MACONHA LIVRE DE PRE=CONCEITOS
Por que a
maconha é proibida? Porque faz mal à saúde. Será mesmo? Então, por que o bacon
não é proibido? Ou as anfetaminas? E, diga-se de passagem, nenhum mal sério à
saúde foi comprovado para o uso esporádico de maconha. A guerra contra essa
planta foi motivada muito mais por fatores raciais, econômicos, políticos e
morais do que por argumentos científicos. E algumas dessas razões são
inconfessáveis. Tem a ver com o preconceito contra árabes, chineses, mexicanos
e negros, usuários freqüentes de maconha no começo do século XX. Deve muito aos
interesses de indústrias poderosas dos anos 20, que vendiam tecidos sintéticos
e papel e queriam se livrar de um concorrente, o cânhamo. Tem raízes também na
bem-sucedida estratégia de dominação dos Estados Unidos sobre o planeta. E, é
claro, guarda relação com o moralismo judaico-cristão (e principalmente
protestante-puritano), que não aceita a idéia do prazer sem merecimento – pelo
mesmo motivo, no passado, condenou-se a masturbação.
Não é
fácil falar desse assunto – admito que levei um dia inteiro para compor o
parágrafo acima. O tema é tão carregado de ideologia e as pessoas têm
convicções tão profundas sobre ele que qualquer convite ao debate, qualquer
insinuação de que estamos lidando mal com o problema já é interpretada como
“apologia às drogas” e, portanto, punível com cadeia. O fato é que, apesar da
desinformação dominante, sabe-se muito sobre a maconha. Ela é cultivada há
milênios e centenas de pesquisas já foram feitas sobre o assunto. O que tentei
fazer foi condensar nestas páginas o conhecimento que a humanidade reuniu sobre
a droga nos milênios em que convive com ela.
Por que é proibido?
“O corpo
esmagado da menina jazia espalhado na calçada um dia depois de mergulhar do
quinto andar de um prédio de apartamentos em Chicago. Todos disseram que ela
tinha se suicidado, mas, na verdade, foi homicídio. O assassino foi um
narcótico conhecido na América como marijuana e na história como haxixe. Usado
na forma de cigarros, ele é uma novidade nos Estados Unidos e é tão perigoso
quanto uma cascavel.” Começa assim a matéria “Marijuana: assassina de jovens”,
publicada em 1937 na revista American Magazine. A cena nunca aconteceu. O texto
era assinado por um funcionário do governo chamado Harry Anslinger. Se a
maconha, hoje, é ilegal em praticamente todo o mundo, não é exagero dizer que o
maior responsável foi ele.
Nas
primeiras décadas do século XX, a maconha era liberada, embora muita gente a
visse com maus olhos. Aqui no Brasil, maconha era “coisa de negro”, fumada nos
terreiros de candomblé para facilitar a incorporação e nos confins do país por
agricultores depois do trabalho. Na Europa, ela era associada aos imigrantes
árabes e indianos e aos incômodos intelectuais boêmios. Nos Estados Unidos,
quem fumava eram os cada vez mais numerosos mexicanos – meio milhão deles
cruzaram o Rio Grande entre 1915 e 1930 em busca de trabalho. Muitos não
acharam. Ou seja, em boa parte do Ocidente, fumar maconha era relegado a
classes marginalizadas e visto com antipatia pela classe média branca.
Pouca
gente sabia, entretanto, que a mesma planta que fornecia fumo às classes baixas
tinha enorme importância econômica. Dezenas de remédios – de xaropes para tosse
a pílulas para dormir – continham cannabis. Quase toda a produção de papel
usava como matéria-prima a fibra do cânhamo, retirada do caule do pé de
maconha. A indústria de tecidos também dependia da cannabis – o tecido de
cânhamo era muito difundido, especialmente para fazer cordas, velas de barco,
redes de pesca e outros produtos que exigissem um material muito resistente. A
Ford estava desenvolvendo combustíveis e plásticos feitos a partir do óleo da
semente de maconha. As plantações de cânhamo tomavam áreas imensas na Europa e
nos Estados Unidos.
Em 1920, sob
pressão de grupos religiosos protestantes, os Estados Unidos decretaram a
proibição da produção e da comercialização de bebidas alcoólicas. Era a Lei
Seca, que durou até 1933. Foi aí que Henry Anslinger surgiu na vida pública
americana – reprimindo o tráfico de rum que vinha das Bahamas. Foi aí, também,
que a maconha entrou na vida de muita gente – e não só dos mexicanos. “A
proibição do álcool foi o estopim para o ‘boom’ da maconha”, afirma o
historiador inglês Richard Davenport-Hines, especialista na história dos
narcóticos, em seu livro The Pursuit of Oblivion (A busca do esquecimento,
ainda sem versão para o Brasil). “Na medida em que ficou mais difícil obter
bebidas alcoólicas e elas ficaram mais caras e piores, pequenos cafés que
vendiam maconha começaram a proliferar”, escreveu.
