ABAIXO TEXTOS - CRÍTICAS - ENSAIOS - CONTOS - ROTEIROS CURTOS - REFLEXÕES - FOTOS - DESENHOS - PINTURAS - NOTÍCIAS

Translate

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

EPIFANIA DO SOM

A epiderme dos Neurônios

Paulo Motta, 26 dez. 2010

Dilatar a epiderme dos neurônios para pensar a arte. “Sentir com os sentidos”, com o corpo, enfim.  A arte solicita do freqüentador a sinestesia dos sentidos, pois é multidimensional e tem sua origem na epifania dos sentidos. Considerar, por exemplo, que o que caracteriza um músico se restringe apenas ao fato de um músico instrumentista “dominar”, com o adestramento de sua manualidade e de sua percepção, um instrumento musical, é limitar demasiadamente a nossa compreensão do que vem a ser música, assim como também compreender a prática musical. Certamente, não podemos desprezar a tecnicidade da execução musical, mas limitar a nossa compreensão da música à tecnicidade indica, no contexto da apreciação musical, ignorar o caráter multidimensional da música e, em termos mais gerais, o que vem a ser a arte (há muito o caráter artesanal da arte perdeu sua importância, sobretudo a partir de Marcel Duchamp, que colocou a “atitude estética” em primeiro plano). E esta compreensão nunca será completa, acabada, pois a existência – tanto do artista quanto do freqüentador – também não o é (por isso a necessidade do retorno freqüente à produção, ao fazer artístico – por parte do artista – e, por parte do freqüentador, ao objeto de arte).
O artista transfere para a obra essa sua inquietude existencial, esse seu ininterrupto questionamento existencial que, para ele, nunca terá uma resposta definitiva e absoluta, pois a existência não é definitiva e absoluta. O seu fazer artístico é o testemunho existencial dessa sua inquietação, igualmente existencial. Em decorrência, e a partir dessa perspectiva, poderíamos afirmar que existem pouquíssimos artistas, pois uma minoria – uma minoria significativa – de fato existe no material que manipula; poucos são os que “pensam com as mãos”; poucos são os que vivem impregnados pelo “sentir com os sentidos”, e não apenas e restritivamente com os sentimentos. O artista “pensa com as mãos”, e qualquer discurso que tenha a pretensão de, com os recursos de sua inteligibilidade, esgotar a compreensão do que vem a ser a arte, assim como também dos demais atributos que a envolve, não faz justiça ao sensível da própria arte, muito embora seja legítima a pretensão de qualquer categoria de discurso. Portanto, há que se correr o risco, pois furtar-se ao desafio de se construir discursos sobre a arte (sejam eles de que natureza forem), refugiando-se em argumentos avessos a esta possibilidade, é demonstrar uma certa incapacidade de se elaborar uma categoria de discurso que se deixe impregnar pelo que, de fato é, ao menos na perspectiva de uma estética fenomenológica, não reconhecer (ou não compreender) que o artista “pensa com as mãos”, “sente com os sentidos” e impregna o objeto com a sua existência e com a sua subjetividade.
Se a obra é sempre aberta e transiente no que se refere aos seus significados, o discurso sobre ela não poderá ignorar esse seu atributo. Se a obra (opera, no sentido de operar, trabalhar) de arte é multidimensional e transiente em sua compreensão e em seus significados (que podem ser tão numerosos quanto o numero de freqüentadores ou, também, tão numerosos quanto o número de vezes que esses freqüentadores se entreguem à fruição estética), a inteligibilidade do discurso sobre ela deverá necessária e circunstancialmente ir ao encontro desta abertura de significados que ela suscita. Os significados do objeto de arte são sempre inacabados, não pelo fato desse valor ser um valor absoluto do objeto, propriamente dito, mas sim pelo fato de que a existência – tanto do criador quanto dos freqüentadores – ser igualmente inacabada e incompleta: não há significados absolutos para a existência e nem tão pouco para os objetos da arte, pois esses significados são construídos e redimensionados a cada vez que o artista se entrega ao seu trabalho e a cada vez que o freqüentador se entrega a fruição estética, artística (diante ou na presença do objeto de arte). A prática artística é visceral, como a existência o é. Portanto, o discurso sobre ela, para ser digno dessa sua qualidade, deverá ser igualmente visceral; um discurso racionalmente visceral. Ora, essa afirmação, referente à necessidade de o discurso sobre a arte ser “um discurso racionalmente visceral”, não seria logicamente dicotômica e inexata? A visceralidade, para os que são afeitos a dicotomias e polarizações, não é avessa a racionalidade, e vice-e-versa? Afinal, como afirmam os detratores da racionalidade e da razão (os “ratiofóbicos”), ambas, racionalidade e razão, não podem participar do discurso sobre a arte, pois “matam” seus significados, nos distanciam de sua compreensão, nos distanciam de sua “vivência”.
