MINHA
ATRIZ NAQUELES DIAS
Fábio
Carvalho
Ave
Maria Nossa Senhora! No mundo há pessoas que dão pena, outras dão asas. Uma
frase anônima que não lembro mais de onde recolhi. A chuva tamborilava no
telhado de zinco quente enquanto a gata branca, imóvel como uma esfinge, olhava
dentro dos meus olhos fixamente. Comecei a ficar incomodado com aquela
inquisição enigmática, dispersei-me então para o outro cômodo interrompendo
meus afazeres como se estivesse fugindo da cruz assustado pelo maremoto que se
passava dentro de mim. É certo que uma hora terei que enfrentá-lo, não existe
transição sem turbulência onde é necessário ao menos um pouco de coragem para
arriscar. Consegui escapar ainda longe do mar. Mário, o ator, me mostrou uma
colagem da sua mais nova safra, quando fui visitá-lo no trás ante ontem. Vi
mucos, mucosas, glandes, vulvas, clitóris, pequenos e grandes lábios, mamilos,
gengivas, céus da boca e línguas em primeiro plano por sobre abstrações sem cor
ou descoloridas antes do preto e do branco. A cor de amora e o calor umedecido
construíram uma tessitura de sexualidade profunda, violenta, explodindo como
mênstruos na água. Na conceituação do artista plástico ali estavam o movimento
e o equilíbrio convergentes para um ponto de fuga, era isto que o resultado da
obra revelava. Pensei em vão. A linguagem é secreta na viagem livre e
solta com passagem só de ida. Belo quadro. Mudando de pau pra cavaco,
continuando nas artes plásticas, na segunda feira pela manhã estavam parados em
frente à banca tem tudo do Salim, o Véio, o Feio e o Pereirinha, conversando
entre pausas com muita seriedade. Disfarcei comprando um jornal e percebi que
negociavam sobre a divisão das duas garrafinhas pitchula com pinga que tinham
conseguido comprar na vaquinha, assunto realmente muito importante. Negativos
valem ouro. Tortura mental, saudade é o meu mal. Válvula de escape, enquanto
todos corriam atrás da idéia fugidia, parecia que nada ia dar certo, logo ela,
a primeira do lado B veio me salvar: Rosa Menina. O tempo todo dia é menos do
que ontem. Nem estou sabendo se hoje é ontem ou se agora é amanhã. Também pra
que saber. Dizem que não existe vida sem esperança, hoje estou completamente
desesperançado. Vou votar, coisa que não faço há anos por desobediência civil.
Desci das alturas, vejo na esquina da Rua dos Guajajaras com a Avenida Amazonas
uma mendiga negra sentada em cima de vários sacos de plástico cantando em altos
brados afinadíssimos, com letra corretíssima, o Hino Nacional, algo de dar
inveja a qualquer desportista que mastiga e finge que sabe o que finge cantar
em close com olhos embargados. Quem vem lá, chegando lá de trás do mar. Refoga
e escalda o sururu, apura o vinho de caju amigo. A bela bailarina Flor não se
animou com nenhuma das músicas de vários gêneros que as outras mulheres da
festinha no apê colocaram para dançar, curioso, perguntei qual música movia a
bailarina a bailar, ela respondeu: é samba-rock meu irmão. Depois mais tarde
ouvi a Flor bailarina falando para a Mariana que seu esmalte preferido chama-se
“Flores para Iemanjá”, verde azulejo piscina. Luxuriante é a mesa vestida de
chita com o verde translúcido da garrafa de Heineken misturada lá fora com lua
crescente já visível no céu azul anil acima da comunidade multicor. A origem do
mundo. Nada como a tristeza para te trazer a beleza, enquanto a alegria é a
prova dos nove. O Lírio, que é uma planta subterrânea, se estressa com tanta
secura quando ao primeiro pingo de água se reproduz loucamente nascendo em flor
para salvar a espécie. Segundo disse o Rodolfo durante a primeira cerveja
pública depois da eleição de frente ao lava-jato onde a garçonete da padaria
trocava a roupa de porta aberta. O soutien e a calcinha eram pretos em
combinação. Brilho de purpurinas, bolas e serpentinas, som vibrando metais, nus
foliões, casais e eu sem ter você... Estou totalmente Moacir Santos. E veio a
Quarta- Feira, cinzas, contrição e Orfeu. Peras de Rio Negro na falta de água.
Recentemente aconteceu com meu pai um fato curioso, ele foi roubado dentro de
casa pela menina que minha mãe trouxera do interior para trabalhar com eles.
Ela levou uma pochete contendo todos os documentos, cartões de banco e algum
dinheiro. Foi identificada pela câmera de segurança do caixa eletrônico, que
ela se utilizou para sacar tudo que pode. Muito a contragosto, já que gostava
da menina, meu pai foi convencido pelo banco a registrar uma ocorrência, fui
com ele. Na delegacia, como não tinha mais documentos, o policial começou a
procurar pelo seu nome na central de identificações, não encontrou. Então
pediu a filiação e tentou em nome do meu avô falecido em 1940, sem sucesso. Meu
pai não lembrava o nome completo de sua mãe, assim ligou para minha tia, sua
irmã, para perguntar: ô Dayse, como é que mamãe chamava mesmo? Nada foi
encontrado. Com um sorriso maroto ele se virou para mim, do alto dos seus
oitenta anos, perguntando sem duvidar: será que eu não existo? Certa vez o
Guará me contou que ficou mais de dez anos sem vir a BH, com isso sem ver seus
familiares, esteve durante este tempo viajando cinematograficamente pelo mundo
afora. Rio, Londres, Paris, Marrocos, Índia, Afeganistão, Trancoso e por aí
vai. Um dia sem aviso voltou, desceu do taxi em Santa Tereza em frente à sua
casa, onde uma senhora regava as plantas. Foi correndo abraçá-la e beijá-la dizendo:
mamãe que saudade! No que a senhora retrucou prontamente: não sou sua mãe, sou
a vizinha, sua mãe está lá no quintal cuidando da horta. A sensibilidade
apocalíptica. Voz interior que fala: felicidade inexprimível de estar ali,
tendo em volta a “Rosa da África”. O professor olha a estudantada preta,
invadido por aquela exaltante voz interior: o seu “idealismo”, o seu “estado de
poeticidade”... Escreveu Pier Paolo Pasolini em “O Pai Selvagem”.
Continuei vagando, deambulando pelo mesmo trajeto, coisa que está enchendo meu
saco. Cambiar se faz necessário. Depois dessas implosões inter-galáticas,
consegui terminar mais um pequeno filme. Nascido de um escrito que fiz por
encomenda do meu ouvido e dos planos que filmei com a camereta fotográfica ao
hazard, esse quadro movimento musicado me mostrou outras possibilidades de
prazer, me fez enxergar mais adentro. Próximo ao meu inferno astral, não
podemos dificultar o amadurecimento. Não sei por que falo no plural
novamente, deve ser meu outro eu. O Pica Pau está recostado em um galho de
árvore sonhando com o prêmio da loteria que ele tem certeza que vai ganhar.
Dentro do balãozinho que indica seu sonho está escrito o que o dinheiro vai lhe
trazer: mulheres, iates, mulheres, mansões, mulheres, carrões, mulheres, viagens,
mulheres, caviares, mulheres, champagnes, mulheres, banquetes, mulheres e etc.
A mulher tem muito mais complexidade do que mulheres. Não deixa de ser
engraçadinho o sonho do Pica Pau, seria mais ou menos como ser amado ou ser o
amado. Naquele final de manhã, caí num botequim horroroso na Rua dos Caetés
depois do teste de projeção, ele já estava ficando até agradável quando fui ao
mictório e vi um cartaz onde estava escrito em letras garrafais: proibido
dançar. Meu corpo de baile ali não teria vez, pensei com grande desilusão.
Decidi parar de fumar e beber de uma tacada só, achando que não iria mais me
reconhecer quando me olhasse no espelho, apesar do entorno insistir que esse
pensamento era uma tremenda bobagem. Novamente ela sorriu para mim e passou.
Fui cedo ao Mercado Central em busca de um prato feito, tudo estava lotado, de
súbito encontrei-me com o Biscoito, o mundo se encheu de esperanças mais uma
vez, subi de elevador.
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