Anslinger
foi promovido a chefe da Divisão de Controle Estrangeiro do Comitê de Proibição
e sua tarefa era cuidar do contrabando de bebidas. Foi nessa época que ele
percebeu o clima de antipatia contra a maconha que tomava a nação. Clima esse
que só piorou com a quebra da Bolsa, em 1929, que afundou a nação numa
recessão. No sul do país, corria o boato de que a droga dava força sobre-humana
aos mexicanos, o que seria uma vantagem injusta na disputa pelos escassos
empregos. A isso se somavam insinuações de que a droga induzia ao sexo
promíscuo (muitos mexicanos talvez tivessem mais parceiros que um americano
puritano médio, mas isso não tem nada a ver com a maconha) e ao crime (com a
crise, a criminalidade aumentou entre os mexicanos pobres, mas a maconha é
inocente disso). Baseados nesses boatos, vários Estados começaram a proibir a
substância. Nessa época, a maconha virou a droga de escolha dos músicos de
jazz, que afirmavam ficar mais criativos depois de fumar.
Anslinger
agarrou-se firme à bandeira proibicionista, batalhou para divulgar os mitos
antimaconha e, em 1930, quando o governo, preocupado com a cocaína e o ópio,
criou o FBN (Federal Bureau of Narcotics, um escritório nos moldes do FBI para
lidar com drogas), ele articulou para chefiá-lo. De repente, de um cargo
burocrático obscuro, Anslinger passou a ser o responsável pela política de
drogas do país. E quanto mais substâncias fossem proibidas, mais poder ele
teria.
Mas é
improvável que a cruzada fosse motivada apenas pela sede de poder. Outros
interesses devem ter pesado. Anslinger era casado com a sobrinha de Andrew
Mellon, dono da gigante petrolífera Gulf Oil e um dos principais investidores
da igualmente gigante Du Pont. “A Du Pont foi uma das maiores responsáveis por
orquestrar a destruição da indústria do cânhamo”, afirma o escritor Jack Herer,
em seu livro The Emperor Wears No Clothes (O imperador está nu, ainda sem
tradução). Nos anos 20, a empresa estava desenvolvendo vários produtos a partir
do petróleo: aditivos para combustíveis, plásticos, fibras sintéticas como o
náilon e processos químicos para a fabricação de papel feito de madeira. Esses
produtos tinham uma coisa em comum: disputavam o mercado com o cânhamo.
Seria um
empurrão considerável para a nascente indústria de sintéticos se as imensas
lavouras de cannabis fossem destruídas, tirando a fibra do cânhamo e o óleo da
semente do mercado. “A maconha foi proibida por interesses econômicos,
especialmente para abrir o mercado das fibras naturais para o náilon”, afirma o
jurista Wálter Maierovitch, especialista em tráfico de entorpecentes e
ex-secretário nacional antidrogas.
Anslinger
tinha um aliado poderoso na guerra contra a maconha: William Randolph Hearst,
dono de uma imensa rede de jornais. Hearst era a pessoa mais influente dos
Estados Unidos. Milionário, comandava suas empresas de um castelo monumental na
Califórnia, onde recebia artistas de Hollywood para passear pelo zoológico
particular ou dar braçadas na piscina coberta adornada com estátuas gregas. Foi
nele que Orson Welles se inspirou para criar o protagonista do filme Cidadão
Kane. Hearst sabidamente odiava mexicanos. Parte desse ódio talvez se devesse
ao fato de que, durante a Revolução Mexicana de 1910, as tropas de Pancho Villa
(que, aliás, faziam uso freqüente de maconha) desapropriaram uma enorme
propriedade sua. Sim, Hearst era dono de terras e as usava para plantar
eucaliptos e outras árvores para produzir papel. Ou seja, ele também tinha
interesse em que a maconha americana fosse destruída – levando com ela a
indústria de papel de cânhamo.
Hearst
iniciou, nos anos 30, uma intensa campanha contra a maconha. Seus jornais
passaram a publicar seguidas matérias sobre a droga, às vezes afirmando que a
maconha fazia os mexicanos estuprarem mulheres brancas, outras noticiando que
60% dos crimes eram cometidos sob efeito da droga (um número tirado sabe-se lá
de onde). Nessa época, surgiu a história de que o fumo mata neurônios, um mito
repetido até hoje. Foi Hearst que, se não inventou, ao menos popularizou o nome
marijuana (ele queria uma palavra que soasse bem hispânica, para permitir a
associação direta entre a droga e os mexicanos). Anslinger era presença
constante nos jornais de Hearst, onde contava suas histórias de terror. A
opinião pública ficou apavorada. Em 1937, Anslinger foi ao Congresso dizer que,
sob o efeito da maconha, “algumas pessoas embarcam numa raiva delirante e
cometem crimes violentos”.
