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sábado, 4 de outubro de 2014

Meu nome é Brasil

SALVE MESTRE ARIANO - TEU NOME É BRASIL

Texto de Rosemberg Cariry

>> A vida de todos nós está sempre nos preparando surpresas, umas
>> difíceis, outras boas... Entre os bons acontecimentos da minha, está
>> o privilégio de ter encontrado Ariano Suassuna e com ele ter
>> convivido, por muitas semanas, viajando pelo sertão, realizando o
>> filme o "O Nordeste de Ariano", com produção e concepção de roteiro
>> de Wagner Campos e Alexandre Nóbrega, produzido pelo SESC Nacional.
>> Juntos, varamos os sertões do Ceará, Alagoas, Sergipe e Bahia, só
>> parando quando ouvimos a pancada do mar, o denso areal de Aracati,
>> onde Dom Sebastião - o Desejado se desencanta, com seu exército
>> aluminoso, em noite de lua cheia. Nestas andanças, erudito e simples
>> na paciência professoral, Ariano foi-se adentrando, nas artes
>> barrocas populares e nas lendas do povo, nas antropologias e
>> interpretações da nação brasileira...  De tudo
>> falou: de índios, de negros, de cafuzos, de brancos, de beatos, de
>> cangaceiros, de lutas e revoluções. "Oropa, França e Bahia" que se
>> reinventam Brasil - pátria dos encontros de todas as etnias e de
>> todas as culturas, sob o signo da universalidade e singularidade que
>> nos engrandece e irmana.
>> Em várias ocasiões, diante de um curumim, nas ruínas de Canudos, na
>> Casa de Antônio Conselheiro, em Quixeramobim, vi o mestre Ariano
>> chorar. Ele se mostrava tão sensível, andava com o coração na mão e
>> parecia enternecido, quando as pessoas (a gente do povo) o paravam
>> nas ruas; ou quando nas aldeias indígenas os índios dançavam um Toré
>> em sua homenagem e os quilombolas batucavam tambores e sapateavam
>> Zambé. Nessa caminhada, a ele eram destinados tão belos ritos, da
>> mesma forma que o Galo da Madrugada o homenagearia depois, no
>> carnaval do Recife. De todos, ele recebia muitas palavras carinhosas
>> que se traduziam em uma só ideia: "Olha o mestre Ariano, ele é um
>> grande escritor e um defensor do povo brasileiro". Sim, Ariano
>> Suassuna era um apaixonado pelo povo brasileiro, parte indissociável
>> dele, porque se fez sopro encantado desse mesmo barro; e hoje, depois
>> da sua morte, transformou-se em um defensor perpétuo e desencarnado deste
mesmo povo.  Ele lutou a boa luta e não se entr!
>> egou facilmente. Gostava de dizer: "Tenho duas armas para lutar
>> contra o desespero, a tristeza e até a morte: o riso a cavalo e o
>> galope do sonho. É com isso que enfrento essa dura e fascinante tarefa de
viver".
>> A morte-mulher, que ele chamava Caetana, feiticeira e sedutora,
>> levou-o em seu cavalo branco, riscou os cascos da noite, atritou as
>> faíscas das estrelas e levantou o véu de poeira cósmica nas suaves
>> vias lácteas. A hora fatal foi cantada por Ariano com desassombro,
>> com profundidade e beleza, no poema "A Morte - O Sol do Terrível":
>> Mas eu enfrentarei o Sol divino,
>> O Olhar sagrado em que a Pantera arde.
>> Saberei por que a teia do Destino
>> Não houve quem cortasse ou desatasse. 
>> Não serei orgulhoso nem covarde,
>> Que o sangue se rebela ao toque e ao Sino.
>> Verei feita em topázio a luz da Tarde, Pedra do Sono e cetro do
>> Assassino. 
>> Ela virá, Mulher, afiando as asas,
>> Com os dentes de cristal, feitos de brasas, E há de sangrar-me a
>> vista o Gavião.
Mas sei, também, que só assim verei
>> A coroa da Chama e Deus, meu Rei,
>> Assentado em seu trono do sertão.
