Gustavo Gindre
Marcelo, acho esse um ótimo debate e concordo que não temos que demonizar
ninguém. Por outro lado, não devemos cair no erro oposto de achar que o
produtor independente é um ser especial, cujas motivações visam única e
exclusivamente o engrandecimento da cultura brasileira e que, como tal,
merece um tratamento diferenciado.
É mais do que óbvio que essa é uma atividade que extrapola seus aspectos
econômicos e que a análise do setor não pode pecar pelo reducionismo. Por
outro lado, esse setor consome recursos públicos. Recursos esses que são
finitos e que poderiam ser usados em outras atividades igualmente
importantes, como educação, saúde, saneamento básico, habitação, etc.
Portanto, nada mais normal do que nos perguntarmos sobre os critérios de uso
destes recursos (que, como você bem destacou, não devem se resumir à
critérios econômicos).
Mas, o fato de estar lidando com bens intangíveis, com bens culturais que
impactam na construção de nosso imaginário, isso significa que a produção
destes bens mediante o uso de recursos públicos não deve ser passível de
avaliação? Que a boa fé do produtor independente e a importância da produção
audiovisual brasileira colocam-no em um pedestal onde não estão professores,
pesquisadores, cientistas e tantos outros que também contribuem para o
incremento de nosso capital simbólico?
Caminhando no sentido proposto por você, acho que temos que discutir o
modelo por detrás do fomento. Aliás, se você reparar, o tempo todo eu pedi
para não fulanizarmos o debate.
Vamos, então, analisar um caso hipotético, totalmente viável e até
frequente, dada a vigência do modelo atual.
Um grande grupo transnacional de mídia (desses que você falou que são
avessos à regulação), através de sua programadora operando no Brasil, pega
parte do seu imposto devido e investe numa obra audiovisual de "produção
independente". Segundo a legislação do setor, essa programadora passa a ser
considerada "co-produtora da obra".
Segundo regulação infra-legal, essa co-produção lhe permite ser detentora de
até 49% dos direitos patrimoniais sobre a obra audiovisual, auferindo 49% da
receita líquida obtida nos 70 anos seguintes.
Ainda segundo regulação infra-legal, essa programadora terá o direito de
exibir a obra audiovisual, de forma gratuíta, por quantas vezes ela desejar,
em todo o planeta Terra, pelo prazo de cinco anos, no segmento de TV paga.
Pelo mesmo período, ela poderá fazer a distribuição da obra em outros
segmentos de mercado, recebendo uma comissão de distribuição que pode variar
entre 20% e 30% da receita bruta.
Ou seja, na primeira janela de exibição da obra, a produtora independente
não receberá nada pela obra. Nas janelas subsequentes, 30% da receita bruta
ficarão com a programadora. Depois de pagos os impostos, do que sobrar, a programadora (que investiu apenas recursos públicos) terá direito a 49%,
cabendo o restante para a produtora independente.
Esse é um modelo de negócio que evidentemente não leva a auto-sustentação. E
não se trata, como poderiam alegar, de um caminho paulatino, passo-a-passo.
Simplesmente não há como uma produtora independente um dia vir a se
viabilizar economicamente com um modelo de negócios como esse. Nem que
passem cem anos ela terá saído do lugar onde se encontra hoje (embora possa
ter crescido significativamente em termos de obras produzidas e capital
investido - porque sustentabilidade é bem diferente de receita).
Então, ao contrário do que você disse, não se trata de demonizar o produtor
(embora eu não pretenda tampouco santificá-lo). Mas, é preciso entender que
esse modelo de negócios levou-o a viver da produção e não da comercialização
de seus produtos. E o que ele faz hoje (como faria qualquer ser humano) é
simplesmente tentar sobreviver nesse modelo (por mais estranho que ele
seja). Isso resulta no fato de que a ocupação de espaços no órgão de fomento
passe a ser uma atividade-chave para a sobrevivência desses produtores. É
ali, e não no mercado, que estão os recursos que garantem o caixa de sua
empresa.
