“ Há muito tempo sinto vergonha, por ter sido, mesmo que de longe, mesmo que de boa-fé, também eu, um assassino. Por isso, decidi recusar tudo aquilo que, de perto ou de longe, por boas ou más razões, faça morrer ou justifique que se faça morrer. “
ALBERT CAMUS
“AFEIÇÕES E DESENCANTOS “
1 – Por que o cinema e não as artes-plásticas, o jornalismo
ou qualquer outro ofício?
r – Talvez o cinema por poder trabalhar com o imaginário sem
a obrigação de estar fazendo a coisa certa. Você pode criar uma história nova
tanto para o presente, como para o passado, ou mesmo para o futuro. O cinema se
não é livre, criativo e poético vira televisão, clipe ou até mesmo publicidade.
E aí é lixo, né? Infelizmente, lixo no sentido da criação. E no baixo uso do
lixo quem defende e até goza, são os Partidos políticos, a TV e as religiões de
resultado que já estão nas telinhas. É o horror virando mercadoria para
consumo. Lamentavelmente temos que sobreviver e não posso condenar aquele que
trabalha na publicidade ou na TV. O que eu me permito criticar é o sujeito
fazer um cinema publicitário ou televisivo. Cinema nunca foi uma coisa, nem
outra.
2 – O Cinema Novo ajudou ou atrapalhou a geração de vocês?
R – No início com “Deus e o Diabo”, “Vidas Secas”, “Os
Fuzis”, “Terra em Transe”, “Matraga”, “O Bravo Guerreiro”, “Opinião Pública”,
“O Padre e a Moça”... nos foi fundamental e referencial como abordagem e
postura. Já o seu fim me parece assustador pois virou autoritário, patronal,
burocrático e de direita defendendo até a polícia, o bufão do governador e até
o prefeitinho sem carisma. Mas...como não defender ainda hoje Nelson Pereira,
Glauber Rocha, Joaquim Pedro, Ruy Guerra, Leon? Ainda vivos com talento só
resta o Nelson, o Ruy e o Capovilla. O resto a palavra já está dizendo. Pena
pois poderia ter sido diferente pois inicialmente pareciam ser mais humanos e
criativos. Viraram velhas cartas dentro do baralho mofado. Múmias, né? Tô me
referindo aos poucos ainda vivos.
3 – Valèry dizia que “a arte vive de constrições e a morte de
liberdade”. O que você acha disso?
r - Eu sou obrigado a concordar. Mas seria melhor viver de
liberdade. Foi na mais ampla liberdade interna que se fez filmes como “Bang-Bang”,
“Um Filme 100% Brasileiro”, “Jardim de Guerra”, “Perdidos e Malditos”, “A
Mulher de Todos”, “A$suntina das Amérikas”... Jóias de um tempo de resistência
real ao fascismo. Nossos filmes provavam que existia censura, entre outras
coisas. Lamentavelmente o cinemão aliou-se ao poder,e o mercado e venceu. E
hoje temos talvez o pior cinema do planeta. Claro que para os eternos
baba-ovos, é a nossa Idade de Ouro. Só que fazendo m.... e apoiando as novas
“otoridades” do circo Brazil! O que se pode esperar daí? Apenas espetáculos
pobres e autoritários pois são vendidos como primorosos. Só que não se pagam na
bilheteria. “Paraísos Artificiais” se pagou? E o novelão do “Heleno”? Vive-se
na verdade um “cinema” de pilantragem! Mas talvez se descubra no Brasil, via TV
aliada a publicidade um novo ciclo: o da pilantragem!
4 – O cinema e a imagem eletrônica podem ter a mesma força?
r - O cinema é hoje a mão direita da comunicação. Já a imagem
eletrônica é uma rica possibilidade de oposição ao fascismo que volta a dominar
o mundo, e por tabela o cinema. Mas...nunca fiquei preocupado com isso. Sempre
achei que a técnica sem a história ou a poesia, só pode reproduzir a ideologia
dominante. E para ver m... eu fico em casa tentando ver a TV. E que talvez seja
uma droga muito pior que o crack ou a cocaína. Dopa sem questão alguma. Mas a
não questão é a questão fundamental da dependência. E convenhamos: toda droga
não é um instrumento bélico a serviço do capital e da ordem? E porque nunca se
fala que a TV sendo uma droga, serve ao poder e as religiões?
5 – O que mais o incomoda na constante acrobacia dos
financiamentos?
r – A burocracia e o fascismo que se esconde nela. As
comissões. Os patético Editais. A arrogância dos “podres poderes” da República.
A eterna pilantragem das verbas públicas, dadas sempre as mesmas múmias e seus
filhotes, desde 64... Ou seja, nunca muda nada. Mudar para quê, né? Não acham
as múmias que o nosso cinema vive numa Idade de Ouro? Mas fazendo o quê?
Curiosamente todos os filmes se parecem, saído da fornalha da Globo. E existe
algo mais nocivo e hipócrita que a Globo no cinema? Tudo e todos reflexos da
pilantragem patronal. Lixo, né?