Não obstante, penso que não há nada demais em esperar que um discurso racional pretenda ser "uma resposta lógica, absoluta e fechada, racional... ", e que as pessoas esperem por isso. Esse é um dos objetivos da racionalidade que, por si mesma, é inócua. A minha sugestão é que não tenhamos "temor" pela racionalidade, mas sim nos atentemos aos usos que fazemos dela. Não há o que temer, se for o caso de se temer alguma coisa, pois os "produtos" da arte têm uma relativa autonomia estética em relação a qualquer discurso que pretenda esgotar seus significados, sejam eles do próprio artista, sejam eles sociológicos, antropológicos, religiosos, estéticos. Por outro lado, não há nada demais em se admitir que a arte, ou algum tipo de produção artística, esteja impregnada de racionalidade e que alguns racionalistas se identifiquem com isso. A racionalidade – e os racionalistas de plantão – não tem esse poder de "retirar os significados" mutantes da obra de arte. Creio que superestimamos em demais esse poder da racionalidade, ao passo que deveríamos nos atentar para os usos ideologizantes da racionalidade (ou de qualquer discurso, até mesmo daqueles “pretensamente despretensiosos”). Fale o que se fale, escreva o que se escreva, a arte e seus produtos continuarão "plenos de significados individuais", pois esses são existencialmente mutáveis, transientes e redimensionáveis. Por isso não vejo problema nesse esperar das pessoas, nessa “esperança”, enfim: "temer" a racionalidade é subestimar o poder de redimensionamento estético do objeto de arte, que também não é absoluto, embora possa pretender ser, como a eventual racionalidade de alguns discursos e os significados da arte originária; é se refugiar em discursos e afirmações evasivas e pouco consistentes; é se furtar da responsabilidade das conseqüências existenciais e sociais do fazer artístico: “apenas” produzir arte, criar objetos denominados “objetos de arte”, esgota os múltiplos sentidos e significados dessa prática? Tudo indica que não. O produtor de objetos de arte poderá se arriscar a discursar sobre o que faz, elaborando um discurso que, ao invés de esgotar esses sentidos e significados, os dignificará em sua visceralidade?
Na verdade, há uma imensa variedade de “explicações” ou, mais exatamente, um número representativo de disciplinas que analisam a arte: semiótica, antropologia, história, sociologia, psicologia, musicologia, dentre outras. A partir desta constatação, há que se discordar daqueles que procuram afastar da arte esta possibilidade: é possível “explicar” a arte ou, mais apropriadamente, é possível analisar a arte do ponto de vista dessas disciplinas, mesmo que essas explicações e análises se apresentem inacabadas e provisórias, com maior ou menor grau de consistência empírica. Em decorrência, a nossa atenção poderia ser direcionada não necessariamente para o fato da possibilidade ou a da não possibilidade de se explicar ou de se analisar a arte (já que essa possibilidade é legítima e plausível, ocorrendo em várias disciplinas) mas sim à possibilidade de se formular a questão, de se colocar o problema. Se uma produção artística, se um objeto artístico suscita no freqüentador esse tipo de questionamento (que é tão legítimo quanto outros questionamentos), há que atentar para o fato seguinte: o simples advento da possibilidade de se formular essa questão é, por si mesmo, sintomático, sobretudo quando se trata da arte contemporânea (ou de uma grande parcela da arte criada no século XX). Dessa forma, teríamos as seguintes opções: 1ª. Afirmar sumariamente a impossibilidade da explicação e da análise da arte (que seria um contra-senso, visto que inúmeras disciplinas contribuem significativamente para a objetivação dessa tarefa), esquivando-se do problema; 2ª. Contrariamente a esta primeira opção, nos entregarmos à tarefa de se “explicar” (analisar) a arte, contribuindo para que o freqüentador tenha recursos para otimizar seus conhecimentos e percepções do objeto artístico; ou 3ª sugerir que o freqüentador se afaste de qualquer explicação ou análise possível e se dedique (ou se entregue) exclusivamente à fruição estética.
