DESABAFO
Jornalistas empresários, igrejas, políticos, esquerda e direita, burocratas comunistas e acadêmicos de boutique, burguesia em ascensão, ninguém ainda entendeu a importância e a urgência da educação integral no Brasil. Vão ser ignorantes assim na casa do caralho!!!!
OSWALD DE ANDRADE
Entrevista concedida ao
escritor Marcos Rey, na semana que antecedeu a sua morte, em outubro de 1954
Oswald não sorriu, mas
ficou satisfeito. Ergueu-se um pouco na cadeira da qual se levantava com dores
e problemas. Talvez quisesse provar-se que ainda lhe restavam energia e
agressividade. O que o plano exigia, para pegar, era um Oswald irônico,
destruidor e com muito recheio, igual ao dos primeiros retratos. Balançou a
cabeça, aprovando. A oportunidade de escrever mais um livro, sem muito esforço,
entusiasmava-o. Bastaria respondendo às perguntas. Em sua portátil, eu
funcionaria como repórter e secretário. Mas logo a princípio, tornou-se
evidente que a longa reportagem não poderia obedecer a um esquema rígido. Nada
de ordem cronológica. Oswald não lembrava mais datas e nomes. Às perguntas mais
complexas, ficava mudo ou mandava as crianças se calarem. Como andava nervoso e
quase sem nenhuma capacidade de concentração! E esperava ansiosamente por
telefonemas de seu filho mais velho. Problemas de dinheiro, com toda certeza.
Falei do plano com mais detalhes: três entrevistas por semana, no período da
manhã. Duas horas no máximo. Se se sentisse indisposto, não precisaria
responder nada. Um projeto de livro sob medida para um homem que ia morrer.
Dias antes eu fizera uma longa com Oswald, publicada no suplemento literário do
jornal “O Tempo”. Essa e mais outra, que apareceu simultaneamente no jornal
“Quincas Borba”, foram as últimas que concederia. Mas ele queria falar mais.
Podia, ainda, mas era necessário que lhe arrancassem as palavras. Sua esposa
Maria Antonieta D’Alckmin, sempre ao lado, naqueles dias, ajudaria a fazer as
perguntas e ainda mais a formular as respostas. Era a sua memória, além de
tudo. Muita coisa que Oswald contou ou respondeu, nada tinha de inédito. Já
estava em outras entrevistas e também no “Um Homem Sem Profissão”, sua
autobiografia inacabada. Inclusive este, um verdadeiro coquetel Molotov.
Oswald de Andrade — Conhece Antoninho de Alcântara Machado? Eu
que o inventei. Nós precisávamos de ídolos. Como um movimento artístico ou
político pode vingar sem nomes de proa? Saquei um artigo elogioso, exagerado.
Até a família de Antoninho estranhou. Um parente dele me procurou espantado:
“Mas o garoto é bom mesmo? A gente não sabia disso”. Depois de meu artigo, os
outros críticos continuaram a bater palmas e o moço virou gênio.
(Aquela manhã deixei a rua
Caravelas quase com a certeza de que iniciaria um livro que não chegaria ao
fim, pois seu único personagem tinha os dias contados. Lamentava ter começado
tão tarde. Já cogitara dele ao conhecer Oswald, alguns anos antes, quando
pesava vinte quilos a mais e estava sempre na linha da polêmica. Naquela
ocasião, eu publicara meu primeiro romance, “Um Ato no Triângulo”, pulverizado
por um crítico azedo de “O Estado de São Paulo”, e Oswald ficou furioso.
Conversamos algumas horas e fizemos uma grande amizade. A estrela de autor de
“O Rei da Vela” já se apagava. Caía num esquecimento atroz. A bem da verdade,
apenas Helena Silveira levava seu nome às colunas dos jornais. Para a minha
geração, era um homem liquidado, modernoso e quase inofensivo. Pouca gente ria
de suas pilhérias, e dizia-se com frequência que era inclusive inculto.
Certamente, a ofensa que mais o irritava.)
Oswald de Andrade — Nasci para professor. Quero ensinar até o
que não sei.
(Fazia-lhe perguntas sobre
suas preferências literárias, mas ele gostava mais de falar de sua própria
vida. Tínhamos diante dos olhos um exemplar de “Um Homem Sem Profissão” e um
rascunho do segundo volume de suas memórias, “O Salão e as Selvas”, ainda
inédito.)
— Não vai continuar “O
Salão e as Selvas”?
Oswald de Andrade — Acho que não terei tempo. Não faz mal,
pois sempre fiz autobiografia. Minha vida está contada nos meus livros, embora
misturada com um pouco de ficção.
