O SENTIDO DO DUPLO
Carlos Sepúlveda
Estamos
acostumados ( ou seria “condicionados”) por força dos nossos regimes
democráticos a desconfiar dos sentidos, tanto dos sentidos óbvios quanto dos
mais elaborados. Aliás, nada irrita mais a modernidade do que o singelo ato de
“fazer sentido”.
Estamos
convencidos de que não existe discurso inocente, por isso ficamos muito
espertos, ou quase. É um prazer inexcedível quando encurralamos um interlocutor
ingênuo toda vez que esta ingenuidade é surpreendida por nossas suspeita
profissional.
Afinal, tudo o
que se diz não passa de uma forma de enganar, de iludir. E se todo discurso é
um duplo sentido, a possibilidade de verdade é um inútil exercício de
paciência, até que firme uma operação válida de fazer sentido.
É a marca mais
contundente da baixa modernidade em que nos arrastamos. Ignoramos, faz tempo,
que vivemos a era da suspeita.
Suspeitar é um
dever, uma cidadania imperativa para se viver nesse bravo ( nem sempre admirável)
mundo novo.
Lembro-me de uma
passagem de Umberto Eco na qual, com seu humor ácido, observou que tudo andava
muito esquisito, muito suspeito. Sempre, por volta das seis horas matutinas, o
sol nascia outra vez, e quase sempre no mesmo lugar. Isso é muito estranho.
Preguiçosamente,
adotamos o estranho hábito de criar, para uso próprio, uma outra modalidade de
dúvida metódica, o instrumento de que se serviu Descartes para dar vaidade à
racionalidade cartesiana. Estamos falando de uma radicalidade mais profunda, a
mesma de que Kant ser serviu para escrever suas três críticas. No caso de um
discurso normativo, autotélico, o que se produz é dúvida, como num vórtice.
Se possível, e se
você quer ser alguém ” aggiornato” destrua ou desconstrua até não sobrar a
mínima possibilidade de se cumprir a tarefa para a qual os discursos foram
criados: fazer sentido, pois este é a maior aspiração de um discurso:
fazer sentido. Está no Evangelho de João; no princípio era o logos ( o verbo, o
discurso).
Com vistas a
corroborar o escândalo e para impedir a possibilidade de fazer sentido,
apela-se para uma multiplicidade de sentidos; vários duplos, de modo a
inviabilizar qualquer tentativa de… fazer sentido.
Ora, acabamos
reféns de uma nova hermenêutica cujo credo advoga, para todos os participantes
da razão comunicativa, o princípio da hierarquia da interpretação que culmina
na máxima: “ o importante não é o que se diz, mas o lugar de onde se fala.”
Se é verdade que
está garantida a pluralidade aparentemente inesgotável dos duplos sentidos,
então na há mais um terreno seguro para um discurso que garanta a validade do
que outrora chamávamos verdade dos fatos consumados, embora Fernando Pessoa nos
tenha alertado de que só há argumentos contra fatos consumados. Evidente que
se, um fato já é consumado, não há que se falar em argumentos a não ser por um
inesperado altruísmo intelectual.
Sabemos que não é
mais a verdade dos fatos que importa, o que importa é a verdade dos fatos consumidos
posto que a verdade, hoje, foi recolhida ao museu das inutilidades funcionais e
desartáveis. Afinal se tudo se pode comerciar, precificar, trocar, marcadejar,
por que não o sentido?
Talvez seja por
essa razão que a possibilidade do discurso único, garantido pela verdade dos
fatos, já não parece fazer mais sentido.
No comércio da
convivência do homem moderno com outros homens, é sempre possível perceber a
disputa pela hegemonia do melhor discurso, isto é, daquele discurso que se
constitui como validado pela chamada “verdade dos fatos”. E se esta
verdade não consegue validar-se como fato, pior para os fatos.
Funda-se uma
espécie de “neonominalismo”, adornado por um tipo de retórica meramente
conceptista. Não se pode mais conceber uma verdade, mas pode-se conceber um
discurso que substitui e se sobrepõe ao que antes se entendia como
verdade.
A moderna
concepção de verdade não pode mais se dissociar dos discursos, não lhes
antecede nem precede, apenas os substitui.
Como a pedra que
se abre à exortação do “abra-te sézamo”, liberando o acesso aos produtos de uma
razão corrompida pelos ladrões de Ali Babá, também o discurso como a verdade
vive do roubo, do crime. Vive do prazer de se deixar interpretar pelo avesso, e
o avesso é sua neurose.
Mas o truque , a
trampa, consiste em produzir uma rede ampla de sentidos de modo a não
substituir verdade alguma.
Und ob ein tausand Wört habt
Das Wort, das Wort ist tot
Então, se não há como se salvar do naufrágio,
vivamos o relativismo, aquele parente da má-fé, cujo efeito é moral e,
quanto a isso, não importa o sentido que tenha pois na esfera dos valores, nada
é para sempre. Viver um relativismo complexo dá muito trabalho.
Por isso, eis a lição de Mateus 5, 37
“Diga sim quando for sim
E não quando for não.
O que você disser a mais vem da boca do maligno.
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