Foto: O educador Anísio Teixeira
(Agnaldo
Novais/Agecom Bahia)
O
assassinato de Anísio Teixeira
Por Emiliano José
A história tem dessas coisas: as ditaduras acreditam
poder esconder as patas depois de cometer crimes, e as patas sujas de sangue um
dia reaparecem
Em 11 de março de 1971, Anísio Teixeira passou boa
parte da manhã na Fundação Getúlio Vargas (FGV), na Praia do Botafogo, no Rio
de Janeiro. Joaquim Faria de Góes Sobrinho, amigo e colaborador de Anísio,
colega de trabalho, soube da visita que ele faria ao apartamento de Aurélio
Buarque de Holanda, situado na Praia do Botafogo, 48, edifício Duque de Caxias.
Sugeriu-lhe fosse a pé. De carro, teria de dar muitas voltas.
Anísio saiu antes das 11 horas em direção ao
apartamento de Aurélio Buarque de Holanda, aceitando recomendação de Sobrinho.
Almoçaria com ele, e pediria voto: era candidato a membro da Academia
Brasileira de Letras. Depois desse almoço, iria para a Editora Civilização
Brasileira, na Glória, Rua Benjamin Constant. Ali, trabalhava como consultor.
Anísio tinha uma rotina relativamente rigorosa.
Chegava da Civilização Brasileira entre 18,30 e 19 horas. Neste dia 11, um
pouco antes das 20 horas, a mulher de Anísio, Emília Ferreira Teixeira, liga
para a filha Anna Christina Teixeira Monteiro de Barros, preocupada: nada de
Anísio chegar. A filha tranqüilizou-a: o pai poderia ter saído com o embaixador
Paulo Carneiro, seu amigo e um dos articuladores de sua candidatura à Academia.
Carneiro era representante do Brasil na UNESCO, em Paris, em visita ao Brasil
naquele momento.
Mas, o tempo passava, e nada de Anísio. Logo, o
apartamento, à Rua Raul Pompéia, 58, apartamento 803, em Copacabana, começou a
se encher de parentes e amigos. Começa uma via-crucis: delegacia de polícia de
Copacabana, onde não havia qualquer notícia; não estivera na Editora
Civilização Brasileira. Terminaram o dia no Hospital Miguel Couto, onde também
não havia sinal dele.
Dia seguinte: não estivera também no edifício de
Aurélio Buarque de Holanda. Tudo muito estranho, a família em polvorosa. E mais
angustiado ficaram todos quando o jornalista Artur da Távola, genro de Anísio,
informa que o acadêmico Abgar Renault soubera do comandante do I Exército,
Sizeno Sarmento, que Anísio Teixeira estava “detido para averiguações” em dependências
da Aeronáutica.
No dia 13, jornais noticiam o desaparecimento do
educador. E às 17 horas, Anna Christina recebe um telefonema: “aqui é da
polícia...”. Ela passa o telefone para Lúcio Abreu, amigo da família. O
educador fora encontrado morto, nas palavras da polícia, no fosso do elevador
do edifício onde residia Aurélio Buarque de Holanda.
O corpo estava agora no Instituto Médico Legal. Fora
retirado do fosso sem perícia técnica. Na autópsia, estiveram presentes o
acadêmico Afrânio Coutinho, o neurologista Djalma Chastinet Contreiras e os
médicos Francisco Duarte Guimarães Neto, Domingos de Paula e Deolindo Couto,
estes três, professores da UFRJ. Segundo relato dos presentes, havia duas
grandes lesões traumáticas no crânio e na região supra-clavicular,
incompatíveis com a suposta queda. Relatam, também, a existência de um
instrumento cilíndrico, provavelmente de madeira, presumível causador das
lesões. O legista, quando prosseguia com sua descrição, foi interrompido
abruptamente por dois funcionários provenientes do local de onde o corpo fora
retirado, que afirmavam ter sido “morte acidental por queda em fosso de
elevador”.
No edifício onde Aurélio Buarque de Holanda morava,
outro genro de Anísio, Mário Celso da Gama Lima, junto com um detetive
policial, José Pinto, constatava: o corpo não poderia ter caído do alto e
chegado ao ponto onde fora encontrado. Não passaria entre duas vigas logo
acima, separadas entre si por uma distância de pouco mais de 20 centímetros. As
lentes intactas dos óculos de Anísio, encontradas no local, outra evidência da
farsa – não havia, então, lentes inquebráveis. Os dois subiram para testar as
portas dos elevadores de cada um dos andares. Não conseguiram abrir nenhuma
delas.
