Do
trabalho à corrupção como método
Por Eliana Cardoso.
"Eu sou eu e minha circunstância e, se não a
salvo, não me salvo", escreveu Ortega y Gasset em "Meditações do
Quixote" (Livro Ibero Americano). Não me condene por repetir a citação tão
conhecida, meu querido. A maioria das pessoas se limita à primeira parte da
sentença, seguida da interpretação de que as circunstâncias compõem nossa moral
e situam nossa liberdade. Minha intenção é lembrar que Ortega y Gasset, além de
filósofo, também atuou como jornalista e ativista político e não podemos nos
desfazer da segunda parte da sentença.
A reflexão não se limita às primeiras palavras, que
estabelecem o livre-arbítrio como vítima de condicionamentos culturais e de
traços hereditários. A segunda parte da frase importa. A minha salvação depende
do meu engajamento na melhora do mundo que me cerca. A citação se encaixa bem
ao momento atual com os brasileiros na rua contra a corrupção.
Como este espaço pertence aos livros, vale
investigar como neles se retratam o indivíduo e suas circunstâncias. Franco
Moretti explora a evolução da figura do burguês na literatura desde a época
medieval numa obra fascinante: "O Burguês: Entre a História e a
Literatura" (tradução de Alexandre Morales, editora Três Estrelas).
Moretti adverte o leitor sobre sua perspectiva histórica e deixa claro que não
pretende analisar o presente. Mesmo assim, meu querido, a narrativa de Moretti
vale cada linha.
Historiador literário, ocupado com o burguês
refletido pelo prisma da literatura, Moretti pergunta, por exemplo, como a
palavra "conforto" delineia os contornos do consumo. Ou como o ritmo
dos romances se ajusta a mudanças nas regularidades da vida em sociedade. E
assim por diante.
Bom começar pelo entendimento do que significa o
termo "burguês". A palavra "bourgeois" surgiu na França no
século XI para designar o habitante da cidade medieval, homem livre, isento da
jurisdição dos feudos. No começo do século XVII, a acepção jurídica do termo
ganhou dimensão econômica, valendo para aquele que, não pertencendo à nobreza
nem ao clero, possuísse recursos próprios. A burguesia consistia então, na sua
maior parte, de pequenos empreendedores autônomos, como artesãos e donos de
hospedarias. Cem anos depois agregava empregados de colarinho-branco e servidores
públicos. O termo francês foi traduzido para o italiano, o espanhol, o
português e o alemão. O inglês preferiu falar de uma "classe média" à
qual pertencia quem não era nobre nem servo.
Embora "classe média" e
"burguesia" denotassem a mesma realidade social, os dois termos
criavam diferentes implicações. Estando "no meio", a classe média não
podia se responsabilizar pelo estado de coisas. As "baixa",
"média" e "alta" classes médias pareciam exibir (em contraste
com a mobilidade mais difícil entre o proletariado, a burguesia e a nobreza)
maior mobilidade entre seus estratos, quando no século XIX a figura da
burguesia proprietária e instruída passou a ocupar mais espaço em toda Europa
ocidental.
O livro de Moretti explora exemplos da figura do
burguês em diferentes períodos. O primeiro capítulo, "Um senhor que
trabalha", faz uma leitura original de "Robinson Crusoé" (Daniel
Defoe, tradução de Sérgio Flaksman, Penguin Companhia). Aqui se vê o burguês
antes da tomada do poder, homem sozinho numa ilha, desligado do resto da
humanidade, que começa a encontrar as palavras para expressar o padrão de sua
existência: aventura, empreendimento, fortuna. Quando Robinson Crusoé, em sua
segunda viagem, conduz a bordo uma pequena "adventure", o termo não denota
um acontecimento, mas uma forma de capital: a aventura como investimento de
risco. E, ao longo da aventura, surgem as palavras-chaves: "útil",
"eficiente", "confortável".
No capítulo seguinte, "O século sério", a
ilha já se transformara em meio continente. O burguês expandira sua influência
pela Europa ocidental. Estamos diante do grande momento da literatura burguesa
com invenções narrativas, consistência estilística e inúmeras obras-primas.