 Contador de histórias inigualável, com um humor solar, alumioso,
>> Ariano nos acalentava a alma com o riso e nos alimentava a mente com
>> suas sabedorias infindáveis. Para ele, o homem devia encarnar os
>> arquétipos do Rei, do Guerreiro, do cantador de histórias (o
>> mentiroso) e do Palhaço. Ele tinha na alma esses aspectos generosos
>> da grandeza humana. Era um espírito universal. O que Ariano Suassuna
>> tinha de regional era justamente a sua universalidade, amante que era
>> do Cego Oliveira e de Cervantes, de Dostoievsky e de Shakespeare, de
>> Homero e de Garcia Lorca, de Molière e Goethe, de Lino Pedra Azul e de
Gil Vicente, de Guimarães Rosa e de Elomar.
>> Mundos que se reinventavam nos sertões sem porteiras, que Ariano
>> carregava e recriava dentro da alma.  Este homem amava o Brasil por
>> entender o que de universal herdara o povo brasileiro, numa torrente
>> de signos vindos de todas as culturas, povos e etnias... Por isso,
>> talvez, ele achava que "ao outro" ele só podia dar o melhor de si, a sua
própria originalidade.
 Tido por alguns como conservador, Ariano Suassuna surpreendia pelas
>> suas ideias avançadas e politicamente arejadas. Ao modo de Machado de
>> Assis, gostava de denunciar o "Brasil oficial" (das elites e dos
>> exploradores do povo), que sempre corta a cabeça do "Brasil real" (os
>> pobres e deserdados dos campos e das cidades) cada vez que este povo
>> avançava em suas conquistas sociais e políticas. Gostava de citar o
>> exemplo de Canudos e dizia que cada vez que a polícia invadia uma
>> favela, era Canudos que está sendo devastada; que cada vez que nós
>> exploramos ou humilhamos as nossas empregadas domésticas, era Canudos
>> que estava sendo pisoteada, que cada vez que se assassinava um líder
>> camponês, indígena ou operário era a cabeça de Antônio Conselheiro
>> que estava novamente sendo cortada... Canudos saía da história e do
>> sertão, para invadir as favelas cariocas e as cozinhas no nossos
>> apartamentos confortáveis de classe média ansiosa para entrar no "Brasil
oficial"... Ariano Suassuna marcho!
>> u junto com Miguel Arraes em momentos decisivos e corajosos da
>> política nacional e terminou por se filiar ao Partido Socialista
>> Brasileiro, sendo o seu presidente de honra, embora preferisse o
>> reisado de congo com suas cores e brilhos, festas e repartição de
>> comidas e dengos, nos terreiros da gente humilde dos sertões e das
cidades.
>> 
>> Se alguém me perguntasse o que, durante toda esta convivência, ao
>> lado dele, peregrinando por cidades, praias, serras, caatingas e
>> desertos, achei mais bonito ou mais importante em Ariano Suassuna,
>> não me seria difícil
>> responder: foi o carinho e o amor que ele dedicava ?  Dona Zélia, sua
>> mulher
>> - o grande amor da sua vida. Era comovente ver como ele a protegia,
>> como ele estava sempre se desfazendo em mimos por ela e lhe
>> confessando a sua paixão. Via-se ali um amor tão bonito que a todos
>> nós comovia, como se aquele sentimento fosse pura luz e irradiasse calor.
>> 
>> A todos da equipe de filmagem ele tratava com carinho e tinha sempre,
>> todos os dias, uma brincadeira para fazer, uma motivação para que não
>> desanimássemos da nossa difícil missão, quando a pessoa mais velha e
>> mais frágil, a que mais precisava de proteção e renovação de ânimo
>> era ele. De Petrus Cariry mangava por que se cansou na íngreme e
>> pedregosa ladeira que leva a Gruta de Angicos, onde morreram Lampião,
>> Maria bonita e o seu bando; de Júnior Sindeaux Jr. e Ezaquiel
>> Rodrigues (eletricista e assistente) - espécies de dupla de palhaços
>> naturais, sempre inventando presepadas, ao modo de João Grilo e Chicó
>> - ria-se com fartura; de Dirceu Saggin (muito branco ?  sombra e
>> sempre vermelho ao sol), engenheiro de som, inventava antigos brasões
>> e fidalguias; com Wagner Campos, discutia políticas e conceitos
>> filosóficos; com Alexandre Nóbrega (esposo da sua filha Maria),
>> apontava vontades e estirava a prosa amiga; comigo falava de cantadores e
de cinema... Sonhava ver os guerreiros al!
