Paris Adormecida - josesette - 1990
A Etnografia Bricolage Gilbertiana.
Não sou afeto ao gênero documentário, principalmente quando o tema tratado não me interessa. Mas muitas vezes bons personagens são massacrados por uma linguagem didática recheada de uma série de plano e contra-plano, carrinhos e gruas, numa edição cheia de bossinhas, moderninha, típico de cinematógrafo publicitário, que não sabe do assunto que quer documentar e sai pelo arabesco eliminando a figura, arranhado a retina, cansando o olhar e a alma do atento observador da obra criada. Nesses filmes são tantas as entrevistas sobre um mesmo e desinteressante personagem, dirigidas por entrevistadores presunçosos que falam, falam, e não dizem nada, que raramente tenho assistido documentários, seja na TV ou no cinema.
Gosto do filme-documento, daquele que ultrapassa o limite entre a realidade e o sonho do que se quer retratar. Um cinema que mergulha nas águas profundas do inconsciente do ser, seja quem for, pode até transformar um assunto desinteressante em um grande filme.
Assim fiquei preocupado ao receber o presente do cineasta Ricardo Miranda, velho conhecido meu da época da moviola - editamos juntos dois documentários no mesmo estúdio em Copacabana. Ele trabalhava de manhã e eu à tarde. Ele com o Glauber Rocha e eu com Rogério Sganzerla. Ele montava o filme “Idade da Terra” e eu o filme “Um Sorriso Por Favor”. Cada um depois seguiu o seu caminho e só agora estamos nos tornando amigos. Ele foi ao meu aniversário e me entregou, depois de um afetuoso abraço, dois DVDs, com três dos seus filmes, três documentários: “Gilbertiana”, “A Etnografia da Amizade” e “Bricolage”. Assisti aos três filmes de um fôlego só e as minhas preocupações iniciais quanto ao gênero documentário, logo na primeira sequência do primeiro filme que assisti se desfizeram pela qualidade do que me foi apresentado. Assisti primeiro o que eu tinha menos informação a respeito – BRICOLAGE – Não sabia que era sobre o cineasta Luiz Rosemberg e fiquei surpreso quando descobri o nosso filósofo das imagens, com sua cabeça repleta de inteligência e sensibilidade, ornada com óculos e bigode a maneira de Nietzsche, ao lado do jovem Paulo César Saraceni. Os dois alegres nas janelinhas do tempo que divide o DVD.
Bricolage se apresenta, logo no primeiro plano, com a alegoria humana da rosa dos ventos em tom pastel (belíssimo plano do filme do Rosemberg) que vai se fundindo com outros dois elementos para formar, na tríade dos contrários, a dinâmica existencial do personagem: Os homens; As letras; As mãos de unhas vermelhas. O intelectual humanista (ou seria comunista), artesão das almas sensíveis, simulacro feminino do artista atormentado. Corte para Rosemberg com a lente no seu olho direito onde se podem ver imagens de um filme que nos lembra Vertov, o homem e a câmera, nos olhos estão a sua ferramenta de trabalho. Ricardo Miranda me surpreendeu com seu filme-documento, com sua poesia gráfica e sua sensibilidade para retirar do artista retratado o que de melhor ele tem a oferecer naquele momento tão difícil de registro de imagem e som. O começo, paradoxal, o artista que ama e nega o cinema em um mesmo plano, nos mostra de cara a bela edição-direção que teremos pela frente. Trabalhando, como não podia deixar de ser, com imagens dos inauditos e extraordinários filmes do Rosemberg, que muitos poucos conhecem, mesclando o som com o pensamento expresso pelo artista em voz feminina, sem nenhuma cronologia datada, mas guiado pela emoção, Ricardo vai criando em seu filme um mosaico repleto de peças que vão se encaixando, uma a uma, plano a plano, sequência por sequência, numa grande colagem de ideogramas coletados com sabedoria em toda uma existência do grande artista que também no filme nos mostra ser um exímio compositor de material impresso, criando obras de colagem de grande sentido dramático e de indubitável