DEVERÍAMOS ESTUDAR
CINEMA NAS ESCOLAS
Infelizmente, a maioria das pessoas acredita que o cinema é apenas
um passatempo, um entretenimento. Porém, o cinema apresenta funções múltiplas.
O cinema disseca e esfola a realidade externa e interna. E muito terá a ganhar
quem tiver olhos para ver, ouvidos para ouvir, coração para sentir e cabeça
para pensar.
Deveríamos
estudar cinema nas escolas como estudamos filosofia, ciências humanas e artes.
Não me refiro ao estudo técnico, com o intuito de formar diretores,
roteiristas, fotógrafos ou produtores. Ensinar a criar um argumento, fazer um
story-board, redigir e decupar um roteiro, conhecer os variados movimentos de
câmera e orientar os atores são competências que devem ser ensinadas em
faculdades, cursos técnicos e livres especializados na área.
Me refiro ao
estudo teórico e intelectual. Me refiro ao entendimento do cinema como uma
disciplina de entremeio, isto é, uma disciplina que engloba mais de uma área.
Cinema é arte, comunicação e tecnologia ao mesmo tempo. Para o filósofo
argentino, professor da Universidade de Brasília, Julio Cabrera cinema é
filosofia. Para ele, cinema e filosofia deveriam ser estudados por todas as
pessoas por se tratarem de importantes formas de se fazer pensar. Cabrera vai
além. Ele diz que o cinema faz pensar afetivamente.
Infelizmente, a
maioria das pessoas acredita que o cinema é apenas um passatempo, um
entretenimento. Muitos filmes servem apenas para divertir mesmo e não há
problema algum nisso. Quem não gosta de ver um filme para rir, se emocionar ou
sentir medo?
Porém, o cinema
apresenta funções múltiplas. O cinema diverte, leva a catarses, informa, educa,
conscientiza, suscita reflexões, divulga conhecimento e estimula o autoconhecimento.
Por meio do cinema aprende-se sobre culturas variadas, depara-se com temas
tabus, repensa-se valores, desconstrói- se e reconstrói-se conceitos,
questiona-se o poder instalado nas macro e microestruturas. O cinema perpassa
todos os âmbitos da sociedade e do ser humano, desnudando estruturas injustas
de poder instaladas nas esferas privadas e públicas, revelando um mundo que
poderia existir, propondo mudanças ou um novo olhar para o mundo existente.
Diferentemente
do que a maioria das pessoas acredita o cinema não é uma arte menor ou menos
profunda do que a literatura, por exemplo. Cada arte tem o seu valor e
importância. Cada arte tem os seus pontos fortes e apreciar mais ler do que ver
filmes ou vice-versa pode ser considerada uma questão de gosto. Podemos
encontrar em todas as artes muitos exemplos de obras profundas, medianas ou
rasas.
Se a sondagem
psicológica é o ponto forte da literatura, o ponto forte da música é despertar
rapidamente emoções muito marcantes, podendo até mesmo mudar o estado de
espírito de quem a escuta. As artes plásticas também promovem reações
instantâneas, sem falar, que podem ser entendidas independente do idioma.
Todas as artes
podem interferir na linguagem das outras e a questão da idade não deve ser
considerado um requisito para definir uma hierarquia entre as mesmas. A jovem
fotografia inspirou o impressionismo e libertou os pintores de retratar a
realidade. A literatura interferiu na linguagem do cinema, mas a sétima arte
também promoveu mudanças à literatura contemporânea , proporcionando à mesma um
olhar mais intimista e fragmentado.
A televisão,
mais especificamente a teledramaturgia, é a continuação das novelas de rádio
que nasceram dos folhetins. As novelas mesclam elementos narrativos e estéticos
do cinema e do teatro.
Se o cinema
fosse visto como uma possibilidade de conhecimento e autoconhecimento, como um
meio de reavaliar valores, quebrar tabus e preconceitos e reorganizar
estruturas de pensamento, ele poderia gerar importantes e grandes
transformações individuais e coletivas. Sabe-se que o cinema é capaz de
promover profundas mudanças a longo prazo. Outras artes também poder nos fazer
refletir e rever valores, como o teatro e a literatura, por exemplo. Mas o
cinema envolve uma questão sensorial que extrapola o intelecto e abstrato e
atinge os sentidos, promovendo sensações de nojo, piedade, simpatia, aceitação
ou rejeição de forma muito visceral.
Se o hábito da
leitura é excelente para treinar a concentração e a imaginação, o cinema
trabalha um outro tipo de criatividade. Se a literatura parte do abstrato para
imagens que formamos em nossa mente, o cinema pega o outro sentido da rodovia.
Ele parte da imagem para o abstrato, para os conceitos, para as ideias. Mas se
assistimos apenas a filmes para passar o tempo ou que reforçam visões
preconceituosas e estereotipadas do mundo, o que poderia ser um antídoto contra
a exclusão, o etnocentrismo, a violência torna-se mais um alimento para uma
sociedade pautada pelos ideais hedonistas e imediatistas da nossa cultura
materialista.
Filmes como
Clube da luta e Um dia de fúria questionam os valores da sociedade de consumo.
Filmes como Beleza Americana e Pequena Miss Sunshine, o american way of life.
Filmes como Sociedade dos poetas mortos, O sorriso de Mona Lisa e Escritores da
liberdade, o papel libertário do professor. Filmes como O inquilino e Cisne
negro, a mente de um esquizofrênico. Filmes como Lua de fel e Veludo azul, o
sofrimento gerado pelas perversões. Filmes como A bela da tarde e Foi apenas um
sonho, o lado B do casamento. Filmes como Gritos e sussurros e O silêncio, as
obscuridades familiares. Filmes como Menina bonita, O sopro do coração, Trinta
anos esta noite e Perdas e danos ( os quatro de Louis Malle) o lado sensível
dos temas tabu. Filmes como O açougueiro e Em suas mãos, o lado humano dos
psicopatas. Os exemplos de como um filme pode elucidar temas e mostrar culturas
e personalidades é extremamente amplo e complexo.
Em resumo:
deveríamos ter um docente que falasse e mostrasse filmes capazes de fazer as
crianças e adolescentes pensarem afetivamente, a fim de que se tornassem jovens
e adultos mais lúcidos nos sentidos ético, moral, estético e psicológico, sendo
mais capacitados para fazer escolhas conscientes e consistentes.
SÍLVIA MARQUES
Paulistana,
escritora, idealista em crise, bacharel em Cinema, cinéfila, professora
universitária com alma de aluna, doutora em Comunicação e Semiótica, autodidata
na vida, filósofa de botequim, com a alma tatuada de experiências trágicas,
amante das artes , da boa mesa, dos vinhos, de papos loucos e ideias
inusitadas. Serei uma atleta no dia em que levantamento de xícara de café se
tornar modalidade esportiva. Sim, eu acredito realmente que um filme possa
mudar a sua vida! Autora do blog Garota desbocada. Lancei recentemente em
versão e-book pela Cia do ebook o romance O corpo nu..
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