>> agoanos em um filme, com a mesma beleza e dignidade dos samurais nos
>> filmes de Akira Kurosawa.  De toda a equipe, Dona Zélia e Ariano
>> dedicavam especial carinho e simpatia sincera ?  Bárbara Cariry e a
Daniel Pustouka:
>> era como se esse casal de jovens enamorados os representassem na
>> juventude, em todo o frescor da vida e confiança no futuro. Para
>> Bárbara e Daniel, Ariano Suassuna pintou uma Igreja de Canudos e
>> afetuoso lhes ofereceu. Era um quadro lindo - um dos presentes mais
>> bonitos que esses jovens terão recebido em suas vidas. Maíra, minha
>> outra filha, como presente, encantou-se com a magia de ouvir Ariano
>> narrar histórias, ao redor de uma fogueira, na Fazenda Magé, em Quixadá.
>> 
>> Depois de um longo intervalo, por causa de doenças ocasionais do
>> mestre Ariano, planejávamos retomar as filmagens, em outubro próximo.
>> De repente, chegou-nos a notícia de que Ariano sofrera um AVC
>> hemorrágico e estava internado no Real Hospital Português, em Recife.
>> Ficamos aflitos, preocupados, como se alguém da nossa família tivesse
>> adoecido. Sim, Ariano é alguém da nossa família, não apenas da minha
>> ou da sua, mas de todos nós nordestinos e brasileiros. Ariano é uma
>> espécie de pai espiritual e mítico de todos os artistas e
>> intelectuais da minha geração. Mesmo os que, por falta de informação
>> ou por equívocos de interpretação, combateram as suas ideias. No
>> fundo, estávamos todos tocados pelo universo mágico e universal da
>> sua literatura, que superava as nossas diferenças ideológicas ou
estéticas.
>> Ninguém lê Ariano Suassuna, impunemente, sem que a sua vida se
transforme.
>> Confesso que o meu cinema tem muito de Ariano e do sertão que ele me
>> ensinou a desvendar, a intuir e ver para além das mais chãs
>> aparências. O meu primeiro filme de ficção "A Saga do Guerreiro
>> Alumioso" é uma homenagem e leitura compartilhada do universo
>> sertânico e imaginoso de Ariano. Ler a literatura de Ariano é um
>> processo iniciático, feito o do cavaleiro da Távola Redonda, que, ?
>> procura do Santo Graal, termina por encontrar a sua própria alma e um
>> sentimento profundo de pertencimento a um povo e lugar; não no
>> sentido de um regionalismo estreito, mas de um "lugar sagrado", de
>> onde se torna possível amar o mundo e a diversidade cultural dos
>> povos do planeta, enquanto completamos o nosso processo de individuação,
no sentido que lhe dava Gustav Jung.
>> 
>> Dizem que, quando o homem morre, encanta-se e encontra sua plenitude.
>> O que sei é que, quando um grande homem morre, faz-se mais vivo do que
nunca.
>> Todo morto é mágico, e sua história, livre dos limites da carne, já
>> pode ser contada e reinventada, pelos séculos afora. A plenitude de
>> um homem é a sua eterna reinvenção. Se antes éramos os filhos
>> espirituais em luta edipiana com o pai pela posse da "mãe arte", com
>> a morte do "pai", somos seus herdeiros e temos o compromisso de
>> ajudar, como ele o fazia, na recriação ou transformação do mundo.
>> Acredito que mesmo a mais ousada vanguarda nordestina (mesmo aquela
>> que guarda fortes influências
>> estrangeiras) é filha de Ariano, muito embora com ele possa arengar.
>> Em Ariano, todos se encontram: de Chico Science a Caetano Veloso, de
>> Elenilson a Samico, de Marlos Nobre a Antônio José Madureira, de
>> Gilberto Gil a Antônio Nóbrega, de Lenine a Wagner Campos, de Cláudio
>> Assis a Kléber Mendonça - todos beberam na mesma fonte luminosa das
artes!
