UMBERTO ECO propõe aqui uma brincadeira:
algumas obras, hoje consagradas, são submetidas a um hipotético editor. E,
analisadas em “fichas de leitura”, são, finalmente, recusadas. Esta é uma
experiência pela qual todo escritor novo, em qualquer parte do mundo, já
passou: mandar seus originais para uma grande editora, ficar esperando um
contrato ou pelo menos uma proposta e, de repente, receber uma carta muito
amável assinada pelo editor. Nessa carta. ele é informado de que certamente seu
livro tem qualidades, de que provavelmente seu livro fará sucesso e de que
infelizmente seu livro não será publicado.
Anônimo
A
Bíblia
Devo confessar que
quando comecei a ler os originais, e durante as primeiras páginas, senti-me
entusiasmado. Ali há ação pura e tudo o mais que o leitor de hoje exige de uma
obra de evasão: sexo (muitíssimo), com adultério, sodomia, homicídio, incesto,
guerras, etc.
O
episódio de Sodoma e Gomorra, com os travestis que pretendem violar os anjos, é
digno de Rabelais; as histórias de Noé são o mais puro Emilio Salgari; a fuga
do Egito é uma história que, mais cedo ou mais tarde, acabará sendo filmada… Em
resumo, trata-se do verdadeiro roman-fleuvebem estruturado, que não
economiza efeitos, pleno de imaginação com aquela dose de messianismo que
agrada, sem chegar ao trágico.
Mais adiante, no entanto, percebi que se
trata, na verdade, de uma antologia de vários autores, com muitos, excessivos,
trechos do poesia, alguns francamente lamentáveis e aborrecidos, choradeira sem
pé nem cabeça.
O resultado é um feto monstruoso que
corre o risco de não agradar a ninguém, porque tem de tudo. Além disso, será
cansativo estabelecer a questão dos direitos de tão diferentes autores, a menos
que o representante de todos eles se encarregue da tarefa. Mas nem no índice
encontrei o nome desse representante, como se houvesse da parte dos autores
interesse em manter seu nome oculto.
Talvez
fosse possível publicar separadamente os primeiros cinco livros. Aí estaríamos
pisando em terreno firme. Com o título: Os Desesperados do Mar
Vermelho.
Homero
A
OdisséiaPessoalmente, o livro me agrada. A história tem beleza, é apaixonante,
cheia de aventuras. Tem a dose exata de amor, fidelidade e de escapadas
adulterinas (multo boa a figura de Calipso, uma típica devoradora de homens);
tem, inclusive, um momento “lolitico”, na melhor linha nabokoviana, com uma
ninfeta chamada Nausicaa: no episódio, o autor se permite algumas ousadias, mas
em momento nenhum incorre em excessos. O conjunto é excitante. As cenas merecem
figurar ao lado das melhores já produzidas no gênero western: a
luta é violenta, a cena do arco explora, até as últimas possibilidades, o
potencial literário de suspense.
Que
mais poderia dizer? Leio essa de um sopro, melhor que o primeiro livro do
autor, excessivamente estático em sua insistência de permanecer no mesmo lugar,
cansativo pela exuberância de acontecimentos (na terceira batalha e no décimo
duelo, o leitor já entendeu todo o mecanismo). Ademais, a história de Aquiles e
Patrocio, com seu fio latente de homossexualidade, nos transmite um certo
desagrado. Ao contrário, neste segundo livro, tudo caminha maravilhosamente;
até o tom é mais sereno: pensado mas não reflexivo. Depois, a montagem, o jogo
de flash-backs, o encadeamento das histórias! Em suma, muita
categoria. De fato, esse Homero tem talento.
Talento demais, seria o caso de
dizer… Chego a me perguntar se tudo ali será farinha do mesmo saco.
Sabe-se como é: escrevendo, escrevendo, a gente melhora (quem sabe se o
terceiro livro será um estouro). Mas o que me faz vacilar (e, afinal, me leva a
opinar negativamente) é a confusão que pode resultar da questão de direitos.
Antes de tudo, é impossível localizar o
autor. Os que o conhecem dizem que, de toda maneira, seria inútil discutir com
ele as pequenas modificações que deviam ser introduzidas no texto, pois é cego
como uma toupeira e, em mais de uma ocasião, deu provas de ser incapaz sequer
de escrever. Dizem que tinha seus originais na memória, mas que não estava
muito seguro do que havia escrito, alegando que o copista havia introduzido
interpolações na obra. Terá ele sido o autor ou apenas um testa-de-ferro?
Dante
A
Divina ComédiaO trabalho de Alighieri, embora de um típico escritor de fim de semana que, na
vida sindical, está filiado ao órgão de classe dos farmacêuticos, demonstra
indubitavelmente, certo talento técnico e notável “alento” narrativo. A obra
(em florentino vu!gar) compõe-se de quase 100 cantos em tercetos rimados e se
constitui em leitura agradável e interessante. Gosto, principalmente. de suas
descrições de astronomia e certos juízos concisos e densos, que faz com freqüência,
sobre teologia. Mais inteligível e popular é a terceira parte do livro, que diz
respeito a assuntos mais do gosto da maioria, e que concernem aos
interesses cotidianos do possível leitor (assuntos tais como a salvação, a
visão beatifica, a devoção à Virgem Maria). Obscura e caprichosa é a primeira
parte, com passagens de baixo erotismo, violência e trechos francamente
grosseiros. Esta é uma das poucas contra-indicações para superar esse primeiro
“canto”, o qual, quanto à criatividade, não diz mais do que já foi dito por
milhares de manuais sobre o outro mundo.