Os
deputados votaram pela proibição do cultivo, da venda e do uso da cannabis, sem
levar em conta as pesquisas que afirmavam que a substância era segura.
Proibiu-se não apenas a droga, mas a planta. O homem simplesmente cassou o
direito da espécie Cannabis sativa de existir.
Anslinger
também atuou internacionalmente. Criou uma rede de espiões e passou a
freqüentar as reuniões da Liga das Nações, antecessora da ONU, propondo
tratados cada vez mais duros para reprimir o tráfico internacional. Também
começou a encontrar líderes de vários países e a levar a eles os mesmos
argumentos aterrorizantes que funcionaram com os americanos. Não foi difícil
convencer os governos – já na década de 20 o Brasil adotava leis federais
antimaconha. A Europa também embarcou na onda proibicionista.
“A
proibição das drogas serve aos governos porque é uma forma de controle social
das minorias”, diz o cientista político Thiago Rodrigues, pesquisador do Núcleo
de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos. Funciona assim: maconha é
coisa de mexicano, mexicanos são uma classe incômoda. “Como não é possível
proibir alguém de ser mexicano, proíbe-se algo que seja típico dessa etnia”,
diz Thiago. Assim, é possível manter sob controle todos os mexicanos – eles
estarão sempre ameaçados de cadeia. Por isso a proibição da maconha fez tanto
sucesso no mundo. O governo brasileiro achou ótimo mais esse instrumento para
manter os negros sob controle. Os europeus também adoraram poder enquadrar seus
imigrantes.
A
proibição foi virando uma forma de controle internacional por parte dos Estados
Unidos, especialmente depois de 1961, quando uma convenção da ONU determinou
que as drogas são ruins para a saúde e o bem-estar da humanidade e, portanto,
eram necessárias ações coordenadas e universais para reprimir seu uso. “Isso
abriu espaço para intervenções militares americanas”, diz Maierovitch. “Virou
um pretexto oportuno para que os americanos possam entrar em outros países e
exercer os seus interesses econômicos.”
Estava
erguida uma estrutura mundial interessada em manter as drogas na ilegalidade, a
maconha entre elas. Um ano depois, em 1962, o presidente John Kennedy demitiu
Anslinger – depois de nada menos que 32 anos à frente do FBN. Um grupo formado
para analisar os efeitos da droga concluiu que os riscos da maconha estavam
sendo exagerados e que a tese de que ela levava a drogas mais pesadas era
furada. Mas não veio a descriminalização. Pelo contrário. O presidente Richard
Nixon endureceu mais a lei, declarou “guerra às drogas” e criou o DEA (em
português, Escritório de Coação das Drogas), um órgão ainda mais poderoso que o
FBN, porque, além de definir políticas, tem poder de polícia.
Maconha faz mal?
Taí uma
pergunta que vem sendo feita faz tempo. Depois de mais de um século de
pesquisas, a resposta mais honesta é: faz, mas muito pouco e só para casos
extremos. O uso moderado não faz mal. A preocupação da ciência com esse assunto
começou em 1894, quando a Índia fazia parte do Império Britânico. Havia, então,
a desconfiança de que o bhang, uma bebida à base de maconha muito comum na
Índia, causava demência. Grupos religiosos britânicos reivindicavam sua
proibição. Formou-se a Comissão Indiana de Drogas da Cannabis, que passou dois
anos investigando o tema. O relatório final desaconselhou a proibição: “O bhang
é quase sempre inofensivo quando usado com moderação e, em alguns casos, é
benéfico. O abuso do bhang é menos prejudicial que o abuso do álcool”.
Em 1944,
um dos mais populares prefeitos de Nova York, Fiorello La Guardia, encomendou
outra pesquisa. Em meio à histeria antimaconha de Anslinger, La Guardia
resolveu conferir quais os reais riscos da tal droga assassina. Os cientistas
escolhidos por ele fizeram testes com presidiários (algo comum na época) e
concluíram: “O uso prolongado da droga não leva à degeneração física, mental ou
moral”. O trabalho passou despercebido no meio da barulheira proibicionista de
Anslinger.
A partir
dos anos 60, várias pesquisas parecidas foram encomendadas por outros governos.
