CONTO
de Fábio
Carvalho
EU MUDO
A arte não se faz com boas intenções.
É mesmo necessário um pacto com o diabo
para se criar alguma coisa.
André Gide
Calo na corda
vocal. Devo procurar uma calista para dar uma raspada nisto, temos também o
fino corte ou a poderosa e violenta decepada de cutelo do mesmo açougueiro
bipolar que dizem que era francês. O cinema nasceu mudo. Esta é uma afirmação
sem contestação. Não pode ser retrucada, é um fato histórico. Também para que
fatos, se só interessa a lenda. Ou muito mais a versão. Tergiversando.
Vamos juntos
deambular por aí? Finalmente cheguei à desejada interrogação. Para que eu não
sei. Temos que continuar. Não é por nada não, está muito bom, pode melhorar.
Nunca sei o motivo do plural, se estou aqui dentro. Se não houvesse o amor.
Quanto mais tempo demora, mais violento vem. Mentirinha. O Fernando me falou no
bar do Salomão que sua irmã Leninha também sofreu do mesmo infortúnio que eu.
Curou se cuidando. Sem dúvidas é a melhor forma de se curar. As mulheres nascem
sabendo se cuidar, a nós nos resta aprender com elas, ouvindo-as. Aonde
chegaremos assim. Ninguém responder soube, muito menos eu. Curaçau. Plural insuportável.
Só a mulher salva. E saliva. A luz dos olhos seus. Caminhar faz você gastar não
sei quantas calorias por quilômetros rodados, isto se você beber água. Salvando
minha alma da vida. Encontrei na madrugada de sábado com meu amigo mais
viajado, um lingüista que se depurou em Praga, ainda na época Tchecoslováquia.
Ele, que também é grande conhecedor de culturas secretas, me contou que na
Jamaica acontece um estranho ritual. Os nativos entopem um vidro cilíndrico do
tamanho de um antebraço com um fumo muito doido chamado camarão de cabelo, na
seqüência eles despejam meia garrafa de rum, sacodem e enterram na areia da
praia por sete dias. Depois dessa maturação e de ser preparado para ser fumado
em um cachimbo batizado, você é adentrado numa filosofia sensual, solar e
transbordante. Pode acontecer de você ser o escolhido por uma das feiticeiras
para vê-la dançar nua. Como Isadora fez com Oswald.
No
nosso interior produzimos a bela enzima endorfina, as cordas e as correntes que
arrebentem se abrindo em posição picante. A produção sempre leva na tarraqueta.
O processo de produção do capital. Tomo 03. São quinze horas e dez minutos.
Claro evidente. O meu tratamento é simplesmente parar de fazer o que eu mais
faço: fumar, beber e falar. Que bela a síncope. Sincopada. Tenho detestado os
acentos menos o circunflexo que sempre admirei, exatamente por isto me chateia
que a tão agressiva prepotente nova ortografia resolva exterminar com ele e
ainda com a trema e o hífen. Deve ser a paranóia, que de vez em quando reaparece
mesmo sem ser chamada. Assim trabalho aqui no êxtase com meus amigos doidões,
gosto do embalo, graças a certas conquistas bem frágeis desvalorizadas sem
razão verdadeira. A epifania tem chegado atrasada, chegou junto com a vírgula,
que é chatinha, mas tem seus encantos curvilíneos. Não vejo o cristo da janela
e nem desejo. As pessoas mulheres são incríveis, acreditam como sendo merecido
pelo o que possuem, que estaremos sempre à sua disposição. Elas detêm o total
domínio. Ao seu bel prazer, então está bom, ao som da flauta. Nós outros que
estamos em retirada, já podemos encontrar algo que supra a falta da pérola
escondida, teimosa em não saber ser usada. Ainda penso em tentar bastante sem
desistir. É triste e é verdade. A tristeza é bela. Bom dia tristeza. Sorvo-te e
cuspo depois. Com muito prazer, bem maior que o seu, imagino no chuveiro. E
muita saliva. Já não preciso que tenhas prazer, basta o meu. Só o meu. Já
desminto. Invertidos horizontes. Qual é? É isto mesmo, falo e pergunto para
vocês todas que olham daí com cara de pitanga. Lindas. Tudo mentira no primeiro
de Abril. As prateleiras acham que não se enganaram, e sim se conformaram.
