A epiderme dos Neurônios
Paulo Motta, 26 dez. 2010
Dilatar a epiderme
dos neurônios para pensar a arte. “Sentir com os sentidos”, com o corpo,
enfim. A arte solicita do freqüentador a sinestesia dos sentidos, pois é
multidimensional e tem sua origem na epifania dos sentidos. Considerar, por
exemplo, que o que caracteriza um músico se restringe apenas ao fato de um
músico instrumentista “dominar”, com o adestramento de sua manualidade e de sua
percepção, um instrumento musical, é limitar demasiadamente a nossa compreensão
do que vem a ser música, assim como também compreender a prática musical.
Certamente, não podemos desprezar a tecnicidade da execução musical, mas
limitar a nossa compreensão da música à tecnicidade indica, no contexto da
apreciação musical, ignorar o caráter multidimensional da música e, em termos
mais gerais, o que vem a ser a arte (há muito o caráter artesanal da arte
perdeu sua importância, sobretudo a partir de Marcel Duchamp, que colocou a
“atitude estética” em primeiro plano). E esta compreensão nunca será completa,
acabada, pois a existência – tanto do artista quanto do freqüentador – também
não o é (por isso a necessidade do retorno freqüente à produção, ao fazer
artístico – por parte do artista – e, por parte do freqüentador, ao objeto de
arte).
O artista transfere
para a obra essa sua inquietude existencial, esse seu ininterrupto
questionamento existencial que, para ele, nunca terá uma resposta definitiva e
absoluta, pois a existência não é definitiva e absoluta. O seu fazer artístico
é o testemunho existencial dessa sua inquietação, igualmente existencial. Em
decorrência, e a partir dessa perspectiva, poderíamos afirmar que existem
pouquíssimos artistas, pois uma minoria – uma minoria significativa – de fato existe no material que manipula; poucos
são os que “pensam com as mãos”; poucos são os que vivem impregnados pelo
“sentir com os sentidos”, e não apenas e restritivamente com os sentimentos. O
artista “pensa com as mãos”, e qualquer discurso que tenha a pretensão de, com
os recursos de sua inteligibilidade, esgotar a compreensão do que vem a ser a
arte, assim como também dos demais atributos que a envolve, não faz justiça ao
sensível da própria arte, muito embora seja legítima a pretensão de qualquer
categoria de discurso. Portanto, há que se correr o risco, pois furtar-se ao
desafio de se construir discursos sobre a arte (sejam eles de que natureza
forem), refugiando-se em argumentos avessos a esta possibilidade, é demonstrar
uma certa incapacidade de se elaborar uma categoria de discurso que se deixe
impregnar pelo que, de fato é, ao menos na perspectiva de uma estética
fenomenológica, não reconhecer (ou não compreender) que o artista “pensa com as
mãos”, “sente com os sentidos” e impregna o objeto com a sua existência e com a
sua subjetividade.
Se a obra é sempre
aberta e transiente no que se refere aos seus significados, o discurso sobre
ela não poderá ignorar esse seu atributo. Se a obra (opera, no
sentido de operar, trabalhar) de arte é multidimensional e transiente em sua
compreensão e em seus significados (que podem ser tão numerosos quanto o numero de
freqüentadores ou, também, tão numerosos quanto o número de vezes que esses
freqüentadores se entreguem à fruição estética), a inteligibilidade do discurso
sobre ela deverá necessária e circunstancialmente ir ao encontro desta abertura
de significados que ela suscita. Os significados do objeto de arte são sempre
inacabados, não pelo fato desse valor ser um valor absoluto do objeto,
propriamente dito, mas sim pelo fato de que a existência – tanto do criador
quanto dos freqüentadores – ser igualmente inacabada e incompleta: não há
significados absolutos para a existência e nem tão pouco para os objetos da
arte, pois esses significados são construídos e redimensionados a cada vez que
o artista se entrega ao seu trabalho e a cada vez que o freqüentador se entrega
a fruição estética, artística (diante ou na presença do objeto de arte). A
prática artística é visceral, como a existência o é. Portanto, o discurso sobre
ela, para ser digno dessa sua qualidade, deverá ser igualmente visceral; um
discurso racionalmente visceral. Ora, essa afirmação, referente à necessidade
de o discurso sobre a arte ser “um discurso racionalmente visceral”, não seria
logicamente dicotômica e inexata? A visceralidade, para os que são afeitos a
dicotomias e polarizações, não é avessa a racionalidade, e vice-e-versa?
