Três
cartas de Henri Bergson para Gilles Deleuze
Trad.: Rodrigo Lucheta
PRIMEIRA
CARTA
Villa
Montmorency, Av. des Tilleuls, 18, Auteuil-Paris
Caro senhor,
Não quis agradecer-lhe pelo amável envio de sua obra
antes de ter encontrado tempo para lê-la. O estudo que o senhor oferece a honra
de me consagrar é tão denso, e eu me encontro tão sobrecarregado de ocupações,
que precisei esperar até a semana passada para tomar conhecimento dele – ainda
que não tenha podido fazê-lo senão de uma maneira bastante superficial. Irei
relê-lo; mas desde já cumpre lhe dizer o quanto fiquei interessado por este
retrato /fiel/ que o senhor faz de minha filosofia.
No que concerne ao uso do conceito de intuição, o
senhor me compreendeu muito bem. O senhor tem muita razão em lembrar já na
primeira página: a intuição jamais foi para mim sinônimo de sentimento, de
inspiração, menos ainda de instinto ou de simpatia confusa; ela na verdade é o
contrário, e isso porque eu disse que ela introduzia na filosofia o espírito de
precisão.
Para dizer a verdade, a <teoria da> intuição,
à qual o senhor consagra o primeiro capítulo de seu estudo, não se depreende,
aos meus olhos senão muito tempo depois, da duração: aquela deriva e não pode
ser compreendida sem esta. É por isso que o senhor tem mais uma vez razão em
apresentar a intuição como um método, ao invés de apresenta-la como uma teoria
propriamente dita. A intuição de que falo é antes de tudo intuição da duração,
e a duração prescreve um método. Qualquer resumo dos meus pontos de vista os
deforma em seu conjunto e os expõe, por isso mesmo, a uma série de objeções: se
não os situarmos em primeiro lugar, e se não os fizermos retornar sem cessar a
essa intuição especial que é o centro mesmo da doutrina – com tudo o que ela supõe
de esforço e às vezes de violência para desfazer os vincos contraídos por
nossas maneiras habituais de pensar.
A uma mulher que um dia me pediu para lhe expor
minha filosofia em algumas palavras que ela pudesse compreender, achei por bem
dar a seguinte resposta: “Senhora, eu disse que o tempo era real, e que ele não
era espaço”. Ignoro se foi suficiente para esclarecer minha interlocutora, mas
tomo por muito salutar esse tipo de exercício de contração filosófica que
obriga a por à nu e a determinar com uma fórmula simples e sugestiva a intuição
geradora de uma doutrina ou de um sistema de pensamento. É lamentável que ele
não seja mais largamente praticado nas salas de aula.
Enfim, eu dizia – o tempo é real. Mas que tempo, que
realidade? Toda a questão está aí, o senhor percebeu muito bem. A duração de
uma realidade que se faz, de uma realidade se fazendo, eis aí o que, de uma
obra a outra, eu constantemente visei. Não há mistério algum, nenhuma faculdade
oculta, e é por isso que eu tomei o cuidado de ilustrar este ponto
inspirando-me em experiências as mais ordinárias. Tome o esgrimista em plena
ação, veja a direção volúvel de seus movimentos, o devir que carrega seus
gestos. Quando ele vê chegar a si a ponta [da espada] de seu adversário, ele
bem sabe que foi o movimento da ponta que carregou a espada, a espada que puxou
com ela o braço, o braço que esticou o corpo, este alongando-se a si mesmo: não
dividimos como seria preciso, e não se sabe executar um afundo senão quando se
sente assim as coisas. Alocar em ordem inversa é reconstruir e, por
consequência, filosofar; é percorrer à contrapelo o caminho aberto pela
intuição imediata do movimento que se faz. Posso me vangloriar de ter praticado
bastante a esgrima na minha juventude para saber o que há de artificial nesse
gênero de recomposição abstrata: entretanto é assim que raciocinamos mais
frequentemente. O aprendiz na esgrima sem dúvida pensa assim os movimentos
descontínuos da lição, ao passo que seu corpo se abandona à continuidade do
assalto. Ele recorta mentalmente seu próprio impulso em uma sucessão de
atitudes e de posições. É-lhe permitido imaginar, trabalhando o encadeamento
das figuras, que a flexão dos joelhos ou tal movimento de ombro que,
transmitindo-se passo a passo à mão, fará mover a espada em direção ao alvo. Na
falta de flexibilidade, ele ganhará talvez em exatidão. É assim que é preciso
se exercitar, mas não se deve esquecer de sentir. Contam que o barão de Jarnac
preparou-se para o duelo contratando os serviços de um mestre italiano de esgrima;
mas o essencial do golpe ensinado consistia em localizar o momento propício.
