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quarta-feira, 28 de março de 2012

Artigo de Cinema

Fábio com a atriz Maria Gladys CONVERSANDO COMIGO MESMO –
O FANTASMA DO CINEMA
Fábio Carvalho


Uma das mais célebres pesquisas surrealistas
começava com essa pergunta:
que esperança coloca no amor?
De minha parte respondi:
se amo, esperança total.
Se não amo, nenhuma.
Luis Buñuel
Após um intenso debate dentro de mim, concluí que o filme CINEMA NUNCA MAIS, agora no momento da sua finalização, amadureceu e se metamorfoseou em O FANTASMA DO CINEMA. O organismo vivo do filme a partir da mudança do nome se sentiu compreendido, e passou a funcionar saudavelmente com as veias e as artérias desentupidas. A câmera filma o pensamento. Quarta-feira, sete do três do doze, embarquei na rodoviária de BH, num ônibus da empresa Atual rumo a Juiz de Fora para me encontrar com o meu maestro Big Charles. Me sentia muito bem e tranqüilo naquela temporária nova vida de trinta e poucos dias me abstendo dos paraísos e dos infernos etílicos. Ainda melhor eu estava, para minha surpresa, por não ter que dispender nenhum esforço de contenção. Descobri que sou um alcoolista controlado. Já na partida cochilei. Assim eu estava na calçada parado, esperando não sei o que. Era uma rua do bairro Prado, onde passei minha infância e parte da adolescência. Dor passada não dói. A nostalgia sempre andou longe de mim. Vem se aproximando pela guia, em fila indiana, a Beth sua bela filha Luíza e a netinha.
Noto que a Luíza está chorando. Tento despistar, para elas não me verem e passarem direto, quando a Luíza me vê e a Beth me chama. Vamos caminhando juntos até uma van que estava parada algumas quadras adiante. Entramos na van e a Luíza continua chorando. Penso em perguntar o motivo das lágrimas, mas não pergunto. Também não pergunto aonde vamos. Peço para o motorista parar para eu descer em um lugar desconhecido. Desço com outras pessoas de quem não me lembro. Estamos num pátio interno de um edifício. Um urso preto enorme rosna perigosamente em nossa direção.
Subitamente ele pula o muro e reaparece atrás de uma grade, e a empurra contra nós completamente furioso e babando. Aparece o Toninho, chuta o urso que rola ladeira abaixo. Agora estou sozinho andando por ruas que me são familiares e ao mesmo tempo estranhas. Percebo vendo de baixo uma escadaria, que eu já tinha descido vindo da casa do Simão, estava na direção certa para onde eu não sabia. Do meu lado, depois da escadaria, vejo um prédio cercado por um muro baixo. Subo no muro com a intenção de pular para o outro lado. Lá em cima vejo que o outro lado é separado por um vão de três andares abaixo do térreo. Desequilibro e quase caio, me pergunto se ainda estou vivo, coisa que me é recorrente. A bruxa entra pela janela e em círculos trombando no lustre repetidas vezes. A gata elegantemente pula na mesa observando o vôo da bruxa. Pego a mãozinha de madeira de coçar as costas, e lhe acerto uma paulada. Destrambelhada a bruxa vai voando em zigue-zague até cair no telefone preto. Catherine Deneuve me diz o quanto meu ato foi absurdo e aproxima sua boca da minha. O mundo é cruel, a obra de arte é a nossa vingança. Desperto com o ônibus parando e descubro para meu desgosto total que ele pararia em todas as cidades no caminho até o meu destino. Era o famoso pega jeca. Não só o Rio de Janeiro a imensidão e o mar. A evasão do meu humor me propiciou bastante desconforto. Pneu furou ascenda o farol. Depois de ter certeza que era impossível, chequei na rodoviária de J.F. De lá eu iria encontrar com o Big no centro da cidade, algumas léguas dali, mas ele já estava me esperando na rodô. Compramos passagem para o Rio no dia seguinte ao meio dia. Pegamos um táxi em direção ao centro para comermos. O tempo fechou. Então decidimos ir direto para o Morro das Pedras Preciosas onde fica o extraordinário chalé do extraordinário Big, antes da chuva. O Big, carinhoso como sempre, tinha me preparado uma recepção calorosa, formada de uma garrafa de Grant’s, outra de Black&White e alguns acepipes, além de um banheiro reformado com toalhas limpas. Ele tinha certeza que eu esqueceria a escova de dentes, portanto comprou uma para mim. Infelizmente eu tinha levado a minha. Como se vê, tive que dar uma trégua para minha crise de abstemia. Nós já estávamos trabalhando na trilha sonora desde o inicio das filmagens que aconteceram em 2007. O Big vinha pensando em utilizar uma orquestra de câmara. O motivo de nosso encontro agora era fechar as idéias vendo o filme na sua montagem final e produzirmos as gravações. Vamos lembrar os dois mestres chamados Jean. O Godard disse: a ficção é o documentário do imaginário do autor. Enquanto o Rouch argumenta que a única maneira de fazer um documentário, é fazer um documentário sobre o fato de fazer um documentário. E ainda um terceiro Jean também mestre, o Renoir disse: o mundo de Stroheim existe como o de Cézanne ou o de Picasso. Seus cidadãos são perfeitamente reconhecíveis: têm sua linguagem, seus costumes. Ultrapassam a realidade. Pois bem, descemos a primeira garrafa até a metade e como já tinha escurecido estava na hora de vermos o filme. Embora eu estivesse bastante ansioso para resolvermos logo a logística desta missão impossível, antes do filme o Big falou que queria me mostrar uma “coisa”, e sacou mais um coelho de sua enorme cartola. Era uma peça em três movimentos registrada há dois meses por nosso amigo Zé Luís Good, composta e tocada ao piano pelo próprio Big. A magistral trilha sonora do filme já ali pronta e irretocável. Acho que caí para traz quando ouvi. Só acreditei porque não duvido dos ancestrais nem dos alquímicos futuristas. Vimos que era a do filme esta expectativa sonora, claro estava que aquela música nasceu para o filme. O tom exato. Os dedos curtos de não pianista expressando toda sua verve artística e criativa a la Thelonious, Glenn Gould e Hermeto. Era o cinema música. Atingimos o êxtase da trepanação lá no topo do mundo das Pedras preciosas. Derrubamos as duas garrafas em meio a dezenas de cigarros e eloqüentes discussões em torno dos planetas que nos habitam, tendo como única testemunha a cachorra Pirata. CELA S’APPELLE L’AURORE. Fomos voando para o Rio. Minha alma canta. Quero aqui acrescentar o escrito de outro mestre Roberto Rossellini: “De que serve liberar o cinema das pressões do dinheiro, se é para levá-lo às pressões do fantasma individual, à espera de que o fantasma se torne coletivo para trazer-lhes o sucesso?”

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