Relatórios produzidos na Inglaterra, no Canadá e nos Estados Unidos
aconselharam um afrouxamento nas leis. Nenhuma dessas pesquisas foi suficiente
para forçar uma mudança. Mas a experiência mais reveladora sobre a maconha e
suas conseqüências foi realizada fora do laboratório. Em 1976, a Holanda
decidiu parar de prender usuários de maconha desde que eles comprassem a droga
em cafés autorizados. Resultado: o índice de usuários continua comparável aos
de outros países da Europa. O de jovens dependentes de heroína caiu – estima-se
que, ao tirar a maconha da mão dos traficantes, os holandeses separaram essa
droga das mais pesadas e, assim, dificultaram o acesso a elas.
Nos
últimos anos, os possíveis males da maconha foram cuidadosamente escrutinados –
às vezes por pesquisadores competentes, às vezes por gente mais interessada em
convencer os outros da sua opinião. Veja abaixo um resumo do que se sabe:
Câncer
Não se
provou nenhuma relação direta entre fumar maconha e câncer de pulmão, traquéia,
boca e outros associados ao cigarro. Isso não quer dizer que não haja. Por
muito tempo, os riscos do cigarro foram negligenciados e só nas últimas duas
décadas ficou claro que havia uma bomba-relógio armada – porque os danos só se
manifestam depois de décadas de uso contínuo. Há o temor de que uma bomba
semelhante esteja para explodir no caso da maconha, cujo uso se popularizou a
partir dos anos 60. O que se sabe é que o cigarro de maconha tem praticamente a
mesma composição de um cigarro comum – a única diferença significativa é o
princípio ativo. No cigarro é a nicotina, na maconha o tetrahidrocanabinol, ou
THC. Também é verdade que o fumante de maconha tem comportamentos mais
arriscados que o de cigarro: traga mais profundamente, não usa filtro e segura
a fumaça por mais tempo no pulmão (o que, aliás, segundo os cientistas, não
aumenta os efeitos da droga).
Em
compensação, boa parte dos maconheiros fuma muito menos e pára ou reduz o
consumo depois dos 30 anos (parar cedo é sabidamente uma forma de diminuir
drasticamente o risco de câncer). Em resumo: o usuário eventual de maconha, que
é o mais comum, não precisa se preocupar com um aumento grande do risco de câncer.
Quem fuma mais de um baseado por dia há mais de 15 anos deve pensar em parar.
Dependência
Algo entre
6% e 12% dos usuários, dependendo da pesquisa, desenvolve um uso compulsivo da
maconha (menos que a metade das taxas para álcool e tabaco). A questão é: será
que a maconha é a causa da dependência ou apenas uma válvula de escape.
“Dependência de maconha não é problema da substância, mas da pessoa”, afirma o
psiquiatra Dartiu Xavier, coordenador do Programa de Orientação e Atendimento a
Dependentes da Escola Paulista de Medicina. Segundo Dartiu, há um perfil claro
do dependente de maconha: em geral, ele é jovem, quase sempre ansioso e
eventualmente depressivo. Pessoas que não se encaixam nisso não desenvolvem o
vício. “E as que se encaixam podem tanto ficar dependentes de maconha quanto de
sexo, de jogo, de internet”, diz.
Muitos
especialistas apontam para o fato de que a maconha está ficando mais perigosa –
na medida em que fica mais potente. Ao longo dos últimos 40 anos, foi feito um
melhoramento genético, cruzando plantas com alto teor de THC. Surgiram
variedades como o skunk. No último ano, foram apreendidos carregamentos de
maconha alterada geneticamente no Leste europeu – a engenharia genética é usada
para aumentar a potência, o que poderia aumentar o potencial de dependência.
Segundo o farmacólogo Leslie Iversen, autor do ótimo The Science of Marijuana
(A ciência da maconha, sem tradução para o português) e consultor para esse
tema da Câmara dos Lordes (o Senado inglês), esses temores são exagerados e o
aumento da concentração de THC não foi tão grande assim.
Para além
dessa discussão, o fato é que, para quem é dependente, maconha faz muito mal.
Isso é especialmente verdade para crianças e adolescentes. “O sujeito com 15
anos não está com a personalidade formada. O uso exagerado de maconha pode ser
muito danoso a ele”, diz Dartiu. O maior risco para adolescentes que fumam
maconha é a síndrome amotivacional, nome que se dá à completa perda de
interesse que a droga causa em algumas pessoas. A síndrome amotivacional é
muito mais freqüente em jovens e realmente atrapalha a vida – é quase certeza
de bomba na escola e de crise na família.
Danos cerebrais
“Maconha
mata neurônios.” Essa frase, repetida há décadas, não passa de mito. Bilhões de
dólares foram investidos para comprovar que o THC destrói tecido cerebral – às
vezes com pesquisas que ministravam doses de elefante em ratinhos –, mas nada
foi encontrado.
