Um memorioso formigueiro mental
AUGUSTO DE CAMPOS
ESPECIAL PARA A FOLHA
ESPECIAL PARA A FOLHA
15/06/2016
O poeta Ferreira Gullar abre um
parêntese nas suas senilidades politicoides para voltar a provocar-me,
invocando suposta conversa que teria tido comigo há mais de 60 anos, na qual eu
teria falado mal de Oswald de Andrade ("Ilustrada", 12 de junho). Assim
procede para enganar os leitores, passando-se por grande amigo e conhecedor da
obra de Oswald, quando mal o conheceu e nada fez pela sua reabilitação,
iniciada pelos poetas concretos de São Paulo.
A verdade é que, quando veio a
opinar, afirmou que quem estava certo era Mário de Andrade e não Oswald. Só
abre a pós-boca para autolouvar-se. Enquanto isso Haroldo, Décio e eu, desde
fins dos anos 1940, enfatizávamos a importância do autor de "Serafim Ponte
Grande", livro que Gullar afirma ter comprado em 1954, mas que Oswald nos
ofertou pessoalmente em 1949 com a dedicatória: "Aos irmãos Campos, firma
de poesia".
Muito antes de Gullar ouvir falar de
Oswald, eu assinara com Décio e Haroldo, em 1950, um texto subscrito por
pequeno grupo de intelectuais, "Telefonema a Oswald de Andrade", que
ressaltava: "Você, sexagenário, é o mais moço dos escritores
brasileiros" ("Jornal de São Paulo", 18/1/1950). Não cola,
portanto, a delação desprimorosa de Gullar.
Em 1954, Décio incluía "O Rei
da Vela" no seu Teatro de Cartilha. No "Diário Popular", de
12/12/1956, Haroldo e eu afirmávamos: "Contra a reação sufocante, lutou
quase sozinha a obra de Oswald de Andrade, que sofre, de há muito, um injusto e
caviloso processo de olvido sob a pecha de "clownismo" futurista.
Seus poemas ("Poesias Reunidas O. Andrade"), seus romances-invenções
"Serafim Ponte Grande" e "Memórias Sentimentais de João
Miramar" (de tiragens há muito esgotadas, para não falar de seus trabalhos
esparsos ou inéditos), que ainda hoje, por sua inexorável ousadia, continuam a
apavorar os editores, são uma raridade no desolado panorama artístico
brasileiro." A pretensão de Gullar de ter influído em nossa percepção de
Oswald é, pois, mera fanfarronice.
Se alguma vez o seu memorioso
formigueiro mental ouviu qualquer restrição de minha parte, não era à obra de
Oswald, mas ao seu comportamento, que não era o de um santo. Por exemplo, nos
anos 1950, Oswald começou a proclamar que Cassiano Ricardo, presidente do Clube
de Poesia, mas também diretor-geral do governador Adhemar de Barros
("rouba, mas faz"), era o nosso Fernando Pessoa. Ora, Cassiano podia
nomear quem indicasse para cargos públicos... O verdeamarelista, ridicularizado
por Oswald, passava a ser o gênio da raça, por interesses familiares. Era muito
mais do que uma irresponsabilidade. Não dava, obviamente, para concordar em
tudo e por tudo com Oswald, a despeito de sua grande obra.
São mais do que conhecidos os
estudos que publicamos, Haroldo, Décio e eu, ressuscitando a obra de Oswald.
Fomos nós que relacionamos o seu "poema-minuto" à poesia concreta. E
que estabelecemos o elenco básico de autores do movimento,
Mallarmé/Joyce/Pound/Cummings, que Gullar secundou em artigo de 1957, mas cuja
obra ignorava. De autores franceses, só conhecia os surrealistas. Não sabia e
não sabe inglês.
Em suma, por que sempre insultou os
poetas paulistas? Porque sabe que não inventou nada. Que o seu "neo",
cercado de uma pequena corte de subpoetas, hoje esquecidos, foi incapaz de
deixar de copiar os nossos poemas concretos. Por que volta a me provocar, tendo
sido já contestado e desmentido? O surto vem da repercussão da mostra de meus
poemas –"REVER"– no Sesc Pompeia (São Paulo), a contrastar com o
conformismo dos seus subprodutos drummondcabralinos. Gullar diz que poesia é
espanto. Espanto é o que sentimos ao ver o autor de "João Boa-Morte"
coroar-se, de fardão, chapéu de plumas, colar e espada, na Academia Brasileira
de Letras, onde chucha o seu chazinho bem remunerado com Sarney, FHC, Marco
Maciel e até um golpista da TV Globo, entre outros espantalhos imortais da
nossa literatura...
AUGUSTO DE CAMPOS, 85, é
poeta, ensaísta e tradutor, autor de "Viva Vaia - Poesia 1949-1979"
(Ateliê), "Não", "Outro"(ambos pela Perspectiva) e
"Poesia Antipoesia Antropofagia & Cia" (Companhia das Letras),
entre outros livros.
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