Um Conto de Reis
BRISA
SECRETA DAS ALTURAS
Fábio Carvalho
Sem as devidas preparações, com o
inconsciente liberado, fui fazendo as imagens para este filme antes de perceber
que já o estava compondo. Não me lembro de ter acontecido de outra vez assim.
No balcão certa noite, Adam, meu conhecido australiano também guitarrista,
disse que para ele o Jimi Hendrix era líquido. Nada mais me sobressalta,
digo isso em lembrança a D. Regina, que além de outros predicados cultivava o
dom da oratória. Vamos para o campo de batalha do cinema onde palavras se
exibem como musas. A exuberante nudez daquela atriz poderia mudar o
mundo, torná-lo mais justo. Tudo se transmutou naquele enevoado e friorento fim
de semana depois que o velho pianista Chick Corea não veio até a velha cidade de
Ouro Preto. Ficou preso na Argentina. Sombras demais provocam medo
ao coração. Ontem hoje amanhã depois. Toninho tocou com a Orquestra Fantasma
bem lá no alto acima das dez, improvisando o que estava previsto para acontecer
lá embaixo às seis dentro da Igreja do Pilar. Ah, meu samba, não me deixe
acreditar que a saudade possa me desesperar. Com olhos terrivelmente maldosos
encharcados com Acqua Vita, assisti ao emo paulista com dedos longos, tortos e
trêmulos locando o drone munido de hélices e câmera HD para roubar o ponto de
vista da pomba que voava por sobre os telhados barrocos sem pagar direitos
autorais. Isto tudo bem no beiral da ponte logo depois do Passo antes da
Casa dos Contos. Naturalmente eu estava na contramão então houve uma trombada
em nós. Nada além, apenas um desconforto foi provocado no entorno e nas
adjacências, o que claramente eu poderia ter evitado, o problema foi que só
pensei assim no dia seguinte. Sigamos a passos largos e rápidos já que tratamos
de cinema para adultos. Por mais incrível que possa parecer, naquela noite de
Sexta Feira de agosto a Fafá tomou banho, lavou os cabelos e se vestiu com
roupas limpas. Milagres acontecem como bem dizia o velho Sarra. A Lua cheia
brilhou novamente, os sonhos em profusão também. Difícil eu sem mar eu sem
chuva eu sem respiração. Sonho muito com movimentos, disse a bailarina. Sonho
que dou um salto e vôo. Depois em outro sonho emendado estouro de gargalhar.
Sou um concentrado disperso. O físico Ramayana Gazzinelli contou que foi certa
vez, com o arquiteto Roberto Lacerda, à casa do filósofo Moacyr Laterza, então
na Rua Dona Cecília na Serra. Já no terceiro ou quarto uísque, entabularam um
papo sobre as pessoas próximas que já tinham morrido e sobre seus fantasmas que
apareciam de vez em quando. Aquele assunto foi deixando o físico arrepiado, com
um medo gelado percorrendo todo o corpo. No fim da noite voltou para casa. Como
sua esposa estava viajando, ele bastante ressabiado não guardou o carro na
garagem, deixou-o do lado de fora para qualquer emergência. Lá pelas
tantas, sem conseguir dormir, andando de um lado para o outro dentro de casa
com as luzes todas acesas, tomou a seguinte resolução: telefonou para sua mãe e
pediu para dormir com ela, o que a velha senhora atendeu prontamente. O cientista
e seus fantasmas. Escrever é não dizer nada, escrever é escrever, disse o M.D.
com asterisco. Escrever seria encontrar algo na noite escura ou qualquer coisa
assim? A ponte que todo mundo conhece e ninguém sabe o nome finalmente foi
decifrada como Ponte Dos Contos, poderia ser dos Tontos, seria mais divertido.
Vamos à diversão. Na sequência na mesa da frente dentro do Toffolo,
reinava a poesia do Paulo Augusto Franzem de Lima, provocada e proferida por
vários dinossauros centrifugados na própria e incontestável imagem através do
tempo, naquele enquadramento espesso e iluminado que não se dissolvia diante da
realidade de cristal. Exatamente vinte e duas e treze, a hora é essa. Um Louva-
Deus gigante pousou na parede de tijolos envernizados da cor ocre no mês do
cachorro louco. Alertaram-me mais tarde que na verdade o Louva-Deus era um
Bicho-Folha bem verdinho. Abre as asas sobre mim, oh senhora liberdade, fui
condenado sem merecimento, por um sentimento por uma paixão, violenta emoção.
Há dias esta música vem me rondando por dentro da minha cabeça. Deve ser alguma
coisa boa, espero que seja. No centro do quadro a panturrilha branca e nua de
mulher com uma borboleta azul pousada bem ali. Aceleração equivocada numa
pressão desmedida. Aurino Ferreira e Hector Costita se alternavam no sax-
tenor, enquanto eu dava início aos trabalhos, abria a porta do escritório.
Novamente teria que atravessar todo aquele dia na expectativa de não ter que
vê-la. A sensação é complexa. O tempo morto naquele abrigo torna imprescindível
a segunda dose. Um filme música. Cabe uma mudança séria na ordem da montagem,
mudar a forma de caminhar é sempre complicado, é preciso coragem, aventurar-me
na minha guerra interior com mais afinco. Continuo rezando pelos cantos vazios
e escuros dos bares conhecidos e desconhecidos que chegam até a mim. Duas bocas
perpassam todo o filme e as outras partes em blocos. A sombra e a brisa da Rua
Dos Guajajaras me fizeram esperar o ônibus para subir até a Serra de modo
tranquilo e barato. Sem esquecer que longa é a dor do pecador querida. Louco é
o desejo do amador perdida. Suave em primeiro lugar a descrição da neve pela
visão interior, em segundo o tratamento dos dentes em duas etapas. Em terceiro
a subida de elevador e as alterações necessárias. Estou farto da simetria! No
filme só os enquadramentos me interessam por enquanto, a ilustração.
Repugnante e obscena esta afirmação, ao mesmo tempo vemos o belo rosto da
Monica Vitti em cores saturadas. Durante aquele espaço real tentamos nos
evitar, para tanto tivemos um pensamento viajante coadunado. Repentinamente
éramos mistérios leitosos escorrendo para onde nunca conseguimos chegar como
implosões microscópicas em forma de salutar experimentação. Depois de
almoçar um p.f., tomando uma Bohemia, ele tirou um cachimbo de osso do bolso, e
sem poder acender dentro do restaurante, ficou mordendo o seu cabo. No meu modo
de ver o cinema se expressa como organismo vivo através da sensualidade, a
imagem é mulher. O movimento mucoso vermelho interno e o contorno malemolente
do quadro contém a lascívia em estado de cio. O calor da duração da cor e mesmo
a ausência dela a cor, perturbam a libido no meio do escuro. A esperança num
perfeito refúgio de um cine poeira no meio da tarde de um dia de semana.
Biro-Biro e Ivan o Terrível, declamaram para mim às três e meia daquele Domingo
ensolarado com prazer deslavado e cúmplice a letra da música do Sebastião
Cirino chamada Três Amores: tenho três amores na vida, música, mulher e bebida.
Eis a razão do meu ser. A música me enleva a alma, a mulher me tira a
calma e a bebida me faz esquecer.
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