O mito da ‘imprensa livre’
Chris Hedges,
Truthdig
Há mais verdade sobre o jornalismo dos EUA no filme “Kill
the Messenger” [lit. “Mate o mensageiro”. No Brasil, parece, o filme recebeu o
título de “O mensageiro” – assim se prova que, no Brasil-2014, o problema de
não haver aqui NENHUM jornalismo que preste é, sim, MUITO MAIS GRAVE que em
outras partes do mundo (NTs)], que denuncia o processo pelo qual as
imprensas-empresas dominantes desacreditaram o trabalho do jornalista
investigativo Gary Webb, do que no filme “Todos os homens do presidente”, que
celebra os feitos dos repórteres que expuseram o escândalo do [prédio]
Watergate.
As empresas-imprensa que vendem jornalismo de massa apoiam
cegamente a ideologia do capitalismo empresarial. Louvam e promovem o mito da
democracia norte-americana – mesmo quando o que se vê é o assassinato das
liberdades civis e o dinheiro substituindo o voto. Vivem a fazer mesuras e
reverências aos líderes em Wall Street, não importam a velhacaria ou o crime
que tenham cometido. (...) As empresas-imprensa que vendem jornalismo de massa
selecionam especialistas, sempre colhidos dentro dos centros de poder
conservador, para interpretar a realidade e explicar a política. Praticamente
sempre republicam press-releases, redigidos por empresas interessadas, nos
‘noticiários’. E todos os ‘buracos’ que permanecem sem completar na explicação
e interpretação menos comprometidas, são preenchidos com futricas sobre a vida
das ‘celebridades’, futrica sobre a ‘vida dos outros’, futricas em geral, e
esportes [mas, só, os esportes nos quais o dinheiro mande quase totalmente
(NTs)].
A função essencial das empresas-imprensa que vendem
jornalismo de massa é entreter [o que fazem quase sempre muito mal] ou repetir
incansavelmente, para as massas, a versão sobre o mundo, as pessoas e os
processos, que mais interesse a governos autoritários ou ao dinheiro-nu-e-cru.
A chamada ‘imprensa’ são sempre empresas comerciais
[“empresas-imprensa”] que contratam empregados dispostos, interessados e
capazes de curvar-se até o chão no serviço prestado às elites [mas, sim, também
há muitos jornalistas que são fascistas SINCEROS, os quais, sendo preciso, até
pagariam para ‘noticiar’ o que noticiam (NTs)] e, em seguida, promovem os
próprios jornalistas-empregados como ‘celebridades’. E esses
jornalistas-serviçais, que em alguns raros casos recebem salários milionários,
convivem na intimidade do poder. São, como escreve John Ralston Saul, “hedonistas
do poder”.
Quando Webb, numa série de artigos publicados em
1996 no San Jose Mercury News, denunciou a cumplicidade da CIA na operação de
contrabando de toneladas de cocaína para ser vendida nos EUA, para gerar o
dinheiro que financiaria o golpe da CIA contra os “Contra” na Nicarágua, toda a
imprensa-empresa fez, de Webb, a pior praga jornalística de todos os tempos, no
leproso do jornalismo. E ao longo das gerações muitos outros leprosos foram
inventados dentro do jornalismo das empresas-imprensa, de Ida B. Wells a I.F.
Stone e a Julian Assange.
Os ataques contra Webb recomeçaram recentemente, em
jornais como o Washington Post, desde que o filme foi lançado no início desse
mês de outubro. Os novos ataques são tentativa de autojustificação. São a tentativa
que a imprensa-empresa que vende jornalismo de massa faz, para mascarar a
colaboração que sempre houve entre aquela mesma imprensa-empresa e a elite do
poder totalitário e/ou do dinheiro-nu-e-cru.
A imprensa-empresa que vive de vender jornalismo de massa,
como o resto do establishment liberal, trabalha sempre para autoencobrir sua
real função, se autoaplicando uma demão de verniz de valente busca por verdade
e justiça. E para manter esse mito, aquelas imprensa-empresas têm de destruir a
credibilidade de jornalistas como Webb e Assange, que lançam alguma luz sobre
os feitos sinistros e criminosos que se acumulam nas entranhas do império, e
que se interessam mais pela verdade dos fatos, do que pela ‘notícia’ ou pelo
‘furo’.
Os principais veículos noticiosos dos EUA, inclusive meu
ex-patrão, o New York Times, que publicou que haveria “praticamente nenhuma
prova” do que Webb escrevera – funcionaram como cães de guarda à porta da CIA.
Pouco depois da publicação da série em 1996, o Washington Post dedicou quase
duas páginas inteiras para atacar o que Webb escrevera. O Los Angeles Times
publicou três artigos que, todos eles, atacavam Webb e o que ele escrevera. Foi
capítulo sujo, repugnante e vergonhoso, do jornalismo nos EUA. Mas de modo
algum foi o único da mesma categoria. Alexander Cockburn e Jeffrey St. Clair,
em artigo de 2004, “Como a Mídia e a CIA mataram a carreira de Gary Webb”,
detalharam toda a dinâmica daquela campanha nacional de difamação [campanha de
difamação de um jornalista profissional, por um lado; mas, por outro lado,
campanha de autodesmoralização de todo o próprio jornalismo das
imprensa-empresas (NTs)].
O jornal de Webb, depois de publicar um mea
culpa para toda a série de artigos, demitiu-o. Webb não voltaria a
conseguir trabalhar novamente como jornalista investigativo e, às vésperas de
perder a casa onde morava, suicidou-se em 2004. Sabemos, em boa parte por causa
de uma investigação no Senado, conduzida pelo então senador John Kerry, que
Webb sempre esteve certo. Mas Webb não foi perseguido por ter ou não ter razão,
porque, é claro, os bandidos que perseguiram Webb sempre souberam que ele tinha
razão. Webb foi perseguido porque expôs a CIA como bando de bandidos
traficantes de armas e de drogas. E porque expôs também toda a imprensa-empresa
que vende jornalismo de massa, quando depende de fontes oficiais de dinheiro e,
por isso, vive como serva covarde do grande dinheiro. E pagou por isso.
Se a CIA introduziu centenas de milhões de dólares em
drogas nas periferias de grandes cidades dos EUA, para fazer dinheiro para
pagar por uma guerra ilegal na Nicarágua, o que dizer da legitimidade de toda
essa gigantesca organização clandestina? O que dizer da chamada “guerra às
drogas”? O que dizer da dureza e da indiferença do governo dos EUA em relação
aos mais pobres, sobretudo os pretos mais pobres, que estão no olho do furacão
do crack epidêmico? O que dizer de operações militares clandestinas, realizadas
sem que a opinião pública saiba?
Todas essas eram, precisamente, as perguntas que as elites
do dinheiro, as elites do poder, e seus serviçais na imprensa-empresa, tinham
de silenciar a qualquer custo.
A imprensa-empresa é pasto para a mesma mediocridade, o
mesmo corporativismo, o mesmo carreirismo, que a universidade, os sindicatos,
as artes, o Partido Democrata e as instituições religiosas. Penduram-se todos
no mesmo mantra de autopromoção, que os apresenta como se fossem imparciais e
objetivos, e assim justificam a subserviência deles ao grande dinheiro e ao
poder (qualquer poder). A imprensa-empresa escreve e fala – diferente dos
acadêmicos que discursam para eles mesmos, naquele velho jargão de teólogos
medievais – para ser ouvida e compreendida pela opinião pública. E por essa
razão a imprensa-empresa é mais poderosa e mais diretamente controlada pelo
grande dinheiro ou por estados autoritários.
A imprensa-empresa tem papel chave na disseminação da
propaganda do pensamento do grande dinheiro ou de estados totalitários. Mas,
para que essa propaganda tenha eficácia, a imprensa-empresa tem de manter para
ela mesma a ficção de independência e de integridade. É indispensável que as
verdadeiras intenções, nesse caso, permaneçam ocultas.
Os veículos de comunicação de massa, como C. Wright Mills
viu bem, são ferramentas essenciais para manter o conformismo. São eles quem
dizem a leitores e telespectadores o que leitores e telespectadores são. São
eles quem dizem o que leitores e telespectadores devem aspirar a ser ou a ter.
