CANSADA DE
SER FRIA
Nelson
Rodrigues
Quando o
irmão apareceu na porta do escritório, perguntou:
— Qual é o
drama?
E Gervásio,
arriando na cadeira:
— Preciso
muito falar contigo.
Apanha um
cigarro.
— Fala!
Então, já com
os olhos cheios de lágrimas, o outro pede:
— “Primeiro,
fecha a porta”. Felipe sente que o irmão está arrasado.
Surpreso,
levanta-se e passa a chave na porta. Volta-se e pergunta:
— Mas o que é
que há?
Gervásio tem
um soluço imenso:
— Sou traído!
Adélia me trai! Tem um amante!
Estupefato,
Felipe balbucia:
— Não é
possível! Não pode ser!
Repete:
— Me trai,
sim! — E batia no peito: — Sou traído!
— Não
acredito, só vendo!
Adélia
A princípio,
Felipe pensou num caso de ciúmes doentios. Mas o outro o desiludiu. Mandara
seguir a mulher por um detetive particular. E agora sabia de tudo — nome,
endereço, dias de encontros, horários. Na véspera, metera-se com o detetive num
táxi e lá foram os dois, para a esquina do apartamento do pecado. Viram quando
Adélia saltara de outro táxi e entrara no edifício. Gervásio podia ter uma
atitude qualquer, de marido, de homem. Mas desde a véspera que se limitava a
chorar. Gemia para o irmão: — “Sou um pulha, um tarado! Não fiz, nem vou fazer
nada”. E súbito, no seu desespero, crispa a mão no braço do irmão:
— Agora compreendo
tua situação. Imagino o que não sofre!
Felipe
volta-se, espantado:
— Minha
situação? — Sem entender, continua: — Mas que
situação?
situação?
Gervásio
passa as costas da mão nos olhos. Arqueja: — “Nós também somos irmãos em
desgraça. Eu sou traído por um lado: tu és traído por outro!”.
Há uma pausa.
Felipe instiga:
— Sou traído
e…
— Pois é: —
és traído e sabes, como eu.
Por um
momento, Felipe não sabe o que pensar ou o que dizer. E, súbito, sem que o
Gervásio possa prever-lhe o gesto, agarra-o pela gola do paletó e o sacode:
— Você vai me
contar tudo, tudinho, seu cachorro! Quem lhe disse que eu sou traído e que
sabia? Fala ou te arrebento.
Desconcertado,
Gervásio debate-se:
— Mas que é
isso? Não faça isso! Calma!
Felipe
trincou os dentes:
— Quero a
verdade, toda a verdade!
Revelação
Sacudido por
Felipe, que o ameaçava de quebrar a cara e até de lhe dar um tiro na boca,
Gervásio confundiu-se todo:
— Eu pensei
que você soubesse. Todos pensam que você sabe e perdoa!
Felipe
interrompeu: — “Não quero comentários. Quero informações. Anda!”. Então,
esquecido da própria tragédia, lá foi o Gervásio falando. O outro corta outra
vez:
— Quero o
nome do amante!
O irmão
vacila, mas acaba tomando coragem:
— São vários!
Recua,
desgovernado: — “Vários?”. E insiste: — “Mais de um?”.
Gervásio
confirma. Então, diz, com um meio riso hediondo:
— Tens mais
sorte do que eu. A tua só tem um! Mas continua! Gervásio contou-lhe o resto.
Parentes, amigos, simples conhecidos sabiam de tudo. E ela não discriminava,
não escolhia, como se o seu destino fosse trair, apenas trair. Felipe apertava
a cabeça entre as mãos.
Faz uma
pergunta, que é um lamento: — “Por quê, meu Deus, por quê?”.
Vira-se, com
o rosto devastado:
— Quer dizer
que todo o Rio de Janeiro sabia, menos eu? Gervásio levanta-se. Felipe o
acompanha até a porta. Bate-lhe nas costas, com um humor ignóbil:
— Parabéns,
porque a tua só tem um e a minha vários!
O Choque
Durante uma
hora, uma hora e pouco, ele ficou só no gabinete, entregue a uma meditação
ardente e vazia. Quando apareceu uma funcionária com uns papéis, explodiu: —
“Vai-te para o diabo que te carregue!”. A moça fugiu apavorada. Por fim, ele
levantou-se, pôs o paletó e apanhou o revólver na gaveta. Meia hora depois,
chega em casa.
Entra e,
impassível, faz um sinal para a mulher:
— Vamos bater
um papinho lá dentro.
Tranca-se à
chave com a esposa. Ela pergunta: — “Alguma novidade?”. Rápido ele puxa o
revólver. A esposa recua: — “Que é isso?”. Foi sumário:
— Soube isso
assim, assim. É verdade? Responda.
Ergue o
rosto:
— É verdade.
Há uma pausa.
Ele, quase chorando, pergunta: — “Já que confessa, quero que me responda: —
você merece a morte?”. Ela teve uma breve vacilação. Acabou respondendo, com
uma firmeza não isenta de doçura:
— Mereço. Eu
mereço a morte.
E ele:
— Escuta: —
eu devia te matar como a uma cachorra. Mas há, nisso tudo, um mistério. Eu te
perdoarei a vida se me disseres a verdade. Por que me traíste? Fala!
— Por quê?
O marido
continua:
— Eu sempre
te conheci fria, de gelo, de pedra, de morte. Já no namoro, tinhas horror de um
simples beijo. No casamento, a mesma coisa. Sempre me disseste que odeias a
parte física do amor. Responde: — não me disseste sempre?
Felipe está
ofegante. Prossegue: — “A mulher fria é a única que não tem o direito de trair.
Por que me traíste, por quê?”.
Durante um
momento, os dois se olharam apenas. Ela se tornara para o marido a última das
desconhecidas.
O marido
insiste: — “Se me explicares, eu não te farei nada, juro!”.
Então, sem desfitá-lo,
a mulher fala:
— Eu te traí
na esperança do amor de que todos falam. Minhas amigas contavam maravilhas dos
seus amores. Eu quis encontrar o meu.
— E daí?
Encontraste?
Ela ficou
calada. Finalmente respondeu:
— Nunca.
O Desfecho
Sem uma
palavra, ele abre a gaveta e guarda lá o revólver. Levanta-se e sai. Imóvel e
silenciosa vê o marido abrir a porta, atravessar a sala e sair. Então, sozinha,
apanha um lápis e um papel e escreve, uma porção de vezes: — “A mulher que não
pode amar também não deve viver”. Horas depois, tira da gaveta o revólver do
marido. Já que ele não a matara, ela se matou — cansada de ser fria.
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