Afinal, como afirmam os detratores da racionalidade e da razão (os “ratiofóbicos”),
ambas, racionalidade e razão, não podem participar do discurso sobre a arte,
pois “matam” seus significados, nos distanciam de sua compreensão, nos
distanciam de sua “vivência”.
Não obstante, penso
que não há nada demais em esperar que um discurso racional pretenda ser
"uma resposta lógica, absoluta e fechada, racional... ", e que as
pessoas esperem por isso. Esse é um dos objetivos da racionalidade que, por si
mesma, é inócua. A minha sugestão é que não tenhamos "temor" pela
racionalidade, mas sim nos atentemos aos usos que fazemos dela. Não há o que temer,
se for o caso de se temer alguma coisa, pois os "produtos" da arte
têm uma relativa autonomia estética em relação a qualquer discurso que pretenda
esgotar seus significados, sejam eles do próprio artista, sejam eles
sociológicos, antropológicos, religiosos, estéticos. Por outro lado, não há
nada demais em se admitir que a arte, ou algum tipo de produção artística,
esteja impregnada de racionalidade e que alguns racionalistas se identifiquem
com isso. A racionalidade – e os racionalistas de plantão – não tem esse poder
de "retirar os significados" mutantes da obra de arte. Creio que
superestimamos em demais esse poder da racionalidade, ao passo que deveríamos
nos atentar para os usos ideologizantes da racionalidade (ou de qualquer
discurso, até mesmo daqueles “pretensamente despretensiosos”). Fale o que se
fale, escreva o que se escreva, a arte e seus produtos continuarão "plenos
de significados individuais", pois esses são existencialmente mutáveis,
transientes e redimensionáveis. Por isso não vejo problema nesse esperar das
pessoas, nessa “esperança”, enfim: "temer" a racionalidade é
subestimar o poder de redimensionamento estético do objeto de arte, que também
não é absoluto, embora possa pretender ser, como a eventual racionalidade de
alguns discursos e os significados da arte originária; é se refugiar em
discursos e afirmações evasivas e pouco consistentes; é se furtar da
responsabilidade das conseqüências existenciais e sociais do fazer artístico:
“apenas” produzir arte, criar objetos denominados “objetos de arte”, esgota os
múltiplos sentidos e significados dessa prática? Tudo indica que não. O
produtor de objetos de arte poderá se arriscar a discursar sobre o que faz,
elaborando um discurso que, ao invés de esgotar esses sentidos e significados,
os dignificará em sua visceralidade?
Na verdade, há uma
imensa variedade de “explicações” ou, mais exatamente, um número representativo
de disciplinas que analisam a arte: semiótica, antropologia, história,
sociologia, psicologia, musicologia, dentre outras. A partir desta constatação,
há que se discordar daqueles que procuram afastar da arte esta possibilidade: é
possível “explicar” a arte ou, mais apropriadamente, é possível analisar a arte
do ponto de vista dessas disciplinas, mesmo que essas explicações e análises se
apresentem inacabadas e provisórias, com maior ou menor grau de consistência
empírica. Em decorrência, a nossa atenção poderia ser direcionada não
necessariamente para o fato da possibilidade ou a da não possibilidade de se
explicar ou de se analisar a arte (já que essa possibilidade é legítima e
plausível, ocorrendo em várias disciplinas) mas sim à possibilidade de se
formular a questão, de se colocar o problema. Se uma produção artística, se um
objeto artístico suscita no freqüentador esse tipo de questionamento (que é tão
legítimo quanto outros questionamentos), há que atentar para o fato seguinte: o
simples advento da possibilidade de se formular essa questão é, por si mesmo,
sintomático, sobretudo quando se trata da arte contemporânea (ou de uma grande
parcela da arte criada no século XX). Dessa forma, teríamos as seguintes
opções: 1ª. Afirmar sumariamente a impossibilidade da explicação e da análise
da arte (que seria um contra-senso, visto que inúmeras disciplinas contribuem
significativamente para a objetivação dessa tarefa), esquivando-se do problema;
2ª. Contrariamente a esta primeira opção, nos entregarmos à tarefa de se
“explicar” (analisar) a arte, contribuindo para que o freqüentador tenha
recursos para otimizar seus conhecimentos e percepções do objeto artístico; ou
3ª sugerir que o freqüentador se afaste de qualquer explicação ou análise
possível e se dedique (ou se entregue) exclusivamente à fruição estética.