(A conversa tinha sempre a
Semana de Arte Moderna como ponto de saída ou de chegada. Para ele, o grande
nome havia sido mesmo Mário de Andrade.)
Oswald de Andrade — Somente Mário fez coisa realmente boa,
Machado, Euclides e Mário foram os melhores. Até hoje me arrependo da briga que
tivemos. Fui o culpado. Fiz uma piada cruel: “razões morais de andrade”. Mário
não me perdoou. E hoje eu também não me perdoo.
(Não havia nada de formal
nessa confissão. Sentimento puro, grande mágoa e vergonha que chegou a me
encabular.)
Oswald de Andrade — Éramos uns ignorantes. Apenas Mário de
Andrade sabia de alguma coisa. Eu era capaz de discutir, mas ele sabia criar.
Enquanto experimentávamos, Mário fazia livros definitivos.
— Sim, Mário foi grande,
está certo. Mas ele já está descoberto. E você?
Oswald de Andrade — O que quer dizer?
— Acho que não está
descoberto.
Oswald de Andrade — Que besteira é essa?
— Sua poesia, por exemplo,
é inédita. Isto é, foi lida em 1922, mas posta de lado. Um dia surge um crítico
e diz: “Oswald é um grande poeta, um dos maiores da fase modernista”. E então
os outros vão concordar.
Oswald de Andrade — Isso que você está me dizendo me
interessa. No fundo também me acho bom poeta. Está falando a sério? Na acha que
ela tem piada demais?
— Bem, é o que penso.
Prefiro ler os versos de Oswald de Andrade a ler os da geração de 1945.
Oswald de Andrade — Acredite que são poucos que me consideram
poeta. Antônio Cândido gosta de meus versos. Os outros nunca leram e não gostam
deles. Vingam-se de mim, com minhas próprias piadas.
— O que me diz dos novos,
dos novos poetas?
Oswald de Andrade — São uns chatões. Parnasianos às avessas.
Estão enterrando a Revolução Modernista. Apegam-se à forma como a turma do
Bilac. Você é capaz de lembrar algum verso deles? É?
— Não.
Oswald de Andrade — Então.
— E sobre os romancistas?
(Nesse ponto, Oswald fez
umas críticas virulentas contra um escritor que ele chamava de “burro blanco”.
Mas confessou que sua admiração por José Lins do Rego, que julgava o maior.
Fazia restrições a Jorge Amado, embora o apreciasse, e negava quase totalmente
o valor de Graciliano Ramos.)
Oswald de Andrade — Graciliano é muito limitado. A crítica
confunde pobreza com poder de síntese.
— Mas, e o “Vidas Secas”?
Oswald de Andrade — Nosso “tabaco road”. Ele leu Caldwell.
(Era um meio de mostrar-se
vivo, de sentir a vida: atacar. Mas, evidentemente, havia sempre antipatias
pessoais misturadas às suas críticas. Sua aversão à poesia de Cecília Meireles
era prova disso. Num artigo já dissera: “Não vou nem com a cara nem com a
poesia dessa senhora”. Porém se fosse mais coerente e equilibrado não seria o
Oswald de Andrade que foi e revive hoje.)
Oswald de Andrade — Vou lhe dar um presente. Só tenho dois
exemplares, mas um será seu. Leia e diga-me depois o que pensa.
(Era “A Morta” e “O Rei da
Vela”, numa edição José Olympio de 1937. Li e reli as duas peças, inclinando-me
logo para “O Rei da Vela”. Lá estava Oswald quase de corpo inteiro, num de seus
momentos de maior autenticidade e lucidez. Ele era mesmo um intelectual de
pequenos trabalhos (não de pequeno fôlego). Saía-se melhor na poesia, no
teatro, nos artigos e na prosa miúda das memórias. Não tinha a fibra nem a
paciência para a ficção de longo curso. Na próxima entrevista passei a manhã na
sua casa e almoçamos juntos. Maria Antonieta D’Alckmin insistia para que se
alimentasse bem, mas ele engolia a comida com má vontade. Só depois do almoço,
com uma espécie de timidez, indagou.)
Oswald de Andrade — O que achou do meu teatro?
— “O Rei da Vela” é uma de
suas melhores coisas.
Oswald de Andrade — Mas não é para ser representado, não?
— Não conheço teatro, mas
creio que é perfeitamente representável. Nem entendo como ainda não foi
encenada nesses 23 anos.