Mário vai ao IML, a autópsia em curso, ele não
consegue assisti-la. O médico e professor da UFRJ, Francisco Duarte Guimarães,
havia assistido, e lhe diz sem qualquer vacilação: “Mário, tio Anísio foi
assassinado”. Dos que assistiram a autópsia, Mário ouviu a certeza: Anísio fora
assassinado.
Foi enterrado no dia 14 de março de 1971, no
cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro. A morte ocorria menos de dois
meses depois da prisão, tortura e desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva,
também no Rio de Janeiro. À época, os esforços para elucidar o caso junto à
delegacia responsável esbarravam no fato de que a polícia só admitia tratar o
fato como crime comum, malgrado admitisse a hipótese de assassinato. Quando
houve a tentativa de incriminar serventes, o filho de Anísio, Carlos Antonio
Teixeira, resolveu suspender a investigação.
Esclareço que essas informações estão baseadas em
textos produzidos principalmente pelo professor João Augusto de Lima Rocha, da
Escola Politécnica da UFBA, membro do Conselho Curador da Fundação Anísio
Teixeira e da Comissão da Verdade da UFBA, autor do livro “Anísio em Movimento”
e, também, no Memorial enviado à Comissão Nacional da Verdade e à Comissão da
Memória e Verdade Anísio Teixeira, da Universidade de Brasília, assinado pelo
filho de Teixeira, Carlos Antonio Ferreira Teixeira; por Haroldo Lima,
ex-deputado federal, ex-diretor da Agência Nacional do Petróleo e sobrinho-neto
de Anísio Teixeira, e pelo próprio João Augusto.
O Memorial anexa matéria do jornal Última Hora, de
15 de março de 1971, onde sérias dúvidas são apresentadas em relação à tese de
acidente. A polícia, em princípio, segundo a reportagem, conclui que se Anísio
tivesse caído no espaço do elevador de serviço jamais iria cair no platô.
O repórter informa: o corpo estava exatamente sobre
o platô, de cócoras, com a cabeça sobre os joelhos e as mãos segurando as
pernas. Entre os pés, uma poça de sangue. Na parede, bem no canto, abaixo das
duas pilastras, alguns pingos de sangue. Mais nada. E as pilastras não
mostravam ranhuras no cimento, na pintura, nem marcas de sangue, coisa que
aconteceria se o corpo tivesse batido ali. Ainda segundo a reportagem: quando a
portinhola que dá acesso ao platô foi aberta e encontrado o cadáver, outra
porta, a da casa de força também estava escancarada. A perícia encontrou ali
muitos respingos de sangue.
Outra conclusão categórica da polícia, ainda segundo
a matéria: acidente é praticamente impossível. A posição do corpo feria tudo o
que já fora visto até ali em acidentes como aquele. “Alguém matou e colocou ali
o cadáver do professor Anísio Teixeira”. O repórter anota ainda outras
observações da polícia: o chão em volta da portinhola que dá acesso ao poço do
elevador havia sido lavado, os óculos de Anísio haviam sido encontrados em uma
das pilastras e tudo leva a crer que foram colocadas ali, e ao ser retirado do
fosso o cadáver estava sem sapatos e sem paletó. E os elevadores haviam sido
revisados havia apenas 20 dias.
O Memorial relata, ainda, depoimento de Luís Viana
Filho, de 1988, dado ao professor João Augusto de Lima Rocha, que preparava
então o livro “Anísio em Movimento”, publicado pela Fundação Anísio Teixeira,
em 1990, e republicado pela Editora do Senado, em 2002. Viana Filho, no
depoimento, informa que, procurado pela família, buscou notícias, e recebeu a
informação de que Anísio fora detido pela Aeronáutica para esclarecimentos, mas
que seria libertado.
E noutro depoimento, dado em 1989, Afrânio Coutinho
diz acreditar que Anísio fora morto sob torturas. E diante de James Amado, sua
esposa Luiza Ramos, Pedro Roberto Ivo das Neves e do próprio João Augusto,
disse ter escrito um documento sobre o episódio, depositado no cofre da
Academia Brasileira de Letras, com a recomendação de só ser aberto 50 anos após
a ocorrência dos fatos, em 2021, portanto. Coutinho cita o brigadeiro Burnier
como um dos responsáveis pelo assassinato de Anísio, o mesmo Burnier dos
sinistros planos do Para-Sar e da explosão do gasômetro da Avenida Brasil,
abortados pela resistência do capitão Sérgio Macaco.
São muitas as evidências de que Anísio Teixeira foi
morto sob tortura. A história tem dessas coisas: as ditaduras acreditam poder
esconder as patas depois de cometer crimes, e as patas sujas de sangue um dia
reaparecem. É momento de resgatar a memória, revelar a verdade, fazer justiça.
Sem condescendência com os criminosos.
Link da notícia: http://www.cartacapital.com.br/…/o-assassinato-de-anisio-te…
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