CHINA
Paulo Nogueira (Diário do Centro do
Mundo) Tribuna da Imprensa
Leio a monumental História
da Inglaterra de David Hume, filósofo, historiador e escritor inglês do século
XIX.
Hume, um dos grandes
ideólogos do liberalismo, viveu e morreu como um verdadeiro filósofo. Era um
homem simples, frugal, honesto, leal, corajoso, moderada até em sua única
vaidade — literária. Segundo seu amigo e admirador Adam Smith, Hume chegou
moralmente ao ponto mais alto que a fragilidade humana permite.
Vários trechos da A
História da Inglaterra me despertam a atenção admirada. Num deles, no capítulo
que trata de Carlos I, o rei inglês que se bateu com o Parlamento e acabou
deposto e decapitado em meados do século XVII na primeira revolução burguesa da
humanidade, Hume lança um olhar para a influência da religião entre os
britânicos nos dias do monarca infeliz.
Assim disse Hume: “De
todas as nações europeias a Grã Bretanha era naquele momento, e por muito mais
tempo, a mais influenciada por aquele espírito religioso que tende mais a
inflamar o fanatismo do que a promover a paz e a caridade.”
São palavras eternas.
Lamentavelmente, ao longo
da história, a religião tem servido muito mais para piorar do que para melhorar
as pessoas e a sociedade. Quem acaba dominando-a não são os moderados, os
tolerantes, aqueles que aceitam a diversidade. São os radicais, os fanáticos,
os que acham que podem matar os infiéis em nome de seu Deus, seja qual for.
O filósofo inglês Bertrand
Russell atribuiu ao judaísmo, no Ocidente, a semente da ideia de que uma
religião é melhor que outra ao estabelecer que os judeus eram o povo escolhido.
Os cristãos, posteriormente, trucidaram ignominiosamente os judeus por entender
que escolhidos, na verdade, eram eles. Depois os cristãos se destruíram uns aos
outros, quando Lutero inventou o protestantismo. Os muçulmanos já surgiram com
a convicção de que Alá é o único deus genuíno.
Tenho para mim que um dos
maiores fatores do fenômeno chinês está na ausência de religião e da figura de
Deus. A China era a civilização mais adiantada do mundo quando foi pilhada
pelos britânicos no século 19, superiores em uma única coisa: canhões. Depois
dos britânicos, outras potências militares ocidentais foram tirar sua fatia da
China — já então um mercado cobiçado de 400 milhões de pessoas. E quando
parecia que nada mais poderia castigar a China apareceram seus vizinhos
japoneses.
A China poderia ter virado
um figurante no mundo. Mas não: se reergueu depois de tantas agressões
predatórias, e ninguém acredita que em dez anos ela já não tenha ultrapassado
os Estados Unidos como superpotência número 1. (Sempre existe a possibilidade,
é claro, de que os americanos inventem um pretexto para declarar guerra à
China.)
A impressionante
resistência chinesa deve muito à inexistência de religião tal como conhecemos.
Confúcio, o grande filósofo que estabeleceu as bases éticas que governam a
China há 2 500 anos, acabou fazendo o papel de Deus para os chineses com a
vantagem de não ser Deus e nem ser entendido como tal. Confúcio pregou três
coisas, essencialmente: os jovens devem ser muito bem instruídos; os amigos
devem ser leais uns aos outros; e os filhos devem cuidar exemplarmente dos
velhos.
Confúcio deu aos chineses
um guia de conduta prático e sempre atual. A musculatura interior veio do
budismo, em que não existe a figura de Deus. Buda era um ser humano como todos
nós — entregue às tentações, cheio de dúvidas, repleto de tentações. Na
fraqueza aparente de Buda diante dos deuses de outras religiões estava,
paradoxalmente, a força do budismo — e em consequência da China.
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