Oswald de Andrade — Não foi e não será nunca. Nossos homens de
teatro são muito primários. Dizem-se intelectuais, mas na verdade gostam mesmo
é de espetáculo. Só aceitam o que é bom quando a peça traz o atestado de
sucesso de outros países. Todos eles têm o meu “O Rei da Vela” nas estantes,
mas não o leram, e se o leram não entenderam e se entenderam não gostaram. Para
todos, é mais uma brincadeira do Oswald. Só compreendem o social, o político,
quando o cenário é um cortiço. Ainda não encontrei um deles que se
entusiasmasse com a encenação de minhas peças
(Oswald andava amargurado.
Condenava-se por deixar uma obra de proporções reduzidas, mas sentia-se
recompensado por ter sido o relações públicas da Revolução Modernista. Certa
manhã, Oswald sentiu-se enclausurado. Queria sair, apesar do seu mau estado.
Fomos passear em seu Fiat, dirigido por Maria Antonieta. Com que interesse e
avidez olhava pela janela do carro! Quase não falou a viagem toda. Queria ver
apenas. Pude observá-lo e mais uma vez tive a certeza de que sua morte estava
próxima. Na volta, largou-se numa poltrona e continuou por um largo espaço no
mais completo silêncio. Seus filhos menores brincavam ao seu redor, e às vezes
ele os olhava como se fossem estranhos. Custou a retomar contato com minha
presença. Volto outro dia, disse-lhe. Não, vamos continuar — pediu. E
repetiu fatos e opiniões que eu ouvira no mesmo dia. Tudo já se baralhava em
sua mente e as dores pelo corpo aumentavam — fui muito extravagante — confessou
— e estou pagando agora.)
— Amanhã estará melhor.
Oswald de Andrade — Estou no fim.
(Não morreria ainda. Rudá
Abramo, se não me engano, levou-o a um programa de televisão onde Oswald foi
entrevistado envolto numa pesada manta. Esta entrevista lhe fez um bem imenso.
Ainda se lembravam dele, no dia seguinte encontrei-o mais animado e disposto a
falar. Havia uma luz nova nos seus olhos e o sinal de sua melhora estava nas
críticas que tornou a fazer.)
Oswald de Andrade — Erra quem diz que o Brasil já possui uma
grande literatura. Temos, quando muito, valores isolados. José Lins do Rego,
Jorge Amado e poucos outros. Alguns tinham sido, mas não foram. Rachel de
Queiroz apagou-se inteiramente, Armando Fontes não fez mais nada, e os outros
felizmente não escreveram mais.
— Mas há Cornélio Pena.
Oswald de Andrade — Você lembrou bem. É outro que só será
redescoberto daqui a algumas décadas. Guarde o que estou dizendo. Mário de
Andrade foi dos poucos que tomaram conhecimento dele, apesar dos reparos que
lhe fez.
(Perguntei-lhe sobre
Guimarães Rosa, que começava a ser falado. A resposta foi demorada. Tive que
repetir a pergunta.)
Oswald de Andrade — O problema não é enriquecer o idioma, é
enriquecer o Brasil. Não é mais tempo para ficarmos brincando com a sintaxe,
inventando palavras, dormindo no estilo. Isso é beletrismo, é trabalho para
diletante. Em suma, não me apaixona mais. Depois, a de Guimarães não é a língua
brasileira, é uma invenção sua. Talentosa sim, mas sem raízes, e que redunda
numa lamentável perda de tempo.
— Que conselho daria a um
poeta e a um escritor jovem?
Oswald de Andrade — Ao poeta diria que não fizesse mais
poesia. Essa poesia tipo ação entre amigos não interessa mais. Mesmo a nossa
poesia participante não participa mais. É hermética, pretensiosa,
incomunicável. O povo poeta teria de falar a linguagem da revolução e esquecer
definitivamente as escolas, panelas e modismos artísticos. Alguém como
Vinícius, se Vinícius fosse capaz de sentir a grande miséria nacional.
— E Drummond?
Oswald de Andrade — É grande, imenso, mas apenas para as
elites. Não se pode esperar mais nada dele.
— Mas, a mensagem ao
escritor.
Oswald de Andrade — Gostaria de crer na nova geração, mas não
acredito. Todos resolveram fazer da literatura um divã de psicanalista.
Voltaram-se para dentro, e infelizmente o único que se exterioriza é o “burro
blanco”. A minha geração tinha ao menos o que combater, o que destruir. Esta
encontrou o terreno aplainado e não consegue construir nada. Todos bem
comportadinhos, uns garotões precoces, querendo ganhar prêmios. É difícil dizer
entre eles o que escreve mais corretinho. Mas vá remexer no fundo, vá procurar
ideias, vá auscultar as inquietações. O críticos, por sua vez, limitaram-se às
observações estilísticas. E julgam também que a literatura nada tem a ver com o
país onde é produzida. Como todo povo subdesenvolvido, temos a mania de ser
requintados. Ninguém se conforma em não ter nascido em Paris. Provavelmente
teremos também literatura requintada, mas estranha a nós, inexpressiva, fria,
reacionária. Mensagem aos jovens? Besteira! Não lerão minha mensagem. É muito
mais cômodo romancear os complexos e fazer estilo. Isso dá prêmio, dá crítica e
até emprego público.