Muitas
experiências foram feitas em busca de danos nas capacidades cognitivas do
usuário de maconha. A maior preocupação é com a memória. Sabe-se que o usuário
de maconha, quando fuma, fica com a memória de curto prazo prejudicada. São bem
comuns os relatos de pessoas que têm idéias que parecem geniais durante o
“barato”, mas não conseguem lembrar-se de nada no momento seguinte. Isso
acontece porque a memória de curto prazo funciona mal sob o efeito de maconha
e, sem ela, as memórias de longo prazo não são fixadas (é por causa desse
“desligamento” da memória que o usuário perde a noção do tempo). Mas esse dano
não é permanente. Basta ficar sem fumar que tudo volta a funcionar normalmente.
O mesmo vale para o raciocínio, que fica mais lento quando o usuário fuma muito
freqüentemente.
Há
pesquisas com usuários “pesados” e antigos, aqueles que fumam vários baseados
por dia há mais de 15 anos, que mostraram que eles se saem um pouco pior em
alguns testes, principalmente nos de memória e de atenção. As diferenças, no
entanto, são sutis. Na comparação com o álcool, a maconha leva grande vantagem:
beber muito provoca danos cerebrais irreparáveis e destrói a memória.
Coração
O uso de
maconha dilata os vasos sangüíneos e, para compensar, acelera os batimentos
cardíacos. Isso não oferece risco para a maioria dos usuários, mas a droga deve
ser evitada por quem sofre do coração.
Infertilidade
Pesquisas
mostraram que o usuário freqüente tem o número de espermatozóides reduzido.
Ninguém conseguiu provar que isso possa causar infertilidade, muito menos
impotência. Também está claro que os espermatozóides voltam ao normal quando se
pára de fumar.
Depressão imunológica
Nos anos
70, descobriu-se que o THC afeta os glóbulos brancos, células de defesa do
corpo. No entanto, nenhuma pesquisa encontrou relação entre o uso de maconha e
a incidência de infecções.
Loucura
No
passado, acreditava-se que maconha causava demência. Isso não se confirmou, mas
sabe-se que a droga pode precipitar crises em quem já tem doenças
psiquiátricas.
Gravidez
Algumas
pesquisas apontaram uma tendência de filhos de mães que usaram muita maconha
durante a gravidez de nascer com menor peso. Outras não confirmaram a suspeita.
De qualquer maneira, é melhor evitar qualquer droga psicoativa durante a
gestação. Sem dúvida, a mais perigosa delas é o álcool.
Maconha faz bem?
No geral,
não. A maioria das pessoas não gosta dos efeitos e as afirmações de que a erva,
por ser “natural”, faz bem, não passam de besteira. Outros adoram e relatam que
ela ajuda a aumentar a criatividade, a relaxar, a melhorar o humor, a diminuir
a ansiedade. É inevitável: cada um é um.
O uso medicinal
da maconha é tão antigo quanto a maconha. Hoje há muitas pesquisas com a
cannabis para usá-la como remédio. Segundo o farmacólogo inglês Iversen, não há
dúvidas de que ela seja um remédio útil para muitos e fundamental para alguns,
mas há um certo exagero sobre seus potenciais. Em outras palavras: a maconha
não é a salvação da humanidade. Um dos maiores desafios dos laboratórios é
tentar separar o efeito medicinal da droga do efeito psicoativo – ou seja,
criar uma maconha que não dê “barato”. Muitos pesquisadores estão chegando à
conclusão de que isso é impossível: aparentemente, as mesmas propriedades
químicas que alteram a percepção do cérebro são responsáveis pelo caráter
curativo. Esse fato é uma das limitações da maconha como medicamento, já que muitas
pessoas não gostam do efeito mental. No Brasil, assim como em boa parte do
mundo, o uso médico da cannabis é proibido e milhares de pessoas usam o remédio
ilegalmente. Conheça alguns dos usos:
Câncer
Pessoas
tratadas com quimioterapia muitas vezes têm enjôos terríveis, eventualmente tão
terríveis que elas preferem a doença ao remédio. Há medicamentos para reduzir
esse enjôo e eles são eficientes. No entanto, alguns pacientes não respondem a
nenhum remédio legal e respondem maravilhosamente à maconha. Era o caso do
brilhante escritor e paleontólogo Stephen Jay Gould, que, no mês passado,
finalmente, perdeu uma batalha de 20 anos contra o câncer (veja mais sobre ele
na página 23). Gould nunca tinha usado drogas psicoativas – ele detestava a
idéia de que interferissem no funcionamento do cérebro. Veja o que ele disse:
“A maconha funcionou como uma mágica. Eu não gostava do ‘efeito colateral’ que
era o borrão mental. Mas a alegria cristalina de não ter náusea – e de não
experimentar o pavor nos dias que antecediam o tratamento – foi o maior
incentivo em todos os meus anos de quimioterapia”.