Aliás, a postura rigorosa da análise não seria tão eficaz se o hábito contraído
no decurso de uma longa prática não conferisse à inteligência uma certeza
próxima do instinto. Esses dois movimentos que caminham geralmente em sentido
contrário estão muito próximos da coincidência quando acontece de o esgrimista
inventar, no fogo da ação, uma nova esquiva, uma nova maneira de tocar – e eu
acredito que existe invenção tanto nos esportes quanto nas artes.
Fiquei particularmente sensibilizado com as
passagens que o senhor consagra à Evolução Criadora. Assim como a matéria é uma
repercussão do élan criador, ao invés de sua negação ativa, a inteligência é
uma distensão da intuição, ao invés de uma tendência oposta: isso quer dizer
que há entre elas uma afinidade essencial. Neste ponto fui geralmente mal
compreendido, e lhe sou grato por ter posto essas coisas a claro. Fazem-me
passar por um adversário da inteligência, um canto de anti-intelectualismo que
coloca o instinto acima de tudo. É preciso nunca ter aberto meus livros para se
imaginar semelhante absurdo. É preciso sobretudo não ter compreendido o que eu
não deixei de dizer, à saber, que a intuição não é senão um regime particular
no qual a inteligência se dobra, quando, retornando sobre si mesma, ela
torna-se capaz de se dilatar para alcançar a gênese real das coisas. Só mesmo
Benda [Julien Benda, crítico, filósofo e escritor francês] para acreditar que
aí a inteligência perde alguma coisa: para ele, os conceitos seriam como
etiquetas das quais as formas seriam recortadas de uma vez por todas e que só
nos restaria colá-las nas coisas como em potes de geleia. Equivale a dizer que
toda verdade já está virtualmente conhecida, que o modelo está aí colocado nos
cartões administrativos da cidade, e que a filosofia é um jogo de puzzle onde
se trata de reconstituir, com as peças que a sociedade nos fornece, o desenho
que ela não quer nos mostrar. Essa imagem grotesca do conhecimento alimenta com
mais frequência do que se imagina a reivindicação de “critérios” seguros para a
utilização dos conceitos.
Mas o racionalismo expandido reclama instrumentos
novos e, para começar, uma ideia diferente do conceito. Platão, o senhor se
lembra, compara o bom dialético ao hábil cozinheiro que trincha o animal sem
lhe quebrar os ossos, seguindo as articulações desenhadas pela natureza. A
imagem do esqueleto é ainda bastante rígida, mas como tal está, para mim, o
conceito de duração: uma ferramenta tão simples, tão cortante quanto o fio da
faca. Entretanto, como cada coisa tem sua maneira singular de durar,
dificilmente convém escrever a palavra duração no singular. Não há senão
durações e cada duração é, nela mesma, múltipla. Por trás do conceito de duração,
existe o problema do múltiplo: não o múltiplo em geral, mas um múltiplo de um
tipo particular, do qual a definição exige um esforço de criação especial. A
representação de uma multiplicidade de penetração recíproca, totalmente
diferente da multiplicidade numérica, é o ponto de onde parti e para o qual
constantemente retornei. Não há outro meio de traduzir uma duração heterogênea,
qualitativa e realmente criadora. Não sei se a aproximação que o senhor sugere
com as multiplicidades de Riemann [Bernhard Riemann, matemático alemão] – com
as quais de minha parte jamais sonhei – permite precisar essa intuição sem nos
reconduzir à exterioridade reciproca das partes que caracteriza, segundo minha
tese, toda representação espacial.
Falei da necessidade de pensar por meio de conceitos
mais /fluidos/ flexíveis. Se a palavra “conceito” não pudesse mais
convir, eu a abandonaria sem arrependimento. É certo, em todo caso, que uma tal
tarefa demanda ao espírito um grande esforço, a ruptura de muitos quadrantes de
pensamento, alguma coisa como um novo método. Pois o imediato está longe de ser
o mais fácil de perceber e, sobretudo, de pensar. E, no entanto, ele também não
é o inefável, que é uma vaidade e, mais frequentemente ainda, uma facilidade.
Ora, a este respeito seu estudo sobressai-se àqueles
que me consagraram até hoje. Reivindico em filosofia uma certa maneira
dificultosa de pensar – como puderam se enganar? E seu comentário, na medida em
que leva à sério a ideia de um método de precisão em filosofia, desanimará mais
de um leitor que acreditar encontrar nele belas páginas sobre o sentimento do
eu que dura; mas aqueles que esperam outra coisa da filosofia encontrarão nele
seu quinhão. Ou me engano muito, ou esse estudo fará época.