>> populares e eruditas universais, por Ariano tão profundamente
>> valorizadas, antes de usarem os engenhos das misturas alquímicas e
>> invenções pós-modernas, para fazerem as suas artes brasileiríssimas.
>> Toda vanguarda, ao negar uma pretensa tradição, tenta dela se
>> apoderar para melhor destruí-la e, ao fazer isto, sela o seu destino:
>> bebe "o veneno" da sua própria destruição enquanto "vanguarda", pois
>> condenada está a também virar uma tradição, no ciclo sem fim das
>> dinâmicas culturais e das dialéticas históricas. É por isto que a
>> modernidade e as vanguardas do século XX ficaram tão antigas e têm um
>> sabor de tradição. São tão inofensivas e saborosas como uma tapioca
>> com queijo, servida com café quente, ao entardecer.
>> 
>> Ariano se foi, levado pela morte Caetana e as "asas rubras de dragões
>> antigos", feito um guerreiro do reisado, que subiu pro céu e o seu
>> pai - o seu herói, o seu Rei - que cedo lhe roubaram, com sua mãe, em
>> companhia de São Pedro, está agora a recebê-lo na porta, para fazer
>> de novo pulsar juntos dois corações. Encantou-se feito Dom Sebastião.
>> Com certeza, se existe mesmo este céu do qual fala a tradição
>> bíblica, deve ser como o céu imaginado pelo poeta e cordelista José
Pacheco - um céu que é uma representação do sertão, com casa de
varanda, pote de barro, terreiro para dança de guerreiros e congadas,
vaquejada e cantadores...  Não tenho dúvida de que, neste momento,
Ariano já deve estar neste céu, arrodeado de gente boa (Luiz Gonzaga,, Patativa do Assaré, Jackson do Pandeiro, Paulo Freire, Padre Cícero, Severino Pinto, Antônio Conselheiro, José de Alencar, João Ubaldo Ribeiro, Darcy Ribeiro, Padre Ibiapina, Inácio da Caatingueira,  Glauber Rocha, Jorge Amado, Dona Ciça do Bar! ro Cru, Gilberto Freire, Graciliano Ramos, Euclides da Cunha, Mestre Vitalino, Rachel de Queiroz e João do Vale, entre centenas de outros...
Gente que não acaba mais), diante da sua Santa Compadecida - que
compreende e perdoa os pequenos pecados dos homens, contando causos e dando boas gargalhas.
Acho que hoje, no céu, a lua deve estar clara e deve fazer frio, são
ão frias as noites no céu... Daí esta fogueira que arde com a luz da
arte e ilumina o mundo. Sei que a saudade dói, mas num, se avexe não, minha gente... Vez por outra, Ariano virá dar umas voltinhas pelo
sertão...
Quererá alumiar e se achegar ? as pessoas e coisas mais amadas que porali sem querer deixou... Só conseguirão vê-lo aqueles que têm na alma
os olhos abertos para a poesia... Ele virá encantado e alumioso, como
Dom Sebastião, e aparecerá, nos lençóis Maranhenses e nas dunas do
Cumbe, com seu exército alumioso formado por violeiros,  cantadores,
mamulengueiros, rabequeiros, xilógrafos, cordelistas, escritores,
brincantes de reisados, dançarinos, mascarados, artistas plásticos,
romeiros, músicos, vaqueiros e milhares de palhaços de circo feito
Chicós e Joões Grilos, anti-heróis sertanejos resgatados da Comédia
dell'arte e das brumas dos séculos, pela alma generosa do povo mestiço,que tudo reinvent!
a e alimenta.  Ele também surgirá sozinho nos corredores da casa
bonita (na rua do Chacon, no bairro de Poço de Panela, em Recife), de
mansinho, leve com uma pluma, apenas para se achegar a Dona Zélia e dizer (delicadamente em forma de saudade), no seu ouvido: - "Zélia,
meu amor, aí que saudade d'ocê".

Salve, Mestre Ariano, de todos os sertões do mundo, teu nome faz mais bonito o Brasil!

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