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domingo, 2 de agosto de 2015

ARTIGO


Povo, poder, poesia
Por Orlando Senna

A liberdade é um dos fundamentos essenciais da convivência humana e, em consequência, da organização política dessa convivência, do modus operandi de uma civilização, de uma sociedade capaz de sobreviver à sua própria ação predatória. O filósofo suiço Rousseau, inspirador da Revolução Francesa, escreveu que o ser humano é bom por natureza mas sofre a influência corruptora da sociedade. Pois, o modus operandi de uma boa sociedade é a democracia, disseram os gregos: demos kratos, poder do povo, governo do povo. A ideia e as tentativas de implantá-la começaram aí, na Grécia, 500 anos antes de Cristo. Já lá se vão 26 séculos.
Conceito e prática de democracia estão, também em consequência, diretamente relacionados com a crise ética-política-econômica-ambiental que o mundo está vivendo. Por ironia dos deuses do Olimpo, neste momento a crise se exemplifica, se sintetiza, se metaforiza na Grécia. A propósito, Platão foi desdenhoso em A República: “a democracia se estabelece quando os pobres, tendo vencido seus inimigos, os massacram e banem e partilham igualmente com os restantes o governo". Lincoln foi objetivo: “voto é mais forte que bala”. Churchill foi irônico: “a democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as demais formas que têm sido experimentadas”. E George Orwell, o inventor do verdadeiro Big Brother em 1948, deu o diagnóstico em Revolução dos Bichos: "todos somos iguais, mas alguns são mais iguais que outros".
Durante os dois milênios e meio em que está sendo pondo em prática, ou tentando ser posta, a democracia raramente se aproximou de suas matrizes de igualdade social e autossustentabilidade coletiva e muitas vezes desandou em todas as direções. Dizem os teóricos que as disfunções democráticas acontecem devido à opção pela democracia representativa, pela delegação que o povo concede aos políticos para representá-lo, ser a sua voz. E dá no que dá. O caminho de construção de um poder pleno do povo seria a democracia participativa, a democracia direta dos cidadãos decidindo nas praças o que e como deve ser feito. É claro que, na atualidade de superpopulação e redes sociais digitais, o conceito de democracia participativa tem de ser redesenhado mas, em sua forma original, é recorrente na filosofia política, inclusive no citado Rousseau, que a defendeu e atacou o liberalismo.
Uma grande mistura nessa história foi e é a da democracia (liberdade, igualdade) com o capitalismo (hierarquia, competitividade). Não se pode dizer que foi/é uma fusão mas sim uma confusão, uma contradição, conflito, água e óleo no mesmo copo. O filosófo franco-argelino Jacques Rancière analisa a atualidade desse tema em La haine de la démocratie (O ódio à democracia, Editorial Boitempo, 2014), focado em um sentimento antidemocrático que, segundo ele, nasceu com a própria noção de democracia. Recomendo a leitura. Rancière entende esse sentimento como “ódio ao povo e seus costumes, à sociedade que busca igualdade, respeito às diferenças e direitos das minorias”. Ataca as políticas liberais-bélicas como uma deturpação do ideal democrático e centra seu diagnóstico na hierarquia: “não vivemos em democracias e sim em estados de direito oligárquicos, em um sistema que dá à minoria mais forte o poder de governar”.
“Governo do povo, pelo povo e para o povo”, discursou Lincoln, o mesmo da comparação do voto com a bala. Um dia chegaremos a esse grau de inteligência e solidariedade, a essa comunhão? A essa liberdade que Cecília Meireles divinizou ao defini-la como “palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”? Ou a democracia plena está fadada a ser mais uma utopia da humanidade, esse outro invento grego (óutopos) que significa “nenhum lugar”?

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