beleza. A pequena sequência do quadro com o Rosemberg estático ao lado, em um museu, contemplando o movimento do rosto de uma mulher falando sobre o esquecimento, o horror e as coisas do cotidiano, é de uma beleza comovente. Está inversão plástica que resulta em uma bela colagem cinematografia é repleta de símbolos e de mistérios. E assim, repleto, contagiante, segue o documento cinematográfico de Ricardo Miranda sobre esse singular artista, repleto de poesia até o fim, quando ele, solitário, anda orgulhoso, além do seu tempo, pelo universo imaginário criado quando criança na cama de um hospital, fecha dialeticamente suas memórias rasgando para sempre o papel onde está escrito que a sétima arte também é negócio. O que foi negado no começo é afirmado no fim. “As revoluções não temem a arte. A arte pela revolução e a revolução pela libertação da arte”. O filme me fez ficar mais orgulhoso do meu amigo Rosemberg, agora que o conheço melhor. Bricolage é único e definitivo como visão particular de um artista sobre outro, pois foi composto pelo sofrimento criador, que quando é grandioso é cruel, mas sem perder o sentido da ternura e da cordialidade que fazem parte do ser grande homem e artista.
A Etnologia da Amizade, foi o segundo filme que assisti, mais realista, mais retratista, mais distante e frio, quando se caracteriza na linguagem documental das entrevistas. Paulo César Saraceni é outro grande artista que não poderia ser esquecido pela história do cinema brasileiro. O filme mostra isso muito bem, com toda a riqueza de imagens dos seus filmes e dos arquivos pesquisados, sem se perder no lugar comum do documentário. A abertura de qualquer espetáculo tem que ser, mesmo no detalhe do fio da trama, a síntese do que se quer dizer com o todo. O filme apresenta o cineasta como o militante solitário dos sem telas, apoiando o movimento dos sem terra, no alto de um caminhão de comício, em algum lugar deste perdido país. A cena é realista mas nos parece uma encenação de algum outro filme do Saraceni. Ficamos sabendo de cara que na visão do realizador o protagonista documentado é um rebelde, um infortunado, um artista que não tem para quem mostrar a sua obra. Um cineasta sem tela. A partir dessa sequência o filme vai se estruturando e o bom observador vai notar, no desenrolar desse documento, com o olhar mais crítico, provocante, toda a história de um carioca conquistador, romântico, anarquista das imagens. Os jovens saberão, através deste documento, o que é preciso fazer para ser um grande artista do cinema brasileiro. Particularmente fiquei encantado em rever cenas antológicas dos seus geniais filmes, assisti a todos, e posso dizer que ele é a expressão mais brasileira do nosso cinema. Quem não se delicia com as histórias picantes dos seus encontros com Lúcio Cardoso, Otávio Farias? Só isso já faz valer toda essa vida retratada com amor e amizade por Ricardo Miranda neste filme-documento de valor.
Viva! Paulo César Saraceni!
Gilbertianas, longa metragem em Pernambuco, na casa grande e na senzala, nos sobrados e nos mucambos, na interpretação do Brasil, em toda arte que é a ciência dos trópicos, nos tornando heróis e vilões, retratando um tema complexo que ainda hoje mostra fôlego para um novo e excelente filme, talvez o primeiro a mergulhar na alma nordestina de Gilberto Freyre, um autor consagrado, polêmico, grande homem das letras do Brasil. O filme passa rápido aos olhos do espectador interessado. Ricardo Miranda, através de uma edição apurada, com sensibilidade e destreza, consegue nos mostrar o homem muito além da sua obra, já exaustivamente estudada e documentada. Isso é bom!
Os três filmes têm boas tiradas, descobrimentos e invenções, poesia e prosa, têm estilo próprio e conhecimento, sem firula posso dizer que são filmes que me trouxeram conhecimento e prazer em assisti-los. Parabéns Ricardo Miranda, o cinema gosta de você.