6 – Já mais velho, você sente saudades de algum outro momento
do passado?
r – Eu nunca gostei de viver de passados. Reconheço o seu
valor, mas fui adiante com mais de 40 trabalhos. Queiramos ou não, o progresso
nos impulsiona para o futuro. A questão é: como será ele? Como se representará
“Antígona” ou mesmo Strindberg? Como será vivido o humano no ano 3001? Terá
tido fim a pobreza das nações? E as guerras terão terminado? Mas... sinto falta
sim dos velhos amigos que me foram fundamentais como Mario Carneiro, Echio
Reis, Nelson Dantas, Renato Coutinho, Joaquim Pedro, Novais Teixeira,
Glauber... Sinto muito pelos que se foram. Os melhores, né? Vive-se hoje, aqui
nessa falsa Idade de Ouro, um vazio assustador. Uma multiplicidade de fascismos
incivilizados e bárbaro. Tenho nojo de ver essas múmias nos piores jornais do
planeta, ou na TV. Estão lá bostejando as suas arrogâncias. Na verdade porcos
no chiqueiro das elites.
7 – Você foi muito criticado por pessoas próximas, por ter
defendido filmes de alguns cineastas odiados pelos mais jovens. Como você
justificaria isso da tua parte?
r - Errei, né? Errei em ter defendido dois filmes do Cacá, e
que vistos algum tempo depois, meus críticos estavam com razão: eram filmes
fracos! E de certo modo, sempre foi um cineasta menor. Até escrevia direitinho,
mas filmava mal. Mas...quis ser cineasta e sempre teve cobertura na burocracia
e nas verbas palacianas. Mas nem por isso tornou o seu cinema referencial como
Glauber, Rogério ou Joaquim Pedro. Já o Jabor tem pelo menos três filmes que eu
gosto muito: “O Circo”, “Opinião Pública” e o “Tudo Bem”. Mesmo a sua “Suprema
Felicidade” que é não é um grande filme, tem lá suas pequenas qualidades. Não
me arrependo de tê-lo elogiado, e não é um Cacá, né? E eu não misturo o Jabor
cineasta com o jornalista de um jornal conservador, ou reacionário como
queiram. Ele é bem melhor que o jornal em que escreve. Mas mesmo como
jornalista quando escreve sobre cinema é bom. Já quando escreve sobre política,
deixa lá os seus furos.
8 – O que você acha de ser colocado pelos críticos Jairo
Ferreira e Fernão Ramos, como sendo um cineasta do Cinema de Invenção?
r - Me creia, eu nunca me preocupei com isso e sempre fui
contra clubinho fechado. Glauber em Paris ficava puto comigo por eu não me
achar fazendo parte de grupelho algum. Essa divisão foi a maior imbecilidade de
todos os tempos pois só fortaleceu o mercado, e deu no que deu. E claro que
somos todos responsáveis! Na verdade não se estava lutando por um cinema mais
ousado e criativo, e sim pelo poder. É curioso mas a moda pegou e agora tem um
novo clubinho do Cinema de Garagem. Qualquer dia vamos ter o Cinema dos
Cemitérios! E os coveiros estão a cata de novos defuntos para que possam
justificar os seus salários.
9 – Que filmes e cineastas te marcaram mais?
r - Filmes são muitos e não poderia apontar só: “Persona”, “O
Ano Passado Em Marienbad”, “Mãe e Filho”, “O Leopardo”, “Pierrot Le Fou” ou
“Terra em Transe” pois o número é muito maior. Fico então com os seguintes
cineastas, lá fora: Welles, Godard, Bergman, Visconti, Kubrick, Resnais, Losey,
Wajda, Sukurov, Straub, Bertolucci, Rivette, Nicholas Ray, Antonioni,
Rossellini, Pasolini, Tarkowski.... Aqui dentro: Glauber, Santeiro, Joaquim
Pedro, Tonacci, Joel Yamaji, Ana Carolina, Coutinho e a garotada furiosa que
está chegando e que são originalíssimos. Poderia citar o Abelardo de Carvalho,
Leonardo Esteves, Marcelo Ikeda, Ruan Posada, Joel Pizzini, Arthur Frazão,
Isabel Lacerda, Fabio Carvalho... Claro que me refiro as pérolas da resistência
ao nosso eterno fascismo.
10- Por que você ultimamente resolveu falar de você, e se
apresentar como personagem e até ator?
r – Eu não sou, nem nunca fui ator. Quanto ao personagem, é
interessante você se observar no Outro, sendo uma imagem sem representação
alguma. Me observo um pouco como se estivesse diante do analista. E é curioso
se observar sem nenhum tipo de máscara ou representação. E o que fiz foi uma
espécie de cine-diário. Aos 70 posso fazer o que bem entendo. E não tô fazendo
com dinheiro público, e sim com o apoio de doces amigos que me acompanham desde
a juventude. E não me arrependo de nenhum filme feito. Talvez se tivesse um
pouco de dinheiro poderia os ter feito melhor. Mas como nunca fui baba-ovo da
burocracia e do poder, fiz o que pude do nada. E sempre com muito cuidado para
não virar múmia para o programa do Amaury Jr ou espetáculo para a TV.
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