difundia-se em tudo. Saciou assim a primeira sede da abstração. No terceiro
mês, começou uma série de excursões analíticas. Visitou primeiramente o
espírito do padeiro da esquina, de um barbeiro, de um coronel, de um
magistrado, vizinhos da mesma rua; passou depois ao resto da paróquia, do
distrito e da capital, e recolheu quantidade de observações interessantes. No
quarto mês empreendeu um estudo que lhe comeu cinqüenta e seis dias: achar a
filiação das idéias, e remontar à primeira idéia do homem. Escreveu sobre este
assunto uma extensa memória, em que provou a todas as luzes que a primeira
idéia do homem foi o círculo, não sendo o homem simbolicamente outra coisa: —
um círculo lógico, se o considerarmos na pura condição espiritual; e se o
tomarmos com o invólucro material, um círculo vicioso. E exemplificava. As
crianças brincam com arcos, fazem rodas umas com as outras; os legisladores
parlamentares sentam-se geralmente em círculo, e as constantes alterações do
poder, que tanta gente condena, não são mais do que uma necessidade fisiológica
e política de fazer circular os homens. Que são a infância e a decrepitude,
senão as duas pontas ligadas deste círculo da vida? Tudo isso lardeado de
trechos latinos, gregos e hebraicos, verdadeiro pesadelo, fruto indigesto de
uma inteligência pervertida. No sexto mês…
— Ah! meus
amigos, o sexto mês é que me trouxe um achado sublime, uma solução ao problema
do senso moral. Para os não cansar; restrinjo-me ao exame comparativo que fiz
em dois indivíduos da nossa rua, o Neves do nº 25, e o Delgado. Sabem que eles
ainda são parentes.
E aí começou
o Ezequiel uma narração tão extraordinária, que os amigos não puderam ouvir sem
algum interesse. Os dois vizinhos eram da mesma idade, mais ou menos, quarenta
e tantos anos, casados, com filhos, sendo que o Neves liquidara o negócio desde
algum tempo, e vivia das rendas, ao passo que o Delgado continuara o negócio, e
justamente falira três semanas antes.
— Vocês
lembram-se ter visto o Delgado entrar aqui em casa um dia muito triste?
Ninguém se
lembrava, mas todos disseram que sim.
— Desconfiei
do negócio, continuou o Ezequiel, abstraí-me, e fui direito a ele. Achei-lhe a
consciência agitada, gemendo, contorcendo-se; perguntei-lhe o que era, se tinha
praticado alguma morte, e respondeu-me que não; não praticara morte nem roubo,
mas espancara a mulher, metera-lhe as mãos na cara, sem motivo, por um assomo
de cólera. Cólera passageira, disse-lhe, e uma vez que façam as pazes… — Estão
feitas, acudiu ele; Zeferina perdoou-me tudo, chorando; ah! doutor, é uma santa
mulher! — E então? — Mas não posso esquecer que lhe dei, não me perdôo isto;
sei que foi na cegueira da raiva, mas não posso perdoar-me, não posso. E a
consciência tornou a doer-lhe, como a princípio, inquieta, convulsa. Dá cá
aquele livro, Micota.
Micota
trouxe-lhe o livro, um livro manuscrito, in folio, capa de couro escuro e
lavrado. O Ezequiel abriu-o na página 140, onde o nome do Delgado estava
escrito com esta nota: — “Este homem possui o senso moral”. Escrevera a nota,
logo depois daquele episódio; e todas as experiências futuras não vieram senão
confirmar-lhe a primeira observação.
— Sim, ele
tem o senso moral, continuou o Ezequiel. Vocês vão ver se me enganei. Dias
depois, tendo-me abstraído, fui logo a ele, e achei-o na maior agitação. —
Adivinho, disse-lhe; houve outra expansão muscular, outra correção… Não me
respondeu nada; a consciência mordia-se toda, presa de um furor extraordinário.
Como se apaziguasse de quando em quando, aproveitei os intervalos para teimar
com ele. Disse-me então que jurara falso para salvar um amigo, ato de covardia
e de impiedade. Para atenuá-lo, lembrava-se dos tormentos da véspera, da luta
que sustentara antes de jazer a promessa de ir jurar falso; recordava também a
amizade antiga ao interessado, os favores recebidos, uns de recomendação,
outros de amparo, alguns de dinheiro; advertia na obrigação de retribuir os
benefícios, na ridicularia de uma gratidão teórica, sentimental, e nada mais.
Quando ele amontoava essas razões de justificação ou desculpa, é que a
consciência parecia tranqüila; mas, de repente, todo o castelo voava a um
piparote desta palavra: “Não devias ter jurado falso”. E a consciência
revolvia-se, frenética, desvairada, até que a própria fadiga lhe trazia algum descanso.