A Etnografia Bricolage Gilbertiana.
Não sou afeto ao gênero documentário, principalmente quando o tema tratado não me interessa. Mas muitas vezes bons personagens são massacrados por uma linguagem didática recheada de uma série de plano e contra-plano, carrinhos e gruas, numa edição cheia de bossinhas, moderninha, típico de cinematógrafo publicitário, que não sabe do assunto que quer documentar e sai pelo arabesco eliminando a figura, arranhado a retina, cansando o olhar e a alma do atento observador da obra criada. Nesses filmes são tantas as entrevistas sobre um mesmo e desinteressante personagem, dirigidas por entrevistadores presunçosos que falam, falam, e não dizem nada, que raramente tenho assistido documentários, seja na TV ou no cinema.
Gosto do filme-documento, daquele que ultrapassa o limite entre a realidade e o sonho do que se quer retratar. Um cinema que mergulha nas águas profundas do inconsciente do ser, seja quem for, pode até transformar um assunto desinteressante em um grande filme.
Assim fiquei preocupado ao receber o presente do cineasta Ricardo Miranda, velho conhecido meu da época da moviola - editamos juntos dois documentários no mesmo estúdio em Copacabana. Ele trabalhava de manhã e eu à tarde. Ele com o Glauber Rocha e eu com Rogério Sganzerla. Ele montava o filme “Idade da Terra” e eu o filme “Um Sorriso Por Favor”. Cada um depois seguiu o seu caminho e só agora estamos nos tornando amigos. Ele foi ao meu aniversário e me entregou, depois de um afetuoso abraço, dois DVDs, com três dos seus filmes, três documentários: “Gilbertiana”, “A Etnografia da Amizade” e “Bricolage”. Assisti aos três filmes de um fôlego só e as minhas preocupações iniciais quanto ao gênero documentário, logo na primeira sequência do primeiro filme que assisti se desfizeram pela qualidade do que me foi apresentado. Assisti primeiro o que eu tinha menos informação a respeito – BRICOLAGE – Não sabia que era sobre o cineasta Luiz Rosemberg e fiquei surpreso quando descobri o nosso filósofo das imagens, com sua cabeça repleta de inteligência e sensibilidade, ornada com óculos e bigode a maneira de Nietzsche, ao lado do jovem Paulo César Saraceni. Os dois alegres nas janelinhas do tempo que divide o DVD.
Bricolage se apresenta, logo no primeiro plano, com a alegoria humana da rosa dos ventos em tom pastel (belíssimo plano do filme do Rosemberg) que vai se fundindo com outros dois elementos para formar, na tríade dos contrários, a dinâmica existencial do personagem: Os homens; As letras; As mãos de unhas vermelhas. O intelectual humanista (ou seria comunista), artesão das almas sensíveis, simulacro feminino do artista atormentado. Corte para Rosemberg com a lente no seu olho direito onde se podem ver imagens de um filme que nos lembra Vertov, o homem e a câmera, nos olhos estão a sua ferramenta de trabalho. Ricardo Miranda me surpreendeu com seu filme-documento, com sua poesia gráfica e sua sensibilidade para retirar do artista retratado o que de melhor ele tem a oferecer naquele momento tão difícil de registro de imagem e som. O começo, paradoxal, o artista que ama e nega o cinema em um mesmo plano, nos mostra de cara a bela edição-direção que teremos pela frente. Trabalhando, como não podia deixar de ser, com imagens dos inauditos e extraordinários filmes do Rosemberg, que muitos poucos conhecem, mesclando o som com o pensamento expresso pelo artista em voz feminina, sem nenhuma cronologia datada, mas guiado pela emoção, Ricardo vai criando em seu filme um mosaico repleto de peças que vão se encaixando, uma a uma, plano a plano, sequência por sequência, numa grande colagem de ideogramas coletados com sabedoria em toda uma existência do grande artista que também no filme nos mostra ser um exímio compositor de material impresso, criando obras de colagem de grande sentido dramático e de indubitável beleza. A pequena sequência do quadro com o