Temer, o
Obscuro
Orlando Senna
Todo mundo sabe, embora às vezes
de maneira imprecisa, o que é obscurantismo. É impedir que verdades ou fatos
venham à luz, é oposição ao progresso intelectual ou material, é restringir ou
negar o acesso do povo ao conhecimento. A vítima é a sociedade. O caminho do
obscurantismo para impedir que a sociedade tenha acesso a conhecimentos são os
diversos tipos de repressão política, militar, religiosa, sexual,
comportamental. Enfim, todas as certezas absolutas e todos os preconceitos.
De uma maneira mais rápida e
incisiva, outro caminho sempre foi utilizado ao longo dos séculos: anular
filósofos, artistas e cientistas. Anular através da prisão, da tortura, do
exilio e da morte. Como os martírios de Galileu,
Dante, Lutero, Voltaire, Nostradamus, García Lorca, Jesus. E também, no nosso
tempo, Salman Rushdie, Glauber Rocha, Victor Jara, Vladimir Herzog. E milhares
de outros pensadores/comunicadores. "Viva la
muerte, abajo la inteligencia" era um dos slogans da ditadura franquista
na Espanha.
A Idade Média foi considerada,
tanto pela Renascença que a sucedeu no século XV como pelos iluministas do
século XVIII, como a Era Obscurantista, a Idade das Trevas. Um periodo
histórico de contínua deterioração material (economia destroçada pelo fim do
Império Romano) e, profundamente, degeneração cultural e ética. Basta citar a
Santa Inquisição, o trabalho escravo ou “servil” (sem remuneração) do
feudalismo, as Cruzadas. O que nos interessa nessa História é que traços,
vestígios e excrementos da Idade Média permanecem na nossa Idade Contemporânea,
tanto em níveis de poder como em níveis de atitudes pessoais.
Regressão
O alvo do obscurantismo é a
cultura, a fonte geradora de ideias e comportamentos. Entre os primeiros atos
de Michel Temer, presidente interino que governa como se não fosse interino,
estava a extinção do Ministério da Cultura, instituição que construiu uma
profunda e profícua relação com a sociedade, com o fazer e o querer da
sociedade. Cuidando da cultura nos seus aspectos social, simbólico e econômico,
o MinC tornou-se uma referência para vários países, um desenho de eficiência
estudado e elogiado por centenas de teses universitárias ao redor do mundo. A
nave-mãe de indústrias culturais que cresceram geometricamente nas últimas duas
décadas, influenciando beneficamente a economia nacional tão carente hoje de
influências benéficas.
A reação contra a decisão do
presidente interino foi e continua sendo enorme mas ele não cedeu: a Cultura
estará a cargo de uma secretaria no Ministério da Educação, que volta a ser da
Educação e Cultura, MEC, como era há mais de trinta anos. Retrocesso brutal,
três décadas para trás. Os milhões de trabalhadores diretos e indiretos das
atividades culturais passaram a militar em uma vigorosa oposição ao ato que
classificam, com toda razão, como obscurantista.
Significados
Cinco séculos antes de Cristo o
filósofo Heráclito de Éfeso foi alcunhado O Obscuro. É considerado o fundador
da metafísica. É o autor da frase “ninguém se banha duas vezes no mesmo rio”, porque
tanto a água como o ser humano mudam ininterruptamente. É a doutrina do
mobilismo de todas as coisas. Heráclito, o Obscuro, era um filósofo competente
mas isso só veio à luz bem depois da sua morte porque ele não se fazia entender
pelos ouvintes de seu tempo, não tinha o dom da comunicação oral. Esse
significado semântico de obscuro (sem claridade, sombrio, misterioso,
incompreensível) é um entendimento colateral para o título deste texto, ao qual
voltaremos.
O sentido primordial é o de
gerador de obscurantismo, o que ou aquele que difunde a escuridão a partir de
sua própria ausência de luz. Um significado inventado aqui e agora para esse
substantivo. Os professores me diriam que a palavra correta seria
obscurantista, em sua acepção de adepto do obscurantismo. Prefiro a licença
poética, a diagramação fica mais de acordo com as alcunhas históricas
(Alexandre o Grande, Pepino o Breve, Maria Primeira a Louca, Jack o
Estripador). Temer o Obscuro promete, pelos suas ações nos primeiros dias de
governo, que a tendência ao pregresso, ao que já aconteceu e não deu certo,
continuará: não escolheu uma só mulher para o ministério, afrodescendente nem
falar, índio nem pensar.
Por que? E aqui entra o
significado semântico, o Temer misterioso, aquele que não se revela. Não me
refiro a brincadeiras nas redes sociais que o apelidam de “mordomo da casa de
Drácula”. É mais sério que isso: por que um cara que já não era popular decide
jogar contra si mesmo a oposição ferrenha dos grandes artistas e intelectuais
brasileiros, formadores básicos da opinião pública? Em todos os shows, em todo
teatro, em qualquer acontecimento artístico no Brasil acontece neste momento
atos hostis a Temer. E também no Festival de Cannes, e também em concertos de
rock stars em Nova York. Não sei de outro político que tenha promovido um ato
impopular que não ajudou a ninguém, que é nefasto à sociedade e ao próprio
político.
A resposta mais cabível que
circula nos meios de comunicação é que se trata de uma vingança. Como a grande
maioria dos trabalhadores da cultura é contra o impeachment da presidente Dilma
e criticaram o vice presidente Temer pelo seu açodamento para abocanhar o
poder, o agora presidente interino estaria exercendo uma vendeta, uma
retaliação. Se esse é o motivo, estamos fuçando no cerne do obscurantismo. Se
um mandatário de um país se vinga de seus cidadãos por questões pessoais, este
país está mesmo navegando entre a sombra e a treva.
* Link para outros textos de Orlando Senna no Blog Refletor
http://refletor.tal.tv/tag/orlando-senna
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