Não entender isso, não fazer a crítica desse modelo, é tapar o sol com a
peneira.
Como pesquisador, suponho que você vá concordar comigo. Não é correto usar
expressões genéricas como "os cineastas e produtores buscam" ou "seria o
sonho dos produtores/realizadores brasileiros".
Uma pesquisa criteriosa deveria começar entendendo que existem enormes
diferenças no interior de expressões aparentemente tão simples como
"cineastas" e "produtores". Há setores que vivem há décadas encrustados no
Estado brasileiro. Há um setor proto-empresarial que recém ensaia seu
nascimento. Há gritantes diferenças regionais. Enfim, há um mar de
diferenças, divergências (embora subterrâneas) e contradições.
Parece-me ser fundamental entender que grupos são esses, quais seus
interesses, quais suas articulações, em que momento atuam juntos e quando se
separam, etc. Sob pena de colocarmos todos no balaio de gatos de "produtor
independente brasileiro", quer seja para demonizá-lo quer seja para
santificá-lo no altar da cultura nacional.
Por fim, embora não devamos demonizar ninguém, não perceber as articulações
que se constroem nesse momento sucessório, é pecar pela ingenuidade. E a
ingenuidade é um dos maiores pecados que um regulador pode cometer.
Gustavo Gindre.
Marcelo Ikeda
Com esse tipo de discurso acusatório, me parece que não chegaremos a lugar algum, a não ser aprofundar o ressentimento. Quando o Gustavo Gindre fala, noto que é preciso conhecer melhor a história do cinema brasileiro. Seu exemplo, comparando o setor regulado por outras agências com o pela ANCINE, é extremamente infeliz.
Primeiro, é preciso conhecer as circunstâncias históricas que levaram à criação da ANCINE, e de outros órgãos afins no passado. Os cineastas e produtores buscam ser ativos na formulação das políticas públicas desde um passado longínquo do cinema brasileiro, e o fazem não por uma questão de oportunismo mas simplesmente por uma questão de sobrevivência. Seria o sonho dos produtores/realizadores brasileiros se o governo brasileiro tivesse uma política pública, sólida, estável, de Estado, como a francesa, e eles só precisassem se preocupar em produzir/realizar filmes, e não ficar em reuniões de gabinete. Nenhum produtor gosta disso. Nenhum produtor está na política pública porque quer, mas porque é preciso, porque há pouquíssimos quadros no governo brasileiro que pensem uma política cultural – isso felizmente está aumentando, mas ainda é bastante pouco.
É preciso lembrar que a ANAC, a ANATEL e a ANS certamente não foram criadas pela pressão das companhias aéreas, das telefônicas ou dos planos de
saúde, mas a ANCINE, ela só foi criada por um enorme esforço de mobilização que partiu justamente dos cineastas e produtores, entre outros, organizados no III CBC. Ou seja, nos seus termos, é como se "o próprio setor regulado quem pediu para ser regulado", porque não havia (talvez nunca tenha havido) uma política cinematográfica de Estado neste país. Porque a regulação, enfim, poderia contribuir para corrigir as enormes distorções do mercado audiovisual brasileiro, pequeno e concentrado, avesso ao produto nacional que não encontra escala em seu próprio país continental. (A questão que se coloca é porque foi uma agência reguladora, e não outro órgão de governo, mas essa discussão, ainda que extremamente relevante, é árida e longa, e não poderá ser sequer colocada aqui, uma parte dela procurei desenvolver, a nível introdutório, na minha dissertação de mestrado...) Ou ainda, se você fala em Amil, Unimed, Tam, Gol, etc, ou seja, os grandes oligopólios do setor regulado, essa comparação não pode ser feita com o produtor independente, evidentemente atomizado. Para que essa comparação faça
sentido, você deve comparar com os moguls do setor audiovisual, as distribuidoras
globais (as majors), no caso do cinema, a Globo(sat) e as programadoras da ABTA, no caso da televisão, as empresas de telecom, se você quiser expandir um
pouco mais. Esses sim representam os setores que precisam ser REGULADOS pela Ancine. E esses são os setores que evidentemente, historicamente, sempre foram e serão contra a atividade regulatória, e nunca indicarão, pelo menos oficialmente, nomes para ocupar a ANCINE. E não a produção brasileira independente, o elo mais frágil da cadeia, o que precisa começar primeiro a injetar recursos para a realização de uma obra, e o que será o último a receber (quando recebe) parte de sua renda auferida, segundo a forma de remuneração padrão do mercado do audiovisual, que obviamente beneficia os oligopólios de distribuição.