Rosemberg estático ao lado, em um museu, contemplando o movimento do rosto de uma mulher falando sobre o esquecimento, o horror e as coisas do cotidiano, é de uma beleza comovente. Está inversão plástica que resulta em uma bela colagem cinematografia é repleta de símbolos e de mistérios. E assim, repleto, contagiante, segue o documento cinematográfico de Ricardo Miranda sobre esse singular artista, repleto de poesia até o fim, quando ele, solitário, anda orgulhoso, além do seu tempo, pelo universo imaginário criado quando criança na cama de um hospital, fecha dialeticamente suas memórias rasgando para sempre o papel onde está escrito que a sétima arte também é negócio. O que foi negado no começo é afirmado no fim. “As revoluções não temem a arte. A arte pela revolução e a revolução pela libertação da arte”. O filme me fez ficar mais orgulhoso do meu amigo Rosemberg, agora que o conheço melhor. Bricolage é único e definitivo como visão particular de um artista sobre outro, pois foi composto pelo sofrimento criador, que quando é grandioso é cruel, mas sem perder o sentido da ternura e da cordialidade que fazem parte do ser grande homem e artista.
A Etnologia da Amizade, foi o segundo filme que assisti, mais realista, mais retratista, mais distante e frio, quando se caracteriza na linguagem documental das entrevistas. Paulo César Saraceni é outro grande artista que não poderia ser esquecido pela história do cinema brasileiro. O filme mostra isso muito bem, com toda a riqueza de imagens dos seus filmes e dos arquivos pesquisados, sem se perder no lugar comum do documentário. A abertura de qualquer espetáculo tem que ser, mesmo no detalhe do fio da trama, a síntese do que se quer dizer com o todo. O filme apresenta o cineasta como o militante solitário dos sem telas, apoiando o movimento dos sem terra, no alto de um caminhão de comício, em algum lugar deste perdido país. A cena é realista mas nos parece uma encenação de algum outro filme do Saraceni. Ficamos sabendo de cara que na visão do realizador o protagonista documentado é um rebelde, um infortunado, um artista que não tem para quem mostrar a sua obra. Um cineasta sem tela. A partir dessa sequência o filme vai se estruturando e o bom observador vai notar, no desenrolar desse documento, com o olhar mais crítico, provocante, toda a história de um carioca conquistador, romântico, anarquista das imagens. Os jovens saberão, através deste documento, o que é preciso fazer para ser um grande artista do cinema brasileiro. Particularmente fiquei encantado em rever cenas antológicas dos seus geniais filmes, assisti a todos, e posso dizer que ele é a expressão mais brasileira do nosso cinema. Quem não se delicia com as histórias picantes dos seus encontros com Lúcio Cardoso, Otávio Farias? Só isso já faz valer toda essa vida retratada com amor e amizade por Ricardo Miranda neste filme-documento de valor.
Viva! Paulo César Saraceni!
Gilbertianas, longa metragem em Pernambuco, na casa grande e na senzala, nos sobrados e nos mucambos, na interpretação do Brasil, em toda arte que é a ciência dos trópicos, nos tornando heróis e vilões, retratando um tema complexo que ainda hoje mostra fôlego para um novo e excelente filme, talvez o primeiro a mergulhar na alma nordestina de Gilberto Freyre, um autor consagrado, polêmico, grande homem das letras do Brasil. O filme passa rápido aos olhos do espectador interessado. Ricardo Miranda, através de uma edição apurada, com sensibilidade e destreza, consegue nos mostrar o homem muito além da sua obra, já exaustivamente estudada e documentada. Isso é bom!
Os três filmes têm boas tiradas, descobrimentos e invenções, poesia e prosa, têm estilo próprio e conhecimento, sem firula posso dizer que são filmes que me trouxeram conhecimento e prazer em assisti-los. Parabéns Ricardo Miranda, o cinema gosta de você.
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