(Na entrevista seguinte,
voltou à recordações. Sempre Mário de Andrade, mas o homem que o artista. Devia
ter procurado Mário na hora da morte. Arrependia-se. Mas não só disso como de
outras coisas. De não ter concluído o “Marco Zero”, por exemplo. Mas não se
arrependia de ter vivido. Na penúltima entrevista, falou muito das mulheres que
tivera. Amara a todas igualmente, e com a mesma volubilidade. Capítulos
preciosos de sua vida. Com cada uma delas aprendera alguma coisa. Na última
entrevista, fui encontrá-lo totalmente arrasado. Quis retirar-me imediatamente.
Mas Oswald reconheceu-me e fez sinal para que ficasse. Fiquei, porém sem fazer
perguntas. Algumas visitas entravam e saiam. Velhos conhecidos iam ver o
doente. Escritores, poucos. A certa altura, num intervalo das visitas Oswald
perguntou-me como se chamaria o livro.)
— Que livro?
Oswald de Andrade — O livro de nossas entrevistas.
— Mas está ainda no começo.
Oswald de Andrade — Sim, está no começo.
Oswald tentou sorrir.
Oswald de Andrade — Mais um livro meu que não chega ao fim.
(Voltou a ficar em
silêncio. Maria Antonieta D’Alckmin pediu às crianças que não fizessem barulho.
Deram-lhe um remédio que tomou com má vontade.)
Um antropófago de cadillac
Ele lançara a antropofagia
após os dias agitados da semana, no vale-tudo para impor ideias novas. Naquela
época, tinha um cadillac verde. Gordo, lustroso e cheirando loções, vivera
rodeado de amigos e inimigos. Dele sempre se esperava o máximo. Sua
personalidade extravagante e única preenchera toda uma época de nossas artes.
Fora o autêntico Papa do Modernismo. O rotundo espadachim de 1922. As últimas
palavras que me dirigiu naquela manhã demonstravam a certeza de sua perenidade.
Não acreditava que pudesse ser lembrado alguns anos mais tarde. E tinha a
franqueza e a sinceridade de confessá-lo.
Oswald de Andrade — Tudo que eu fiz será esquecido logo. A não
ser em alguém se lembre de falar em mim de vez em quando.
— Seus livros serão mais
lidos amanhã do que quando foram publicados, profetizei para confortá-lo.
Oswald de Andrade — Você é camarada.
— Os novos o seguirão.
Oswald de Andrade — Onde estão eles?
(Não disse mais nada,
ofegante.)
— Voltarei depois de
amanhã.
(Oswald sabia e eu também
que aquela era a última entrevista. No dia seguinte, à noite, eu voltava à casa
de Oswald para vê-lo morto. Lembro-me de Antonio Candido, Edgard Cavalheiro,
Antônio Olavo, Mário Donato, que já estavam presentes. Maria Antonieta
D’Alckmin, inconsolável, falava nervosamente. Outros amigos foram chegando. O
corpo foi levado para a Biblioteca Pública Municipal, naquela noite. Tarsila do
Amaral aproximou-se lentamente do caixão. Ficou a olhar o cadáver com olhar
sereno, amigo e prolongado. Um mudo e profundo adeus.
No dia seguinte, uma enorme
fila de automóveis acompanhou-o ao cemitério. Por notável coincidência, o
túmulo, ao lado do seu, todo preto, é de um tal Serafim Del Ponte Grande. Isso
chamou a atenção de todos. Menotti Del Picchia falou no último momento,
comovido e comovendo.
Meses mais tarde, a União
Brasileira de Escritores publicava o primeiro número de uma revista toda
dedicada a Amadeu Amaral. O segundo número seria sobre Oswald de Andrade. Reuni
minhas entrevistas para inserir na revista. Mas foi outra iniciativa da União
que morreu no nascedouro. O que fizemos foi um caderno quase completo sobre
Oswald de Andrade, no Suplemento Literário de “O Tempo”, assinado por diversos
colaboradores. Parte das entrevistas entreguei a Mario da Silva Brito, que
escreve a “História do Modernismo”, e que talvez encontre nessas confissões
alguma informação útil. Esta não havia sido publicada até hoje. Publico-a aqui,
dosada com alguma recordação.)
Entrevista publicada originalmente
no “Jornal da Senzala”, em fevereiro de 1968.
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