Poderia prosseguir mais com esse raciocínio, dizendo que, evidentemente, o audiovisual NÃO é igual aos demais setores produtivos econômicos, pois produzir uma obra audiovisual é muito diferente de produzir uma commodity como um sabonete, uma pasta de dentes, etc. O audiovisual, como CULTURA, possui outros valores para além de sua valoração econômica, podendo funcionar inclusive como uma forma de resistência ao processo esmagador de triunfo da economia, do retorno monetário, sobre os demais valores da sociedade de hoje, mas não vou poder aqui desenvolver esse raciocínio, que julgava ser básico para quem trabalha num lugar como a ANCINE: conhecer a enorme tradição do cinema brasileiro e saber que uma obra audiovisual vai muito além de ser um mero produto econômico. Mas aqui retomo ao início desse meu texto, que já vai se alongando, para afirmar que, com esse tipo de discurso acusatório, não chegaremos a lugar algum. Nesse ponto, concordo com o Daniel Mattos: quem se beneficia com esse bate-boca são as instâncias já estabelecidas. Os servidores da ANCINE enfrentam sua dificuldade de autonomia; os produtores brasileiros procuram sobreviver num mercado esmagado, concentrado e pequeno. Acusações não nos farão entender melhor as dificuldades de ambas as partes: nem os produtores acusando que os servidores da ANCINE são meros burocratas, nem os servidores da ANCINE acusando os produtores de serem lobbistas ou tacanhos. Acredito que seja possível uma interlocução maior entre ambas as partes que têm interesse em comum, como bem disse o Sílvio Tendler: o desenvolvimento do audiovisual brasileiro, de forma plural. Reconhecendo também que cada uma das partes precisa se esforçar mais para reconhecer suas limitações e trabalhar em torno de ideias e projetos, ao invés de simplesmente indicar nomes ou ao invés de buscar consolidar o seu lugar de fala depreciando o lugar do outro.
Marcelo Ikeda.
Gustavo Gindre
Não vou emitir juízos de valor. Peço, apenas, que cada um faça a sua
reflexão. Do ponto de vista regulatório, o que achariam os senhores e senhoras se
lessem nos jornais que AMIL e UNIMED publicaram uma carta pedindo que o
presidente da ANS tenha direito a um inédito e excepcional terceiro mandato?
Ou que TAM, Gol e Azul se dirigiram à Casa Civil clamando pela permanência
do presidente da Anac.
Do ponto de vista do fomento, o que achariam se, justamente no momento em
que se discute as novas regras para uso dos recursos do PAC, um grupo de
grandes empreiteiras pedisse publicamente a permanência do secretário de
obras?
Vejam que não estou dizendo que isso é bom ou ruim. Podem haver
argumentos a favor ou contra. E ambos podem ser legítimos.
Eu só defendo que o setor audiovisual não seja (mais uma vez) tratado como
algo excepcional, fora da vida normal dos demais setores econômicos. E que
aquilo que vale (ou que não vale) para os demais setores também valha (ou
não valha) para o audiovisual.
Fica o pedido de reflexão que, muito provavelmente, será recebido com
silêncio. Mas, ok...
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