Entraram na forma. Eu é que não vou desenformá-las. Mais este trabalho não
topo. É tão bom discutir. Por vezes dói. A dor é de quem vai amar. Cada momento
o espaço é tão pouco que parece que nem se chama espaço. A respiração é
fundamental, não nascemos para essa situação de elevador cheio, já disse
alguém. O Tom. Ouvidos de mercador, esta é a solução. Nascemos para desfrutar o
paraíso. A partir de agora vou seguir todas as aulas que me deram. Só, claro,
dos bons professores. Eles mesmos que são difíceis de aparecer. Basta não
esquecer e observar, o que parece até fácil diante da dificuldade de subir
estes degraus que nos apresentaram, simples como esta leitura, quando o sol se
por avermelhado refletindo no mar. A doutora Janaína me revelou este
diagnóstico imagético em foto e DVD impresso incontestável em papel e disco: ao
exame nota-se lesão vegetante em toda a extensão da prega vocal direita;
movimentação reduzida da prega vocal direita. Intensa estase salivar em
valécula lingual (sic). Poderia por entre aspas, prefiro não. Já que também vem
de mim este relatório. Só a escrita que nesta hora não era da minha condução. E
ela é uma baixinha bonita e competente, com idade pra ser minha filha. Não é.
Ainda pode ser que já tenha que continuar. Para quê reclamar se está tão fácil.
Posso te comer agora, ouviu a empadinha. Amanhã é outro dia e não vou poder,
tenho que trabalhar. Estou condenado à falta de sentido. E não aceito. Livro-me
momentaneamente através da argumentação. Amadas saídas. Por vezes indecifráveis
e intangíveis. Procuro-as com medo e indecisão. Tenho que enfrentar as
incapacidades, muito belas que são. Atraentes e impenetráveis como a Monalisa e
a Lulu, aquela cartesiana francesa de boina que me incomoda intermitentemente.
Espirrei no deserto, tanto búlgaro aqui, nem um Tristão por perto. Simples
trocadilhos. Detesto as cobranças, não tenho como fugir, não era isto que ia
escrever. Vou começar a falar de cinema para escapar bem do nó cego que eu
mesmo me dei. Não é um nó de marinheiro, senão estaria perdido. A balada do
velho marinheiro com gravuras em metal e tudo. Hoje perdi o senso, ouvi
estrelas. Não conto de quem é o que eu disse antes, quem não sabe não merece
consideração. Poemas um tanto um quanto piegas que um dia ao luar, nós dois em
plena solidão tentamos ao tempo recitar sem alcançar aquela cor do céu de
abril. Catulo da Paixão Cearense. Quincas Laranjeiras e Ernesto Nazaré. Reza a
lenda todas estas sintonias. Por ter o prazer de ver as lágrimas pelos olhos a
sofrer e a escorrer pelo corrimão daquele rosto delicado e angelical. Um
fabuloso nariz adunco se intrometeu naquela presumível paisagem tornando-a
surpreendente. Pouco vale o que ficou para trás. O tempo que passa em dor
maior. Não sei de muita coisa do que se passa ainda. Novamente ouvidos de
mercador. Ando tocando baixo muito bem e ainda posso melhorar, como tenho tido
chances novas a cada armadilha que se me apresenta conferindo a ambiência
celestial. Ela disse: hoje Dom Luís faz duzentos e oitenta anos, logo
compreendi que por isto estava sentindo alguma coisa indesculpável. Perguntei:
só? Por isto também tantos encontros. Era hoje quem poderia acreditar. Ou
dizendo melhor quem diria? Ótima bela cantora. Cura todo calo na voz e ainda
canta em falso francês. Só ouvi, adoro as falsas, se tivesse visto
imediatamente teria me apaixonado outra vez. Era apenas mais uma possibilidade.
Vamos para as outras. Outro bar quem sabe. Todas elas recheadas de inutilidades
indubitáveis. Degustáveis. Vou mudar de instrumento, das cordas para o sopro.
Acho que não. Ainda prefiro o piano que é tudo. Bill Evans. Não volto mais a
este assunto. Louis Armstrong que gênio. Ajudem-me. Liberta meu coração Isabel.
Cantou o gênio do compositor Geraldo Pereira. Quem se utiliza de vários pontos
finais em frases curtas não sabe escrever, dizia com certeza de um ataque
direto, o desenhista secreto Márcio, de sua altura no canto daquele balcão
provinciano, como era costume acontecer sempre que eu ali me aprochegava. Como
a vida é difícil, pensava eu. Para que pensar também? Perguntava a galera do
Galo só para meus ouvidos é claro. 2102 Serra. Este é o ônibus que não anda
pelo trilho. A coisa é mais divinal do que material. Disse o velho flautista
respondendo à linda voz da jovem locutora da rádio. Cansou parou. Pois já não
sei quem sou, sem ela. Nunca ninguém desejei, como desejo a ti. Linda. Deixa de
asneira que eu não sou limão. Maria a vida é esta: subir Bahia descer Floresta.
