QUEIXA DE
DEFUNTO
Lima Barreto
Antônio da
Conceição, natural desta cidade, residente que foi em vida, a Boca do Mato, no
Méier, onde acaba de morrer, por meios que não posso tornar público, mandou-me
a carta abaixo que é endereçada ao prefeito. Ei-la:
Ilustríssimo
e Excelentíssimo Senhor Doutor Prefeito do Distrito Federal. Sou um pobre homem
que em vida nunca deu trabalho às autoridades públicas nem a elas fez
reclamação alguma. Nunca exerci ou pretendi exercer isso que se chama os
direitos sagrados de cidadão. Nasci, vivi e morri modestamente, julgando sempre
que o meu único dever era ser lustrador de móveis e admitir que os outros os
tivessem para eu lustrar e eu não.
Não fui
republicano, não fui florianista, não fui custodista, não fui hermista, não me
meti em greves, nem em cousa alguma de reivindicações e revoltas; mas morri na
santa paz do Senhor quase sem pecados e sem agonia.
Toda a minha
vida de privações e necessidades era guiada pela esperança de gozar depois de
minha morte um sossego, uma calma de vida que não sou capaz de descrever, mas
que pressenti pelo pensa mento, graças à doutrinação das seções católicas dos
jornais.
Nunca fui ao
espiritismo, nunca fui aos “bíblias”, nem a feiticeiros, e apesar de ter tido
um filho que penou dez anos nas mãos dos médicos, nunca procurei macumbeiros
nem médiuns.
Vivi uma vida
santa e obedecendo às prédicas do Padre André do Santuário do Sagrado Coração
de Maria, em Todos os Santos, conquanto as não entendesse bem por serem
pronunciadas com toda eloqüência em galego ou vasconço.
Segui-as,
porém, com todo o rigor e humildade, e esperava gozar da mais dúlcida paz
depois de minha morte. Morri afinal um dia destes. Não descrevo as cerimônias
porque são muito conhecidas e os meus parentes e amigos deixaram-me
sinceramente porque eu não deixava dinheiro algum. E bom, meu caro Senhor
Doutor Prefeito, viver na pobreza, mas muito melhor é morrer nela. Não se levam
para a cova maldições dos parentes e amigos deserdados; só carregamos
lamentações e bênçãos daqueles a quem não pagamos mais a casa.
Foi o que
aconteceu comigo e estava certo de ir direitinho para o Céu, quando, por culpa
do Senhor e da Repartição que o Senhor dirige, tive que ir para o inferno penar
alguns anos ainda.
Embora a pena seja leve, eu me amolei, por não ter contribuído para ela de forma alguma. A culpa é da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro que não cumpre os seus deveres, calçando convenientemente as ruas. Vamos ver por quê. Tendo sido enterrado no cemitério de Inhaúma e vindo o meu enterro do Méier, o coche e o acompanha mento tiveram que atravessar em toda a extensão a Rua José Bonifácio, em Todos os Santos.
Embora a pena seja leve, eu me amolei, por não ter contribuído para ela de forma alguma. A culpa é da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro que não cumpre os seus deveres, calçando convenientemente as ruas. Vamos ver por quê. Tendo sido enterrado no cemitério de Inhaúma e vindo o meu enterro do Méier, o coche e o acompanha mento tiveram que atravessar em toda a extensão a Rua José Bonifácio, em Todos os Santos.
Esta rua foi
calçada há perto de cinqüenta anos a macadame e nunca mais foi o seu calçamento
substituído. Há caldeirões de todas as profundidades e larguras, por ela afora.
Dessa forma, um pobre defunto que vai dentro do caixão em cima de um coche que
por ela rola sofre o diabo. De uma feita um até, após um trambolhão do carro
mortuário, saltou do esquife, vivinho da silva, tendo ressuscitado com o susto.
Comigo não
aconteceu isso, mas o balanço violento do coche machucou-me muito e cheguei
diante de São Pedro cheio de arranha duras pelo corpo. O bom do velho santo
interpelou-me logo:
— Que diabo é isto? Você está todo machucado! Tinham-me dito que você era bem-comportado — como é então que você arranjou isso? Brigou depois de morto?
— Que diabo é isto? Você está todo machucado! Tinham-me dito que você era bem-comportado — como é então que você arranjou isso? Brigou depois de morto?
Expliquei-lhe,
mas não me quis atender e mandou que me fosse purificar um pouco no inferno.
Está aí como,
meu caro Senhor Doutor Prefeito, ainda estou penando por sua culpa, embora
tenha tido vida a mais santa possível. Sou, etc., etc. Posso garantir a
fidelidade da cópia a aguardar com paciência as providências da municipalidade.
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