Aids
Maconha dá
fome. Qualquer um que fuma sabe disso (aliás, esse é um de seus inconvenientes:
ela engorda). Nenhum remédio é tão eficiente para restaurar o peso de portadores
do HIV quanto a maconha. E isso pode prolongar muito a vida: acredita-se que
manter o peso seja o principal requisito para que um soropositivo não
desenvolva a doença. O problema: a cannabis tem uma ação ainda pouco
compreendida no sistema imunológico. Sabe-se que isso não representa perigo
para pessoas saudáveis, mas pode ser um risco para doentes de Aids.
Esclerose múltipla
Essa
doença degenerativa do sistema nervoso é terrivelmente incômoda e fatal. Os
doentes sentem fortes espasmos musculares, muita dor e suas bexigas e
intestinos funcionam muito mal. Acredita-se que ela seja causada por uma má
função do sistema imunológico, que faz com que as células de defesa ataquem os
neurônios. A maconha alivia todos os sintomas. Ninguém entende bem por que ela
é tão eficiente, mas especula-se que tenha a ver com seu pouco compreendido
efeito no sistema imunológico.
Dor
A cannabis
é um analgésico usado em várias ocasiões. Os relatos de alívio das cólicas
menstruais são os mais promissores.
Glaucoma
Essa doença
caracteriza-se pelo aumento da pressão do líquido dentro do olho e pode levar à
cegueira. Maconha baixa a pressão intraocular. O problema é que, para ser um
remédio eficiente, a pessoa tem que fumar a cada três ou quatro horas, o que
não é prático e, com certeza, é nocivo (essa dose de maconha deixaria o
paciente eternamente “chapado”). Há estudos promissores com colírios feitos à
base de maconha, que agiriam diretamente no olho, sem afetar o cérebro.
Ansiedade
Maconha é
um remédio leve e pouco agressivo contra a ansiedade. Isso, no entanto, depende
do paciente. Algumas pessoas melhoram após fumar; outras, principalmente as
pouco habituadas à droga, têm o efeito oposto. Também há relatos de sucesso no
tratamento de depressão e insônia, casos em que os remédios disponíveis no
mercado, embora sejam mais eficientes, são também bem mais agressivos e têm
maior potencial de dependência.
Dependência
Dois
psiquiatras brasileiros, Dartiu Xavier e Eliseu Labigalini, fizeram uma
experiência interessante. Incentivaram dependentes de crack a fumar maconha no
processo de largar o vício. Resultado: 68% deles abandonaram o crack e, depois,
pararam espontaneamente com a maconha, um índice altíssimo. Segundo eles, a
maconha é um remédio feito sob medida para combater a dependência de crack e
cocaína, porque estimula o apetite e combate a ansiedade, dois problemas sérios
para cocainômanos. Dartiu e Eliseu pretendem continuar as pesquisas, mas estão
com problemas para conseguir financiamento – dificilmente um órgão público investirá
num trabalho que aposte nos benefícios da maconha.
O passado
O primeiro
registro do contato entre o Homo sapiens e a Cannabis sativa é de 6 000 anos
atrás. Trata-se da marca de uma corda de cânhamo impressa em cacos de barro, na
China. O emprego da fibra, não só em cordas mas também em vários tecidos e,
depois, na fabricação de papel, é um dos mais antigos usos da maconha. Graças a
ele, a planta, original da região ao norte do Afeganistão, nos pés do Himalaia,
tornou-se a primeira cultivada pelo homem com usos não alimentícios e
espalhou-se por toda a Ásia e depois pela Europa e África.
Mas há um
uso da maconha que pode ser tão antigo quanto o da fibra do cânhamo: o
medicinal. Os chineses conhecem há pelo menos 2 000 anos o poder curativo da
droga, como prova o Pen-Ts’ao Ching, considerado a primeira farmacopéia
conhecida do mundo (farmacopéia é um livro que reúne fórmulas e receitas de
medicamentos). O livro recomenda o uso da maconha contra prisão-de-ventre,
malária, reumatismo e dores menstruais. Também na Índia, a erva já há milênios
é parte integral da medicina ayurvédica, usada no tratamento de dezenas de
doenças. Sem falar que ela ocupa um lugar de destaque na religião hindu. Pela
mitologia, maconha era a comida favorita do deus Shiva, que, por isso, viveria
o tempo todo “chapado”. Tomar bhang seria uma forma de entrar em comunhão com
Shiva.
O
Hinduísmo não é a única religião a dar destaque para a cannabis. Para os
budistas da tradição Mahayana, Buda passou seis anos comendo apenas uma semente
de maconha por dia. Sua iluminação teria sido atingida após esse período de
quase-jejum. Da Índia, a maconha migrou para a Mesopotâmia, ainda em tempos
pré-cristãos, e de lá para o Oriente Médio. Portanto, ela já estava presente na
região quando começou a expansão do Império Árabe. Com a proibição do álcool
entre o povo de Maomé, iniciou-se uma acalorada discussão sobre se a maconha
deveria ser banida também. Por séculos, consumiu-se cannabis abundantemente nas
terras muçulmanas até que, na Idade Média, muitos islâmicos abandonaram o
hábito. A exceção foram os sufi, membros de uma corrente considerada mais
mística e esotérica do Islã, que, até bem recentemente, consideravam a cannabis
fundamental em seus ritos.
