Francisco e a Revolução de Ternura
Por
Orlando Senna
Durante sua viagem a Cuba e Estados Unidos, o papa Francisco tratou de
definir a situação caótica da atualidade planetária. Socialmente, politicamente
e economicamente caótica. Mencionou a possibilidade ou a ameaça de uma Terceira
Guerra Mundial, com todas as letras, e explicitou o papel que lhe cabe como
líder religioso: “romper muros, semear a reconciliação, estender pontes” (a
palavra Pontífice tem a ver, exatamente, com construção de pontes). Exemplificou
o “momento crítico da História” com alguns de seus aspectos dramáticos:
exclusão social, migrações gigantescas, ideologias, conflitos religiosos,
banalização da vida humana, indústria e comércio de armas, destruição do meio
ambiente acelerando fenômenos climáticos de grande dimensão.
Pregou uma redefinição da política longe do campo de confrontos de
interesses partidários e pessoais, a política como “expressão da necessidade de
viver como um e construir o bem comum”. Pregou a superação de todos os preconceitos
e “olhar mais além das aparências e do politicamente correto”, criticou o
capitalismo (como faz desde o início de seu papado) e a “resistência à mudança”
por parte dos regimes socialistas. Que nome poderia ser dado às mudanças de
comportamento e visão de mundo defendidas por Francisco? Em uma de suas
homilias em Cuba, juntou dois conceitos marcantes na cultura cubana para
expressar uma síntese de sua nova evangelização: “revolução de ternura”. A
revolução como necessidade de mudança imediata e o sentimento que seu
compatriota Che Guevara adicionou a essa mudança (“sin perder la ternura”).
Nova Desordem Mundial
Francisco tenta enfrentar a crise civilizatória com a potencialização da
espiritualidade. Uma crise que está sendo entendida, e é inteligente que assim
seja, como uma reta final em direção à anomia, no sentido da ausência de
princípios e regras, de uma sociedade global sem padrões de conduta ou
submergida em conflitos e contradições entre as normas estabelecidas no
passado. Ou seja, desorientação, alienação, perda de identidade, falta de
objetivos claros de superação ou reconstrução. Dias atrás, referindo-se ao
Brasil mas ampliando o diagnóstico à situação planetária, o deputado Chico
Alencar, do PSOL, citou o conceito “interregno” utilizado por Antonio Gramsci:
“o velho está morrendo e o novo não pode nascer;
nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparecem”.
Émile Durkheim também
utilizou o conceito anomia para sociedades que não funcionam harmonicamente, a
anomia como uma “patologia”, um comportamento suicida tanto em nível individual
como em escala coletiva. Em seu livro Estrutura social e anomia,
Robert Merton diz que essa “conduta desviante” é gerada pela descrença ou
depressão emocional por não se conseguir alcançar “metas culturais” necessárias
ao equilíbrio social. Como superar a soma das tantas tragédias sociais e
naturais? Guerras, matanças, macromigrações, economia esfarrapada, fome,
pobreza, tsunamis, secas, poluição atmosférica. Voltando a Gramsci, o velho
ainda está vivo e sua existência impede o nascimento do novo, que está em
concepção.
Contracultura
Francisco esclarece que levar à prática sua Revolução de Ternura
significa “emendar relacionamentos quebrados e abrir novas portas para a
cooperação dentro de nossa família humana, passos positivos no caminho da
reconciliação, da justiça e da liberdade”. Na raiz dessas possibilidades de
meter a mão na massa, de ter a sabedoria de agir (Geraldo Vandré: “quem sabe
faz a hora, não espera acontecer”) está o amor ao próximo, a máxima central dos
ensinamentos de Cristo. O inspirador dos muitos cristianismos que existem fez
uma síntese absoluta dos Dez Mandamentos do judaísmo, sua cultura de berço, em
apenas uma frase, “amar o próximo como a si mesmo”. Uma postura que só se torna
válida se o indivíduo amar a si próprio.
A potencialização da espiritualidade foi retomada em alguns momentos
durante os últimos dois mil anos, em algumas tentativas que resultaram em
avanços comportamentais e filosóficos do ser humano e outras que foram tragadas
pela violência, tão natural ao homem como o amor. A última delas, recente,
aconteceu na onda global da contracultura, nas décadas 1960 e 1970, cuja
expressão mais visível foi o movimento hippie que se inspirava nas ideias e no
comportamento de São Francisco de Assis. O mesmo santo dos pobres, o mesmo
padroeiro dos desvalidos, o mesmo missionário que enfrentou a riqueza e a
ostentação do Vaticano com suas roupas rasgadas e pés descalços que inspira o
Papa, que adotou seu nome como exemplo de humanização e transcendência. Pois
disso se trata, a transcendência.
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