E vamos em frente, meu querido. O burguês perde o
brilho no período vitoriano, quando sua hegemonia está em causa. Aberta,
despudorada e direta, a burguesia realizara obras miraculosas, inteiramente
diferentes das pirâmides egípcias ou das catedrais góticas, aglomerando a
população e centralizando os meios de produção, dizia o "Manifesto
Comunista". Mas o burguês, tendo perdido a clareza de sua visão e
conquistado o poder na esfera econômica, não se firmou como presença política
nem propôs uma cultura geral. Na literatura, o exemplo é o protagonista do
best-seller de Dinah Craig, "John Halifaz, Gentleman". As
palavras-chaves passam a ser "influente" e "franco" (no
lugar de "sério").
O sol começa a se pôr no século burguês e chegamos a
suas metamorfoses. Moretti compara episódios de dois romances que ilustram como
o burguês remunera o desempenho de alguém pelo menor valor possível. O
livreiro, no romance "Ilusões Perdidas", de Balzac, procede à
avaliação do manuscrito que o herói lhe entregara. Constatando que o autor vive
de pão e leite numa mansarda, reduz o preço que vai oferecer pelo manuscrito.
Mas Brás, no romance de Machado de Assis "Memórias Póstumas de Brás
Cubas" - refletindo sobre qual moeda dar ao almocreve que conseguira deter
sua mula desembestada -, se deixa levar pela arbitrariedade pessoal, ao contrário
do livreiro de Balzac.
Machado ataca o princípio de realidade burguês
fazendo a crônica das derrotas burguesas e apresentando a desarmonia entre os
valores burgueses como relativamente inofensiva em comparação com o romance
russo, que leva as ideias ocidentais às suas últimas consequências. Turguêniev,
em "Pais e Filhos" (tradução de Rubens Figueiredo, Cosac Naify), muda
o sentido da palavra "útil". Ela perde o sentido concreto e
pragmático que tinha em "Robinson Crusoé" e assume o sentido
utilitarista da teoria econômica. O protagonista, Bazárov afirma que "um
químico honesto é vinte vezes mais útil do que qualquer poeta" e
transforma a ciência alemã em niilismo implacável.
Fundamentando do homicídio em "Crime e
Castigo" (Dostoiévski, tradução de Paulo Bezerra, Editora 34) - no qual
Raskólnikov pesa "de um lado uma velha estúpida, imbecil, inútil, doente
[...]. Do outro lado energias jovens, frescas" - está o utilitarismo.
Raskólnikov conclui que vale a pena trocar uma vida por mil vidas salvas da miséria
e da ruína. A aritmética de Bentham fundamenta o crime mais famoso da
literatura.
Nos anos subsequentes, o ciclo realista de Henrik
Ibsen oferece uma radical autocrítica da burguesia. Desfeita a camuflagem de
classe média, a burguesia já não se encontra à sombra de outra classe acima
dela. Ela é agora a classe dominante e as coisas estão como estão porque ela as
deixou assim.
Nesse mundo, a competição entre os burgueses se
torna implacável, desleal, sinistra, mas raramente ilícita. Nessa área cinzenta
as coisas surgem graças a oportunidades imprevistas como um incêndio fortuito
ou a perda de documentos pelo adversário. Maquinações, manipulações, moralidade
flexível e destruição criativa definem a área cinzenta.
A honestidade, virtude burguesa, passa a ser retrospectiva:
o homem honesto não fez nada errado no passado. Mas como ser honesto no futuro?
O que é uma previsão honesta da taxa de câmbio? Moretti não se ocupa da figura
do burguês na literatura do fim do século XX aos dias de hoje. Falta a
discussão do período em que evoluímos da área cinzenta para a corrupção
galopante, com bancos suíços lavando qualquer tipo de dinheiro, fornecendo ao
depositante contas secretas para fraudar impostos, ajudando empresários e
políticos a assaltar os cofres públicos e os contribuintes. Assim se completa a
trágica deformação que a megalomania impõe à honestidade burguesa. Se você quer
ver a superação desse desvio, meu querido, não basta mudar de presidente. Terá
de batalhar pela melhora de nossas instituições.
Eliana Cardoso, economista e escritora.
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