Os gregos
usaram velas e cordas de cânhamo nos seus navios, assim como, depois, os
romanos. Sabe-se que o Império Romano tinha pelo menos conhecimento dos poderes
psicoativos da maconha. O historiador latino Tácito, que viveu no século I
d.C., relata que os citas, um povo da atual Turquia, tinham o costume de armar
uma tenda, acender uma fogueira e queimar grande quantidade de maconha. Daí
ficavam lá dentro, numa versão psicodélica do banho turco.
Graças ao
contato com os árabes, grande parte da África conheceu a erva e incorporou-a
aos seus ritos e à sua medicina – dos países muçulmanos acima do Saara até os
zulus da África do Sul. A Europa toda também passou a plantar maconha e usava
extensivamente a fibra do cânhamo, mas há raríssimos registros do seu uso como
psicoativo naquele continente. Pode ser que isso se deva ao clima. O THC é uma
resina produzida pela planta para proteger suas folhas e flores do sol forte.
Na fria Europa, é possível que tenha se desenvolvido uma variação da Cannabis
sativa com menos THC, já que não havia tanto sol para ameaçar o arbusto.
O fato é
que, na Renascença, a maconha se transformou no principal produto agrícola da
Europa. E sua importância não foi só econômica: a planta teve uma grande
participação na mudança de mentalidade que ocorreu no século XV. Os primeiros
livros depois da revolução de Gutemberg foram impressos em papel de cânhamo. As
pinturas dos gênios da arte eram feitas em telas de cânhamo (canvas, a palavra
usada em várias línguas para designar “tela”, é uma corruptela holandesa do
latim cannabis). E as grandes navegações foram impulsionadas por velas de
cânhamo – segundo o autor americano Rowan Robinson, autor de O Grande Livro da
Cannabis, havia 80 toneladas de cânhamo, contando o velame e as cordas, no
barco comandado por Cristóvão Colombo em 1496. Ou seja, a América foi
descoberta graças à maconha. Irônico.
Sobre as
luzes da Renascença caíram as sombras da Inquisição – um período em que a
Igreja ganhou muita força e passou a exercer o papel de polícia, julgando
hereges em seu tribunal e condenando bruxas à fogueira. “As bruxas nada mais
eram do que as curandeiras tradicionais, principalmente as de origem celta, que
utilizavam plantas para tratar as pessoas, às vezes plantas com poderes
psicoativos”, diz o historiador Henrique Carneiro, especialista em drogas da Universidade
Federal de Ouro Preto. Não há registros de que maconheiros tenham sido
queimados no século XVI – inclusive porque o uso psicoativo da maconha era
incomum na Europa –, mas é certo que cristalizou-se naquela época uma antipatia
cristã por plantas que alteram o estado de consciência. “O Cristianismo afirmou
seu caráter de religião imperial e, sob seus domínios, a única droga permitida
é o álcool, associado com o sangue de Cristo”, diz Henrique.
Em 1798,
as tropas de Napoleão conquistaram o Egito. Até hoje não estão muito claras as
razões pelas quais o imperador francês se aventurou no norte da África
(vaidade, talvez). Mas pode ser que o principal motivo fosse a intenção de
destruir as plantações de maconha, que abasteciam de cânhamo a poderosa Marinha
da Inglaterra. O fato é que coube a Napoleão promulgar a primeira lei do mundo
moderno proibindo a maconha. Os egípcios eram fumantes de haxixe, a resina
extraída da folha e da flor da maconha constituída de THC concentrado. Mas a
proibição saiu pela culatra. Os egípcios ignoraram a lei e continuaram fumando
como sempre fizeram. Em compensação, os europeus ouviram falar da droga e ela
rapidamente virou moda na Europa, principalmente entre os intelectuais. “O
haxixe está substituindo o champagne”, disse o escritor Théophile Gautier em
1845, depois da conquista da Argélia, que, na época, era outro grande
consumidor de THC.