Particularmente, não sou simpático à primeira opção. Quanto a segunda e terceira opções, penso que há como aproximá-las. Suspeito que o conhecimento da arte, passível de ser adquirido com as disciplinas citadas anteriormente, em muito contribuem para que a fruição estética ocorra mais consistente e significativamente. A visceralidade existencial que o criador do objeto de arte “transfere” para este último contribui para que a obra apresente uma autonomia estética relativa ao eventual conjunto de conhecimentos adquiridos pelo freqüentador. Ou seja, por mais que tenhamos os subsídios das disciplinas que se dedicam a “explicar”, a analisar a arte, o arrebatamento da experiência estética nos coloca sempre diante de um novo objeto. A experiência estética é sempre renovada e existencialmente renovadora, mesmo que nos presentifiquemos ao objeto com anterioridades teóricas, explicativas, analíticas; e que, não obstante, nos “preparam” para o momento desta experiência.
Já que podemos admitir a possibilidade de haver “explicações” e análises da arte (dos objetos de arte) plausíveis e legítimas, apenas uma decisão pessoal nos levaria a nos distanciarmos de suas contribuições (uma decisão igualmente plausível e legítima). Alguns artistas se dedicam a estudar e analisar seus trabalhos, valendo-se das contribuições teóricas de várias disciplinas; outros consideram essa tarefa desnecessária. Os pesquisadores e estudiosos da arte – e que não necessariamente se dedicam a produção artística – contribuem de forma continuada para se ampliar a compreensão do que seja a arte, e suas observações são eventualmente muito significativas. No entanto, a autonomia relativa do objeto estético (denominação para o conjunto de significados transientes denotados pelo objeto de arte) no e do objeto de arte (denominação para a materialidade do objeto de arte, propriamente dito) coloca primordialmente em evidência a visceralidade dos significados e sentidos artístico-estéticos do objeto de arte. Isso ocorre pelo fato do objeto estar impregnado dos aspectos viscerais da existência do artista. E é esta visceralidade existencial que capacita o pintor, por exemplo, a transformar a tinta em cor pictórica e, ao músico, transformar o som em sonoridade musical. Ao que tudo indica, os que analisam e os que procuram “explicar” a arte, não têm recursos para esgotar explicativa e analiticamente o fazer artístico (o que de forma alguma desqualifica seus discursos e teorias) e sua inerente visceralidade (sejam eles pesquisadores ou os próprios artistas), pois os sentidos e significados do objeto de arte são permanentemente construídos pela fruição estética, são transientes e reearticuláveis.
Mas isso não significa que o trabalho desses profissionais não tenha importância para a compreensão da arte e que não contribua significativamente para a fruição estética e que não se deva colocar a possibilidade de se “explicar” ou analisar a arte, explicação e análise que deveria valorizar o processo da compreensão e não algum eventual “resultado” que se pretendesse definitivo, absoluto e inquestionável. Aliás, essa observação está diretamente relacionada a aplicação das diversas disciplinas e de seus recursos epistemológicos, necessariamente diferenciados.
Dessa forma, a cientificidade de cada uma delas incorpora aspectos qualitativos se admitirem a provisoriedade de suas “conclusões”, muito embora algumas disciplinas estejam aptas a definirem consensualmente alguns dados (dados históricos, dados biográficos, materiais usados na confecção de determinada obra, mas que, não obstante, podem ser empiricamente questionados e colocados em “suspensão” epistemológica). Mas e a situação do leigo, freqüentador da obra e que circunstancialmente (ou não) não tem os recursos dos pesquisadores e dos estudiosos, ou dos artistas que se propõem a discursar sobre o seu trabalho? Neste caso, qual a possibilidade de “compreenderem” a obra? A obra “falaria” por si? A frase “não entendi nada”, proferida por algumas pessoas diante de um objeto de arte é, a priori, inadequada e não permissível pois, também a priorie sumariamente, a arte e os objetos de arte não podem ser “explicados racionalmente”? Como se os objetos de arte fossem entidades metafísicas e inatingíveis pela racionalidade, criadas por seres humanos “especiais”... Como se a arte e os objetos de arte estivessem ameaçados pela racionalidade, caso esta última pretendesse colocá-los em perspectiva...  

Nenhum comentário: