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quarta-feira, 25 de março de 2015

REFLEXÃO LITERÁRIA


Do trabalho à corrupção como método
Por Eliana Cardoso.

"Eu sou eu e minha circunstância e, se não a salvo, não me salvo", escreveu Ortega y Gasset em "Meditações do Quixote" (Livro Ibero Americano). Não me condene por repetir a citação tão conhecida, meu querido. A maioria das pessoas se limita à primeira parte da sentença, seguida da interpretação de que as circunstâncias compõem nossa moral e situam nossa liberdade. Minha intenção é lembrar que Ortega y Gasset, além de filósofo, também atuou como jornalista e ativista político e não podemos nos desfazer da segunda parte da sentença.

A reflexão não se limita às primeiras palavras, que estabelecem o livre-arbítrio como vítima de condicionamentos culturais e de traços hereditários. A segunda parte da frase importa. A minha salvação depende do meu engajamento na melhora do mundo que me cerca. A citação se encaixa bem ao momento atual com os brasileiros na rua contra a corrupção.

Como este espaço pertence aos livros, vale investigar como neles se retratam o indivíduo e suas circunstâncias. Franco Moretti explora a evolução da figura do burguês na literatura desde a época medieval numa obra fascinante: "O Burguês: Entre a História e a Literatura" (tradução de Alexandre Morales, editora Três Estrelas). Moretti adverte o leitor sobre sua perspectiva histórica e deixa claro que não pretende analisar o presente. Mesmo assim, meu querido, a narrativa de Moretti vale cada linha.

Historiador literário, ocupado com o burguês refletido pelo prisma da literatura, Moretti pergunta, por exemplo, como a palavra "conforto" delineia os contornos do consumo. Ou como o ritmo dos romances se ajusta a mudanças nas regularidades da vida em sociedade. E assim por diante.

Bom começar pelo entendimento do que significa o termo "burguês". A palavra "bourgeois" surgiu na França no século XI para designar o habitante da cidade medieval, homem livre, isento da jurisdição dos feudos. No começo do século XVII, a acepção jurídica do termo ganhou dimensão econômica, valendo para aquele que, não pertencendo à nobreza nem ao clero, possuísse recursos próprios. A burguesia consistia então, na sua maior parte, de pequenos empreendedores autônomos, como artesãos e donos de hospedarias. Cem anos depois agregava empregados de colarinho-branco e servidores públicos. O termo francês foi traduzido para o italiano, o espanhol, o português e o alemão. O inglês preferiu falar de uma "classe média" à qual pertencia quem não era nobre nem servo.

Embora "classe média" e "burguesia" denotassem a mesma realidade social, os dois termos criavam diferentes implicações. Estando "no meio", a classe média não podia se responsabilizar pelo estado de coisas. As "baixa", "média" e "alta" classes médias pareciam exibir (em contraste com a mobilidade mais difícil entre o proletariado, a burguesia e a nobreza) maior mobilidade entre seus estratos, quando no século XIX a figura da burguesia proprietária e instruída passou a ocupar mais espaço em toda Europa ocidental.

O livro de Moretti explora exemplos da figura do burguês em diferentes períodos. O primeiro capítulo, "Um senhor que trabalha", faz uma leitura original de "Robinson Crusoé" (Daniel Defoe, tradução de Sérgio Flaksman, Penguin Companhia). Aqui se vê o burguês antes da tomada do poder, homem sozinho numa ilha, desligado do resto da humanidade, que começa a encontrar as palavras para expressar o padrão de sua existência: aventura, empreendimento, fortuna. Quando Robinson Crusoé, em sua segunda viagem, conduz a bordo uma pequena "adventure", o termo não denota um acontecimento, mas uma forma de capital: a aventura como investimento de risco. E, ao longo da aventura, surgem as palavras-chaves: "útil", "eficiente", "confortável".

No capítulo seguinte, "O século sério", a ilha já se transformara em meio continente. O burguês expandira sua influência pela Europa ocidental. Estamos diante do grande momento da literatura burguesa com invenções narrativas, consistência estilística e inúmeras obras-primas.

E vamos em frente, meu querido. O burguês perde o brilho no período vitoriano, quando sua hegemonia está em causa. Aberta, despudorada e direta, a burguesia realizara obras miraculosas, inteiramente diferentes das pirâmides egípcias ou das catedrais góticas, aglomerando a população e centralizando os meios de produção, dizia o "Manifesto Comunista". Mas o burguês, tendo perdido a clareza de sua visão e conquistado o poder na esfera econômica, não se firmou como presença política nem propôs uma cultura geral. Na literatura, o exemplo é o protagonista do best-seller de Dinah Craig, "John Halifaz, Gentleman". As palavras-chaves passam a ser "influente" e "franco" (no lugar de "sério").

O sol começa a se pôr no século burguês e chegamos a suas metamorfoses. Moretti compara episódios de dois romances que ilustram como o burguês remunera o desempenho de alguém pelo menor valor possível. O livreiro, no romance "Ilusões Perdidas", de Balzac, procede à avaliação do manuscrito que o herói lhe entregara. Constatando que o autor vive de pão e leite numa mansarda, reduz o preço que vai oferecer pelo manuscrito. Mas Brás, no romance de Machado de Assis "Memórias Póstumas de Brás Cubas" - refletindo sobre qual moeda dar ao almocreve que conseguira deter sua mula desembestada -, se deixa levar pela arbitrariedade pessoal, ao contrário do livreiro de Balzac.

Machado ataca o princípio de realidade burguês fazendo a crônica das derrotas burguesas e apresentando a desarmonia entre os valores burgueses como relativamente inofensiva em comparação com o romance russo, que leva as ideias ocidentais às suas últimas consequências. Turguêniev, em "Pais e Filhos" (tradução de Rubens Figueiredo, Cosac Naify), muda o sentido da palavra "útil". Ela perde o sentido concreto e pragmático que tinha em "Robinson Crusoé" e assume o sentido utilitarista da teoria econômica. O protagonista, Bazárov afirma que "um químico honesto é vinte vezes mais útil do que qualquer poeta" e transforma a ciência alemã em niilismo implacável.

Fundamentando do homicídio em "Crime e Castigo" (Dostoiévski, tradução de Paulo Bezerra, Editora 34) - no qual Raskólnikov pesa "de um lado uma velha estúpida, imbecil, inútil, doente [...]. Do outro lado energias jovens, frescas" - está o utilitarismo. Raskólnikov conclui que vale a pena trocar uma vida por mil vidas salvas da miséria e da ruína. A aritmética de Bentham fundamenta o crime mais famoso da literatura.

Nos anos subsequentes, o ciclo realista de Henrik Ibsen oferece uma radical autocrítica da burguesia. Desfeita a camuflagem de classe média, a burguesia já não se encontra à sombra de outra classe acima dela. Ela é agora a classe dominante e as coisas estão como estão porque ela as deixou assim.

Nesse mundo, a competição entre os burgueses se torna implacável, desleal, sinistra, mas raramente ilícita. Nessa área cinzenta as coisas surgem graças a oportunidades imprevistas como um incêndio fortuito ou a perda de documentos pelo adversário. Maquinações, manipulações, moralidade flexível e destruição criativa definem a área cinzenta.

A honestidade, virtude burguesa, passa a ser retrospectiva: o homem honesto não fez nada errado no passado. Mas como ser honesto no futuro? O que é uma previsão honesta da taxa de câmbio? Moretti não se ocupa da figura do burguês na literatura do fim do século XX aos dias de hoje. Falta a discussão do período em que evoluímos da área cinzenta para a corrupção galopante, com bancos suíços lavando qualquer tipo de dinheiro, fornecendo ao depositante contas secretas para fraudar impostos, ajudando empresários e políticos a assaltar os cofres públicos e os contribuintes. Assim se completa a trágica deformação que a megalomania impõe à honestidade burguesa. Se você quer ver a superação desse desvio, meu querido, não basta mudar de presidente. Terá de batalhar pela melhora de nossas instituições.


Eliana Cardoso, economista e escritora. 

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