Diderot
A
Religiosa
Confesso
que não cheguei a folhear os manuscritos, mas acredito que um critico deve
saber, até de olhos fechados, o que deve e o que não deve ler. Conheço esse
Diderot: redige enciclopédias e agora tem em mãos um projeto de obra em não sei
quantos volumes, que provavelmente jamais será editada. Anda por toda parte
procurando desenhistas capazes de copiar o mecanismo de um relógio, ou as
minúcias de uma tapeçaria de Gobelin, e levará à falência seu editor. Não creio
que se trate do homem indicado para escrever algo divertido numa narrativa,
especialmente para uma coleção como a nossa, na qual sempre incluímos coisas
delicadas, um pouquinho picantes, como Restif de la Bretonne.
Sade
JustineO manuscrito estava em meio a um monte de coisas que eu devia ver esta semana,
e, para ser sincero, não o li todo. Limitei-me a abri-lo três vezes, ao acaso,
em três lugares diferentes, e vocês sabem que para um olho experimentado
isso é mais que o bastante.
Bem, da primeira vez encontrei uma
avalanche de páginas de filosofia da natureza com divagações sobre a crueldade
e a luta pela sobrevIvência, sobre a reprodução dos vegetais e a evolução das
espécies animais. Da segunda vez, deparei com pelo menos 15 páginas sobre o
conceito de prazer, sobre os sentidos e a imaginação, e mais coisas desse
gênero. Da terceira vez, outras 20 páginas sobre as relações de submissão entre
o homem e a mulher, nos diferentes países do mundo… Acho que isso basta. Não
estamos procurando uma obra de filosofia; o público, hoje, quer sexo e mais
sexo. Não importa a maneira como ele venha temperado.
Cervantes
Dom
QuixoteO livro, nem sempre inteligível, é a história de um gentil homem espanhol e de
seu criado, os quais vão pelo mundo perseguindo sonhos de cavalaria. Esse Dom
Quixote é um tanto louco (sua figura é magnificamente concebida: de fato,
Cervantes sabe narrar), enquanto seu criado é um simplório (dotado de certo e
rude bom senso), com o qual o leitor logo se identifica, quando ele procura
desmistificar as fantasias de seu amo. Até aqui o argumento, que se desdobra
com alguns bons efeitos e com freqüentes episódios divertidos, parece bem. Mas
a observação que quero fazer vai além de um juízo pessoal sobre a obra.
Em
nossa bem sucedida coleção econômica Os Fatos da Vida, publicamos,
com êxito notável, obras como Amadis de Gaula, A Lenda do
Graal, O Romance de Tristão, etc. Agora temos opção de
editar Reis da França, do mocinho de Barberino, livro
que para mim será o grande êxito do ano. Pois bem, se nos decidirmos por
Cervantes, poremos em circulação um livro que, não obstante ser muito bem
feito, atirará no lixo o publicado até agora, fazendo esses outros romances
parecerem coisa de idiota. Compreendo a liberdade de expressão, o clima de
rebeldia e tudo o mais, mas não podemos nos prejudicar a nós mesmos. A última
coisa que desejo é que, buscando novidades a qualquer preço, acabemos por
comprometer uma linha editorial que até agora foi popular, moral e também rendosa.
Recusar.
Proust
Em busca do tempo perdido
Trata-se,sem
mais nem menos, de uma obra comprometida, talvez muito grande; mas é possível
vendê-la através de uma série de livros de bolso.
Tal como está é impraticável. Falta nela
um trabalho vigoroso de depuração. Toda pontuação, por exemplo, terá de sofrer
uma completa revisão. Os períodos são muito cansativos e há alguns que chegam a
ocupar uma página. Com um bom trabalho de revisão que os reduza a dois ou três
linhas cada, com uma melhor utilização do ponto e do parágrafo, a obra teria
muito a ganhar. Se o autor não concordar, o melhor será não editá-lo.
Kafka
O
Processo
Não é mau essa
livrinho; é policial, com momentos a Hitchcock: por exemplo, o
homicídio final, passagem de público certo.
Parece, no entanto,
que o autor o escreveu sob censura. Que significam essas alusões obscuras, essa
falta de nomes, de pessoas, de lugares? De que crime acusam o personagem,
afinal? Se esses pontos puderem ser esclarecidos, tornando a história mais
concreta, a ação se tornaria mais límpida e mais certo o suspense.
Esses escritores jovens acreditam fazer
“poesia”, pois dizem “um homem”, em vez de dizer ”o senhor
tal, a tal hora, em tal lugar”.
Em síntese: se é possível fazer essas
modificações, bem; caso contrário, devolver os originais.
Joyce
Finnegans
Wake
Por favor, recomende à
redação que tenha mais cuidado quando me envia os livros. Leio inglês e me
mandam um livro escrito em sei lá que diabo de idioma. Em separado, estou
devolvendo o volume.
(*) Projeto Releituras.
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