Filme Labirinto de Pedra
Querem acabar com o audiovisual brasileiro
Por Orlando Senna
A partir de 2003, com a consolidação da agência reguladora e
fiscalizadora Ancine, a instituição da Condecine, tributos cobrados na própria
atividade e investidos nela, e a criação de um Fundo Setorial, um projeto
estatal inteligente e inédito ancorou o forte crescimento do audiovisual
brasileiro, levando o Brasil a ser o décimo mercado audiovisual do mundo. Essa
política pública, escalonada, gradual, tem como meta estabelecer o País como
quinto mercado mundial até a próxima década. A última ação regulatória de peso,
a lei da tv por assinatura, com quatro anos de vigência já provocou o aumento
da produção em mais de 100%. Outro bom exemplo é o cinema: são poucos, bem
poucos, os países que conseguem ter 18% da bilheteria nacional para seus
próprios filmes como acontece no Brasil.
A Condecine-Contribuição para o
Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional incide sobre todos os
segmentos industriais, comerciais e tecnológicos da atividade, gerando a maior
parte dos recursos necessários. Ou seja, os recursos vêm da própria
atividade. Ao contrário da
tendência geral de queda de outras grandes atividades econômicas, o audiovisual
cresce, seu peso na economia já é maior do que o da indústria farmacêutica. Sua
condição autoalimentadora blinda o audiovisual contra a crise econômica e
política que o Brasil está enfrentando.
Ou blindava. Este mês
as empresas de telecomunicações, conhecidas como teles, impetraram um mandado
de segurança contra a Condecine. O argumento é que não fazem parte da cadeia
produtiva do audiovisual, apesar da telefonia prestar serviços de distribuição
e recepção de conteúdos audiovisuais. Na verdade se trata de mais um ataque do
capital internacionalizado à soberania brasileira e à sua autonomia
legislativa. Quando falamos em atividade audiovisual não nos referimos apenas
(e esse apenas é uma figura de linguagem conhecida como ironia) à enorme
importância cultural do cinema, tv, vídeo, videogame e toda a gama das artes
audiovisuais e de sua inigualável penetração psicossocial. Estamos falando
também do mais importante setor econômico do século XXI, de uma poderosa
atividade industrial-comercial que gera, direta e indiretamente, trabalho,
renda e segurança familiar à população. O que significa que o ataque das teles
impacta em cheio, ou no bolso, a sociedade civil brasileira.
Teles
e telas
A Condecine das teles
gera cerca de um bilhão de reais anuais, 80% de toda a arrecadação para o Fundo
Setorial. A participação das teles nessa arrecadação reflete a enormidade dos
lucros dessas empresas, boa parte deles remetidos para outros países, já que
90% dos acessos telefônicos são controlados por quatro corporações com matrizes
no exterior ou associadas a matrizes estrangeiras: Telmex (Claro, Embratel,
NET), Oi, Telefônica/Vivo e Vivendi. As tarifas cobradas por essas empresas no
Brasil são as mais caras do mundo e os serviços são de péssima qualidade (as
teles estão em primeiro lugar na lista nacional de reclamações de usuários). Sem
nos esquecermos que as teles são concessionárias de um serviço público e estão
sempre em choque com o monitoramento da Anatel, a Agência Nacional de
Telecomunicações.
Por que, de verdade, as teles não querem pagar o tributo? O argumento de
que não fazem parte da cadeia produtiva é uma balela, já que as cadeias
produtivas são, por definição, o conjunto de etapas que chegam a um bem ou um
serviço e à sua inserção no mercado (“estágios técnicos de produção e
distribuição”). Uma das meias respostas possíveis, porque não deve ser a
resposta inteira, é que essas empresas de telefonia também querem ser
produtoras de conteúdo, passando a disputar esse segmento do mercado com as
empresas de radiodifusão, com a televisão. Querem produzir e distribuir filmes,
séries e novelas contaminados pela visão e prática de seu capitalismo predador.
Ou, simplesmente, pretendem cumprir a fundo a estratégia predatória de seu
modelo de capitalismo, que exige vítimas — e, nesse sentido perverso, as artes
audiovisuais são as mais poderosas das armas.
A vítima pretendida pelas teles é o estado brasileiro, é desmoralizar a
governança. Os danos colaterais, pretendidos ou não, atingem diretamente a
sociedade brasileira. A sociedade é a vítima principal. Caso as teles não
paguem o tributo, o governo estima que a saudável situação do audiovisual será
interrompida, com uma drástica diminuição (talvez 70%) da produção para cinema
e tv e com a inviabilização do projeto que está sendo iniciado no sentido do
Brasil ser um importante produtor de videogames, o maior segmento econômico da
atividade em escala mundial.
Se as teles conseguem consumar o crime, milhares de empregos sumirão
pelo ralo. E, voltando ao outro lado da questão, menos conteúdo brasileiro no
cinema, tv, internet e qualquer mídia também é uma adversidade para a
consciência de identidade, cidadania e pertencimento dos brasileiros. Os
poderes executivo e judiciário têm de reagir à altura a esta intentona das
teles mas, principalmente, a sociedade tem de se fazer ouvir.
Formação
No meio dessa situação de enfrentamento com o modelo arcaico e brutal do
capitalismo multinacional das teles, assoma uma consulta pública do Ministério
da Educação sobre a Base Nacional Comum Curricular, onde o ensino do
audiovisual é completamente ignorado. Em um tempo em que várias instituições e
governos propõem o ensino do audiovisual em todos os níveis de formação, do
fundamental ao superior, pela capital importância dessa linguagem na vida
contemporânea, o Ministério da Educação demonstra uma ignorância surpreendente,
um atraso de dar pena.
O Forcine-Fórum Brasileiro de Ensino de Cinema e Audiovisual e outras
associações relacionadas com o tema estão se organizando para reivindicar a
inclusão do audiovisual nos currículos como área importante da formação. Ataques
frontais à soberania brasileira por parte de grupos econômicos estrangeiros é
uma ameaça que vem de fora, desconhecimento do tempo em que vivemos por parte
do Ministério da Educação é uma ameaça que vem de dentro. Ainda bem que há
tempo para corrigir.
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