Prometem que ajudarão leitores e telespectadores a ‘chegar lá’. Oferecem
grande variedade de técnicas, conselhos e esquemas que prometem sucesso pessoal
e profissional. Os veículos de comunicação de massa, como Wright escreveu,
existem, primeiramente, para ajudar os cidadãos a sentirem que são
bem-sucedidos e que ‘chegaram lá’, mesmo que não tenham chegado a lugar algum e
continuem muito longe de alcançar as próprias aspirações. Usam linguagem e
imagens, para manipular e formam opiniões, nunca para promover qualquer genuíno
debate ou conversa democrática ou para criar espaços públicos para ação
política livre e votação democrática livre e justa.
Todos já estamos convertidos em espectadores passivos do
poder e do grande dinheiro, por ação dos veículos de comunicação de massa, que
decidem por nós o que é verdade e o que é mentira; o que é legítimo e o que não
é. A verdade não é coisa que alguém descubra. Assim está decretado pelos
veículos da imprensa-empresa que vende jornalismo de massa.
“O divórcio entre a verdade, para um lado, e o discurso e
ação, para o outro lado – a instrumentalização da comunicação – não apenas
aumentou a incidência da propaganda; ele também corrompeu a própria ideia de
verdade, e, portanto, o sentido pelo qual assumimos nossas posições no mundo
está destruído” – escreveu James W. Carey em Communication as Culture.
A primeira e principal função dos meios de massa é
superar a enorme fenda que separa as identidades idealizadas – essas que, numa
cultura de mercadoria movem-se sempre em torno da aquisição de status,
dinheiro, fama e poder, ou, pelo menos, das correspondentes fantasias e ilusões
– e as identidades reais. E pode ser muito lucrativo inflar essas identidades
idealizadas, amplamente implantadas por anunciantes e pela cultura corporativa.
Dão-nos não o que nos faz falta real, mas o que desejamos. Os meios de massa
permitem-nos escapar para o viciante mundo do entretenimento e do espetáculo.
Acrescenta-se algum ‘noticiário’ a essa mistura [mas “a notícia em primeiro
lugar” é sempre mentira (NTs)].
Nunca mais de 15% do espaço de qualquer jornal é devotado
a notícias; todo o resto é devotado à mais fútil procura por algo que se chama
autoatualização. No rádio e na TV a proporção é ainda mais desequilibrada. “Essa”,
escreveu Mills, “é provavelmente a fórmula psicológica básica dos mass media
hoje. Mas, como fórmula, nada tem a ver com o desenvolvimento do ser humano. É
só uma fórmula de um pseudo-mundo que a imprensa-empresa inventa e mantém.”
(...)
A imprensa-empresa só atacará grupos dentro da elite do
poder, quando acontece de o poder dividir-se e de haver disputas dentro do
círculo do poder [essa, precisamente, é a situação em 2014, no Brasil. O
Partido dos Trabalhadores afinal, felizmente, instalou-se democraticamente no
poder federal; e as velhas elites que ainda mantém laços muito fortes fixados
dentro do poder federal, está indignada. A imprensa-empresa no Brasil, em 2014,
assumiu o lado e a voz da velharia tucano-udenista perdedora (NTs)].
Quando Richard Nixon, eleito pelos Republicanos, e que
usou métodos ilegais e clandestinos para calar a imprensa alternativa e para
perseguir ativistas antiguerra e líderes negros dissidentes radicais, tentou
atacar o Partido Democrata, foi quando virou alvo da imprensa-empresa. O
pecado de Nixon não foi abusar do poder. Nixon viveu anos e anos abusando do
poder contra vários grupos de dissidentes, sem que o Establishment se
incomodasse com isso. O pecado de Nixon foi que abusou do poder contra uma
facção dentro da própria elite do poder [ATENÇÃO: essa frase, com “José Dirceu”
em lugar de “Nixon”, pode resumir todo o martírio ao qual a imprensa-empresa
condenou, no Brasil, o ministro José Dirceu (NTs)].
O escândalo do edifício Watergate, mitologizado como
prova do poder de alguma imprensa-empresa valente e independente, ilustra bem o
quão pouco a empresa-imprensa consegue fazer, quando se trata de investigar os
centros do poder.
“A história foi generosa conosco e nos ofereceu um
“experimento controlado” para determinar exatamente o que realmente estava em
disputa no período Watergate, quando a posição de desafio assumida pela
imprensa-empresa, nos EUA, atingiu o pico. A resposta veio clara e precisa:
grupos poderosos têm meios para defender-se, eles mesmos, o que não é surpresa
para ninguém. Pelos parâmetros da imprensa-empresa, só há escândalo quando os
direitos da própria imprensa-empresa e sua posição de poder são ameaçados” –
como escreveram Edward S. Herman e Noam Chomsky em Manufacturing Consent: The
Political Economy of the Mass Media.” “Na direção contrária, enquanto as
ilegalidades e violações da ordem democrática ficam confinadas a grupos
marginais ou só atinjam dissidentes de ataques militares dos EUA, ou resultam
num custo difuso, imposto a toda a população, em todos esses casos, ninguém
ouve nem sinal de oposição feita pela imprensa-empresa; a imprensa-empresa,
toda ela, mantém-se então absolutamente muda e distante. Por isso Nixon pôde ir
tão longe, amparado num falso senso de segurança precisamente porque o cães de
guarda só latiram quando Nixon começou a representar ameaça contra os privilegiados.”
Os abolicionistas e os que pregavam respeito aos direitos
civis; jornalistas investigativos que enfureceram a Standard Oil e os
proprietários dos cercados para gado em Chicago; produções de teatro radical
como The Cradle Will Rock,* que implodiram os mitos tão caros à classe
governante e deram voz a pessoas comuns; os sindicatos de trabalhadores que
permitiram que imigrantes, afro-americanos e homens e mulheres trabalhadores
encontrassem dignidade e esperança; as grandes universidades públicas que
deram a filhos de imigrantes a chance de ter educação de alta qualidade; os
Democratas do New Deal que compreendiam que uma democracia jamais estará segura
se não garantir aos cidadãos padrões de vida aceitáveis e se não souber impedir
que o estado seja sequestrado pelo dinheiro privado, nada disso existe
mais no panorama dos EUA contemporâneos.
A desgraça de Webb foi trabalhar em tempos em que a
imprensa livre e democrática já não passa de clichê, como, também, a própria
democracia.
“The Cradle Will Rock,” como quase todo o trabalho
popular que foi gerado no Projeto Federal de Teatro criado por Roosevelt no
auge da Grande Depressão, deu voz aos anseios da classe trabalhadora, em vez de
só repetir anseios e angústias da elite. E ali afinal se expôs a loucura da
guerra, a ganância desenfreada e a desenfreada corrupção, a cumplicidade das
instituições liberais – especialmente da imprensa – que assegurou proteção à
elite no poder e sempre ignorou todos os abusos do capitalismo.
Na peça, o personagem Mister Mister[1] governa a cidade
como uma empresa privada:
“Acredito que jornais são ótimos para modelar as mentes”
– diz Mister Mister. – “Minha indústria de aço depende realmente dos jornais!”
“Basta o senhor telefonar para a Redação” – responde o
Editor de Notícias. – “Imprimiremos todas as notícias que o senhor nos der. De
costa a costa, de fronteira a fronteira.”
– “Bem me interessaria uma série de matérias sobre esse
jovem, Larry Foreman” –, diz Mister Mister ao Editor de Notícias.
– “Sei. O tal que anda por aí fazendo agitação e
organizando sindicatos” – responde o Editor de Notícias. Já ouvimos falar dele.
De fato, só ouvimos falar bem. Parece ser muito popular entre os
trabalhadores.”
– “Descubra com quem ele bebe e com quem ele dorme.
Vasculhem o passado dele, até achar alguma coisa que o faça parar.”
– “Mas o sujeito é de briga, é pura dinamite.
Precisaremos de um exército para segurá-lo” – responde o Editor de Notícias.
– “Ótimo! Sendo assim, vai ser fácil segurá-lo” – conclui
Mister Mister. E o dueto recomeça:
“Ah, a imprensa, a imprensa, a liberdade de imprensa.
Nunca nos tirarão nossa liberdade de imprensa!
Temos de ser livres para dizer o que nos vai n’alma...
com um da-da-di-da-da-dá e sim-sim-sim,
a favor de quem pagar mais.”
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