Eu tinha a liberdade como um homem. Neste domingo Pascoal antes do almoço da
nova ressurreição, brindamos com um vinho rouge chamado Saint Lambert, um
inovador cruzamento de uvas Malbec e Bonarda, parceria da qual nunca tinha
ouvido falar, coisa que era também totalmente desconhecida aos presentes ali
servidos, para sem titubear bebermos a um resultado argentino. Com imenso
prazer. Quem sou eu para sufocar solidão na mesma boca. Céu triste e belo do
fim de março. Anteriormente aconteceu o que vou descrever agora justo quando
ainda era verão. Não foi um sonho dormido, acho eu. Voltamos a Adega do
Timoneiro ali na Rua Visconde de Itaborahy, depois de termos dado uma grande
volta por aquele misterioso e surpreendente deserto Rio antigo ao som dos
violinos no inicio do fim do domingo com a esperança de descobrir algum
botequim aberto. O Botafogo acabara de ganhar a Taça Guanabara do Vasco da
Gama, acontecimento que gostei bastante e os portugueses que me rodeavam não,
fazer o quê. Hoje que era outro dia, ela estava untando com manteiga o pirex de
vidro refratário para o desejado assado antes do jogo, com clareza de mais um
show do Galo, que ultrapassava qualquer possibilidade remota de conciliação.
Enfim sós.Voltemos então juntos à narrativa palatável. Eram mais ou menos seis
e quinze da tarde e o sol escaldante se retirava lentamente trazendo o lusco
fusco no centro urbano. Fim do verão feroz em Março do ano treze, à noite viria
tempestade.
Enquanto
caminhávamos eu, o Big e o Gabriel de Cataguases, lembrei que minha filha Jade
quando era pequena dizia que o Big e eu formávamos um desastre ecológico. Havia
também aquela cantora que disse que gravaria a música só para mim. Se ela visse
o trio agora o que diria? O curioso inesperado para os distraídos, deveria ser
o Big com seus um metro e quarenta, eu com os meus médios um e setenta e taus e
o Gabriel com seus mais de metro e noventa, andando juntos, cada qual na sua
passada no passeio em frente às portas rolantes de aço cinza cerradas sem
nenhum acompanhamento. Exatamente, era o trio parada dura caminhando na mesma
direção, completamente em desalinho, pelo menos parecia. Consegui assim, sem
saber como, me transportar e ficar de fora ao longe vendo a cena de camarote. Ao
menos meus olhos nus puderam ver. Era engraçado. Demos esta redondilha pelo
velho centro com louvor porque quando pela primeira vez chegamos, o velho
garçom da Adega disse que já estavam fechando sem nenhuma abertura. Neste
retorno tivemos que implorar a morena bonita do caixa para que bebêssemos uma
de pé em frente ao balcão enquanto eles lavavam o chão do salão do bar. O
cinema é uma forma que pensa. É curta a vida, curto o dinheiro, o tempo escasso
e o mar imenso. Essa é do capixaba Rubem Braga. O estado do Espírito Santo.
Continuando a estória, enquanto tomávamos a nossa suada conquista, entrou no
bar um rapaz alto, bem vestido e sorridente, dando início ao seguinte diálogo
com a morena do caixa: por favor, a senhora me empresta um minutinho o seu isqueiro,
que logo eu trago de volta? -
(ela não gostou de ser chamada de senhora) ascenda aqui mesmo, disse de costas.
Tentei e não
consegui continuar esta estória que era boa. Inclusive o dedo escapou daquela
mão e depois voltou como sonhei. Em noite atribulada.
Era para mim
muito importante ouvir, antes de nada, ouvir esta música. Mário meu ator ainda
inconquistado me falou das lágrimas das virgens quando tinha som acústico. Como
decifrar a Esfinge.
Voltamos para o
cinema para ver meu filme na tela grande. O problema começou de novo. Vejo
minha sombra em alegre movimento. Só. Mais uma mentira.
O resultado é
humano o esforço é divino, esqueci quem disse isto. Durante toda a filmagem, eu
sabia que o Guará estava por lá. De novo a nova era medieval.
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