Particularmente, não
sou simpático à primeira opção. Quanto a segunda e terceira opções, penso que
há como aproximá-las. Suspeito que o conhecimento da arte, passível de ser
adquirido com as disciplinas citadas anteriormente, em muito contribuem para
que a fruição estética ocorra mais consistente e significativamente. A
visceralidade existencial que o criador do objeto de arte “transfere” para este
último contribui para que a obra apresente uma autonomia estética relativa ao
eventual conjunto de conhecimentos adquiridos pelo freqüentador. Ou seja, por
mais que tenhamos os subsídios das disciplinas que se dedicam a “explicar”, a
analisar a arte, o arrebatamento da experiência estética nos coloca sempre
diante de um novo objeto. A experiência estética é sempre renovada e
existencialmente renovadora, mesmo que nos presentifiquemos ao objeto com anterioridades
teóricas, explicativas, analíticas; e que, não obstante, nos “preparam” para o
momento desta experiência.
Já que podemos
admitir a possibilidade de haver “explicações” e análises da arte (dos objetos
de arte) plausíveis e legítimas, apenas uma decisão pessoal nos levaria a nos
distanciarmos de suas contribuições (uma decisão igualmente plausível e
legítima). Alguns artistas se dedicam a estudar e analisar seus trabalhos,
valendo-se das contribuições teóricas de várias disciplinas; outros consideram
essa tarefa desnecessária. Os pesquisadores e estudiosos da arte – e que não
necessariamente se dedicam a produção artística – contribuem de forma
continuada para se ampliar a compreensão do que seja a arte, e suas observações
são eventualmente muito significativas. No entanto, a autonomia relativa do objeto estético (denominação para o conjunto de
significados transientes denotados pelo objeto de arte) no e do objeto de arte (denominação para a
materialidade do objeto de arte, propriamente dito) coloca primordialmente em
evidência a visceralidade dos significados e sentidos artístico-estéticos do
objeto de arte. Isso ocorre pelo fato do objeto estar impregnado dos aspectos
viscerais da existência do artista. E é esta visceralidade existencial que
capacita o pintor, por exemplo, a transformar a tinta em cor pictórica e, ao
músico, transformar o som em sonoridade musical. Ao que tudo indica, os que
analisam e os que procuram “explicar” a arte, não têm recursos para esgotar
explicativa e analiticamente o fazer artístico (o que de forma alguma
desqualifica seus discursos e teorias) e sua inerente visceralidade (sejam eles
pesquisadores ou os próprios artistas), pois os sentidos e significados do
objeto de arte são permanentemente construídos pela fruição estética, são
transientes e reearticuláveis.
Mas isso não
significa que o trabalho desses profissionais não tenha importância para a
compreensão da arte e que não contribua significativamente para a fruição
estética e que não se deva colocar a possibilidade de se “explicar” ou analisar
a arte, explicação e análise que deveria valorizar o processo da compreensão e
não algum eventual “resultado” que se pretendesse definitivo, absoluto e
inquestionável. Aliás, essa observação está diretamente relacionada a aplicação
das diversas disciplinas e de seus recursos epistemológicos, necessariamente
diferenciados.
Dessa forma, a
cientificidade de cada uma delas incorpora aspectos qualitativos se admitirem a
provisoriedade de suas “conclusões”, muito embora algumas disciplinas estejam
aptas a definirem consensualmente alguns dados (dados históricos, dados
biográficos, materiais usados na confecção de determinada obra, mas que, não
obstante, podem ser empiricamente questionados e colocados em “suspensão”
epistemológica). Mas e a situação do leigo, freqüentador da obra e que
circunstancialmente (ou não) não tem os recursos dos pesquisadores e dos
estudiosos, ou dos artistas que se propõem a discursar sobre o seu trabalho?
Neste caso, qual a possibilidade de “compreenderem” a obra? A obra “falaria”
por si? A frase “não entendi nada”, proferida por algumas pessoas diante de um
objeto de arte é, a priori,
inadequada e não permissível pois, também a priorie
sumariamente, a arte e os objetos de arte não podem ser “explicados racionalmente”?
Como se os objetos de arte fossem entidades metafísicas e inatingíveis pela
racionalidade, criadas por seres humanos “especiais”... Como se a arte e os
objetos de arte estivessem ameaçados pela racionalidade, caso esta última
pretendesse colocá-los em perspectiva...
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