Ezequiel
referiu ainda outros casos. Contou que o Delgado, por sugestões de momento,
faltara algumas vezes à verdade, e que, a cada mentira, a consciência raivosa
dava sopapos em si mesma. Enfim, teve o desastre comercial, e faliu. O sócio,
para abrandar a inclemência dos fados, propôs-lhe um arranjo de escrituração.
Delgado recusou a pés juntos; era roubar os credores, não devia fazê-lo.
Debalde o sócio lhe demonstrava que não era roubar os credores, mas resguardar
a família, coisa diferente. Delgado abanou a cabeça. Não e não; preferia ficar
pobre, miserável, mas honrado; onde houvesse um recanto de cortiço e um pedaço
de carne-seca, podia viver. Demais, tinha braços. Vieram as lágrimas da mulher,
que lhe não pediu nada mas trouxe as lágrimas e os filhos. Nem ao menos as
crianças vieram chorando; não, senhor; vieram alegres, rindo, pulando muito,
sublinhando assim a crueldade da fortuna. E o sócio, ardilosamente ao ouvido: —
Ora vamos; veja você se é lícito trair a confiança destes inocentes. Veja se…
Delgado afrouxou e cedeu.
— Não, nunca
me há de esquecer o que então se passou naquela consciência, continuou o
Ezequiel; era um tumulto, um clamor, uma convulsão diabólica, um ranger de
dentes, uma coisa única. O Delgado não ficava quieto três minutos; ia de um
lado para outro, atônito, fugindo a si mesmo. Não dormiu nada a primeira noite.
De manhã saiu para andar à toa; pensou em matar-se; chegou a entrar em uma casa
de armas, à Rua dos Ourives, para comprar um revólver, mas advertiu que não
tinha dinheiro, e retirou-se. Quis deixar-se esmagar por um carro. Quis
enforcar-se com o lenço. Não pensava no código; por mais que o revolvesse, não
achava lá a idéia da cadeia. Era o próprio delito que o atormentava. Ouvia
vozes misteriosas que lhe davam o nome de falsário, de ladrão; e a consciência
dizia-lhe que sim, que ele era um ladrão e um falsário. Às vezes pensava em
comprar um bilhete de Espanha, tirar a sorte grande, convocar os credores,
confessar tudo, e pagar-lhes integralmente, com juro, um juro alto, muito alto,
para puni-lo do crime… Mas a consciência replicava logo que era um sofisma, que
os credores seriam pagos, é verdade, mas só os credores. O ato ficava intacto.
Queimasse ele os livros e dispersasse as cinzas ao vento, era a mesma coisa; o
crime subsistia. Assim passou três noites, três noites cruéis, até que no
quarto dia, de manhã, resolveu ir ter com o Neves e revelar-lhe tudo.
— Descanse,
titio, disse-lhe uma das sobrinhas, assustada com o fulgor dos olhos do
Ezequiel.
Mas o
Ezequiel respondeu que não estava cansado, e contaria o resto.
O resto era
estupendo. O Neves lia os jornais no terraço, quando o Delgado lhe apareceu. A
fisionomia daquele era tão bondosa, a palavra com que o saudou — “Anda cá,
Juca!” vinha tão impregnada da velha familiaridade, que o Delgado esmoreceu.
Sentou-se ao pé dele, acanhado, sem força para lhe dizer nem lhe pedir nada, um
conselho, ou, quando menos, uma consolação. Em que língua narraria o delito a
um homem cuja vida era um modelo, cujo nome era um exemplo? Viveram juntos;
sabia que a alma do Neves era como um céu imaculado, que só interrompia o azul
para cravejá-lo de estrelas. Estas eram as boas palavras que ele costumava
dizer aos amigos. Nenhuma ação que o desdourasse. Não espancara a mulher, não
jurara falso, não emendara a escrituração, não mentiu, não enganou ninguém.
— Que tem
você? perguntou o Neves.
— Vou
contar-lhe uma coisa grave, explodiu o Delgado; peço-lhe desde já que me
perdoe.
Contou-lhe
tudo. O Neves, que a princípio o ouvira com algum medo, por ele lhe ter pedido
perdão, depressa respirou; mas não deixou de reprovar a imprudência do Delgado.
Realmente, onde tinha ele a cabeça para brincar assim com a cadeia? Era negócio
grave; urgia abafá-lo, e, em todo caso, estar alerta. E recordava-lhe o conceito
em que sempre teve o tal sócio. — “Você defendia-o então; e aí tem a bela
prenda. Um maluco!” O Delgado, que trazia consigo o remorso, sentiu
incutir-se-lhe o terror; e, em vez de um remédio, levou duas doenças.
“Justos céus!
exclamou consigo o Ezequiel, dar-se-á que este Neves não tenha o senso moral?”
Não o deixou
mais. Esquadrinhou-lhe a vida; talvez alguma ação do passado, alguma coisa…
Nada; não achou nada. As reminiscências do Neves eram todas de uma vida
regular, metódica, sem catástrofes, mas sem infrações. O Ezequiel estava
atônito. Não podia conciliar tanta limpeza de costumes com a absoluta ausência
de senso moral. A verdade, porém, é que o contraste existia. Ezequiel ainda
advertiu na sutileza do fenômeno e na conveniência de verificá-lo bem.
Dispôs-se a uma longa análise. Entrou a acompanhar o Neves a toda a parte, em
casa, na rua, no teatro, acordado ou dormindo, de dia ou de noite.
O resultado
era sempre o mesmo. A notícia de uma atrocidade deixava-o interiormente
impassível; a de uma indignidade também. Se assinava qualquer petição (e nunca
recusou nenhuma) contra um ato impuro ou cruel, era por uma razão de
conveniência pública, a mesma que o levava a pagar para a Escola Politécnica,
embora não soubesse matemáticas. Gostava de ler romances e de ir ao teatro; mas
não entendia certos lances e expressões, certos movimentos de indignação, que
atribuía a excessos de estilo. Ezequiel não lhe perdia os sonhos, que eram, às
vezes, extraordinários. Este, por exemplo: sonhou que herdara as riquezas de um
nababo, forjando ele mesmo o testamento e matando o testador. De manhã, ainda
na cama, recordou todas as peripécias do sonho, com os olhos no teto, e soltou
um suspiro.
Um dia, um
fâmulo do Neves, andando na rua, viu cair uma carteira do bolso de um homem,
que caminhava adiante dele, apanhou-a e guardou-a. De noite, porém, surgiu-lhe
este caso de consciência: — se um caído era o mesmo que um achado. Referiu o
negócio ao Neves, que lhe perguntou, antes de tudo, se o homem vira cair a
carteira; sabendo que não, levantou os ombros. Mas, conquanto o fâmulo fosse
grande amigo dele, o Neves arrependeu-se do gesto, e, no dia seguinte,
recomendou-lhe a entrega da carteira; eis as circunstâncias do caso. Indo de
bond, o condutor esqueceu-se de lhe pedir a passagem; Neves, que sabia o valor
do dinheiro, saboreou mentalmente esses duzentos réis caídos; mas advertiu que
algum passageiro poderia ter notado a falta, e, ostensivamente, por cima da
cabeça de outros, deu a moeda ao condutor. Uma idéia traz outra; Neves
lembrou-se que alguém podia ter visto cair a carteira e apanhá-la o fâmulo; foi
a este, e compeliu-o a anunciar o achado. “A consideração pública, Bernardo,
disse ele, é a carteira que nunca se deve perder.”
Ezequiel
notou que este adágio popular — ladrão que furta a ladrão tem cem anos de
perdão — estava incrustado na consciência do Neves, e parecia até inventado por
ele. Foi o único sentimento de horror ao crime, que lhe achou; mas,
analisando-o, descobriu que não era senão um sentimento de desforra contra o
segundo roubado, o aplauso do logro, uma consolação no prejuízo, um antegosto
do castigo que deve receber todo aquele que mete a mão na algibeira dos outros.
Realmente, um
tal contraste era de ensandecer ao homem mais ajuizado do universo. O Ezequiel fez
essa mesma reflexão aos amigos e parentes; acrescentou que jurara aos seus
deuses achar a razão do contraste, ou suicidar-se. Sim, ou morreria, ou daria
ao mundo civilizado a explicação de um fenômeno tão estupendo como a
contradição da consciência do Neves com as suas ações exteriores… Enquanto ele
falava assim, os olhos chamejavam muito. Micota, a um sinal do pai, foi buscar
à janela uma das quartinhas d’água, que ali estavam ao fresco, e trouxe-a a
Ezequiel. Profundo Ezequiel! tudo entendeu, mas aceitou a água, bebeu dois ou
três goles, e sorriu para a sobrinha. E continuou dizendo que sim, senhor, que
acharia a razão, que a formularia em um livro de trezentas páginas…
— Trezentas
páginas, estão ouvindo? Um livro grosso assim…
E estendia
três dedos. Depois descreveu o livro. Trezentas páginas, com estampas, uma
fotografia da consciência do Neves e outra das suas ações. Jurava que ia mandar
o livro a todas as academias do universo, com esta conclusão em forma de
epígrafe: “Há virtualmente um pequeno número de gatunos, que nunca furtaram um
par de sapatos”.
— Coitado!
diziam os amigos descendo as escadas. Um homem de tanto talento!
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