No Brasil,
a planta chegou cedo, talvez ainda no século XVI, trazida pelos escravos (o
nome “maconha” vem do idioma quimbundo, de Angola. Mas, até o século XIX, era
mais usual chamar a erva de fumo-de-angola ou de diamba, nome também
quimbundo). Por séculos, a droga foi tolerada no país, provavelmente fumada em
rituais de candomblé (teria sido o presidente Getúlio Vargas que negociou a retirada
da maconha dos terreiros, em troca da legalização da religião). Em 1830, o
Brasil fez sua primeira lei restringindo a planta. A Câmara Municipal do Rio de
Janeiro tornou ilegal a venda e o uso da droga na cidade e determinou que “os
contraventores serão multados, a saber: o vendedor em 20 000 réis, e os
escravos e demais pessoas, que dele usarem, em três dias de cadeia.” Note que,
naquela primeira lei proibicionista, a pena para o uso era mais rigorosa que a
do traficante. Há uma razão para isso. Ao contrário do que acontece hoje, o
vendedor vinha da classe média branca e o usuário era quase sempre negro e
escravo.
O presente
Segundo
dados da ONU, 147 milhões de pessoas fumam maconha no mundo, o que faz dela a
terceira droga psicoativa mais consumida do mundo, depois do tabaco e do
álcool. A droga é proibida em boa parte do mundo, mas, desde que a Holanda
começou a tolerá-la, na década de 70, alguns outros países europeus seguiram os
passos da descriminalização. Itália e Espanha há tempos aceitam pequenas
quantidades da erva – embora a Espanha esteja abandonando a posição branda e
haja projetos de lei, na Itália, no mesmo sentido. O Reino Unido acabou de
anunciar que descriminalizou o uso da maconha – a partir do ano que vem, a
droga será apreendida e o portador receberá apenas uma advertência verbal. Os
ingleses esperam, assim, poder concentrar seus esforços na repressão de drogas
mais pesadas.
No ano
passado, Portugal endureceu as penas para o tráfico, mas descriminalizou o
usuário de qualquer droga, desde que ele seja encontrado com quantidades
pequenas. Porte de drogas virou uma infração administrativa, como parar em
lugar proibido.
Nos
últimos anos, os Estados Unidos também mudaram sua forma de lidar com as
drogas. Dentro da tendência mundial de ver a questão mais como um problema de
saúde do que criminal, o país, em vez de botar na cadeia, obriga o usuário a se
tratar numa clínica para dependentes. “Essa idéia é completamente equivocada”,
afirma o psiquiatra Dartiu Xavier, refletindo a opinião de muitos
especialistas. “Primeiro porque nem todo usuário é dependente. Segundo, porque
um tratamento não funciona se é compulsório – a pessoa tem que querer parar”,
diz. No sistema americano, quem recusa o tratamento ou o abandona vai para a
cadeia. Portanto, não é uma descriminalização. “Chamo esse sistema de
‘solidariedade autoritária’”, diz o jurista Maierovitch. O Brasil planeja
adotar o mesmo modelo.
O futuro
Há
possibilidades de uma mudança no tratamento à maconha? “No Brasil, não é
fácil”, diz Maierovitch, que, enquanto era secretário nacional antidrogas do
governo de Fernando Henrique Cardoso, planejou a descriminalização. “A lei hoje
em vigor em Portugal foi feita em conjunto conosco, com o apoio do presidente”,
afirma. A idéia é que ela fosse colocada em prática ao mesmo tempo nos dois
países. Segundo Maierovitch, Fernando Henrique mudou de idéia depois. O jurista
afirma que há uma enorme influência americana na política de drogas brasileira.
O fato é que essa questão mais tira do que dá votos e assusta os políticos – e
não só aqui no Brasil. O deputado federal Fernando Gabeira, hoje no Partido dos
Trabalhadores, é um dos poucos identificados com a causa da descriminalização.
“Pretendo, como um primeiro passo, tentar a legalização da maconha para uso médico”,
diz. Mas suas idéias estão longe de ser unanimidade mesmo dentro do seu
partido.
No remoto
caso de uma legalização da compra e da venda, haveria dois modelos possíveis.
Um seria o monopólio estatal, com o governo plantando e fornecendo as drogas,
para permitir um controle maior. A outra possibilidade seria o governo
estabelecer as regras (composição química exigida, proibição para menores de
idade, proibição para fumar e dirigir), cobrar impostos (que seriam altíssimos,
inclusive para evitar que o preço caia muito com o fim do tráfico ilegal) e a
iniciativa privada assumir o lucrativo negócio. Não há no horizonte nenhum
sinal de que isso esteja para acontecer. Mas a Super apurou, em consulta ao
Instituto Nacional de Propriedade Intelectual, que a Souza Cruz registrou, em
1997, a marca Marley – fica para o leitor imaginar que produto a empresa de
tabaco pretende comercializar com o nome do ídolo do reggae.
Frases
A
popularidade da maconha explodiu em 1920, quando o álcool foi proibido
O consumo
moderado de maconha não provoca nenhum dano sério à saúde
Das cordas
às velas, havia 80 toneladas de cânhamo no navio de Colombo
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