Permita-me, entretanto, um /fraterno/ conselho de
trabalho. Há uma grande vantagem, nas análises de conceitos, em partir de
situações concretas e /bem/ simples, ao invés de autores ou mesmo de problemas
filosóficos enquanto tais. Frequentemente observo: quanto mais um filósofo é
dotado, mais ele tem a tendência, no início, de abandonar o concreto. Ele deve
impedir-se às vezes, em tempo de retornar às percepções ou intuições concretas
onde seu pensamento poderá se simplificar e precisar. Nada é mais fácil do que
raciocinar geometricamente sobre ideias abstratas; em cada filósofo cochila um
metafísico que se inclina a recompor o real com construções dialéticas. De
minha parte, reivindico uma metafísica positiva, e eu não teria passado tanto
tempo aprofundando os fatos da psicologia ou das ciências da vida, nem
consagrado tanta energia – Deus sabe se podem me recriminar! – para compreender
a maneira pela qual os princípios da mecânica nova se aplicam às /junções/
articulações da experiência se eu não estivesse convencido de que os grandes
problemas da filosofia podem ser renovados e encontrar, ao mesmo tempo, um
início de solução: contanto que se sigam os contornos sinuosos e móveis da
realidade, abraçando-a, tanto quanto possível, em uma espécie de auscultação
espiritual. Não perca o concreto, retorne a ele constantemente. A intuição
simples do gesto do esgrimista vale mais do que cem argumentos dialéticos.
Estas notas talvez pareçam ao senhor imodestas. Eu
não me autorizaria a tal franqueza se seu estudo não me fizesse reconhecer com
tamanha evidência as marcas de um <verdadeiro> talento filosófico
/impressionante/. Acrescentarei que em algumas passagens suas palavras exprimem
tão bem os fundamentos do meu pensamento que me parece que estou lendo ou
relendo a mim mesmo. Mas esta espécie de ventriloquia se acompanha, de uma
ponta a outra, de toda sorte de deslizamentos, de descentramentos, e às vezes
de rupturas que me fazem pensar que esse “bergsonismo” que dá título ao seu
livro porta já toda uma filosofia própria, que eu só posso lhe convidar a elaborar
e prolongar em seu próprio nome. Isso seria, me parece, uma filosofia da
diferença, ou antes da diferença pura. Se o senhor pudesse vir à Auteuil, seria
um prazer conhecê-lo para falar mais detalhadamente sobre isso tudo.
Receba, caro senhor, a segurança de meus devotados
sentimentos.
H. BERGSON
Esquecia-me de lhe agradece pelos textos seletos que
o senhor teve a amabilidade de juntar em seu envio. Entreguei-me há pouco, no
caso de Lucrécio, a um exercício semelhante; mas eu estava longe de me imaginar
um dia sendo posto assim “em trechos”. Esta pequena “Memória e vida” é ainda
mais /útil/ necessária, pois ela contém certos textos aos quais o senhor se
refere em seu trabalho, mas sem citá-los sempre – com risco, às vezes, de
confundir os leitores menos familiarizados com minha obra.
SEGUNDA CARTA
Paris, Boulevard Beauséjour, 47. XVIe. [falta a
data]
Caro amigo,
Meu colega Jean Wahl [Jean André Wahl, filósofo e
professor francês, foi aluno de Bergson] teve a amabilidade, na primavera, de
me trazer sua tese “A diferença e a repetição” [sic]. Não sei como me perdoar
por tê-la guardado por tão longo tempo sem lhe escrever uma resposta.
Entretanto a percorri imediatamente e com um /extremo/ vivo interesse. Depois
me sobrevieram diversos problemas de saúde. Seu manuscrito ficou na minha mesa,
“guardado” – quer dizer, tornou-se-me impossível reencontrá-lo. Por diversas
vezes o procurei. Ei-lo aqui reaparecido.
Percorrendo-o novamente, não pude senão repetir o
que lhe dizia de sua primeira versão, na ocasião da nossa correspondência no
mês de dezembro. O senhor realizou aí um trabalho considerável e as ideias que
desenvolve testemunham uma amplitude de visão que alguns poderiam perceber como
ousadia. Espero somente que os colegas que julgarão seu trabalho tenham a
honestidade de reconhecer, por trás do tom inabitual de sua tese e da
abundância de leituras que ela mobiliza, sua preocupação com a precisão, que eu
considero como a primeira virtude do filósofo.
É preciso reconhecer que o senhor não lhes facilita
a tarefa. Lendo-o, retorna-me à memória o que o senhor me confiava acerca de
suas impressões quando da descoberta do primeiro capítulo de Matéria e Memória.
Na ocasião o senhor me explicava, não sem malícia, que esse texto, aos seus
olhos, era um dos mais materialistas que já foram escritos em filosofia. O
senhor acrescenta que criando conceitos que respondem a problemas novos, uma
filosofia confere às coisas um novo recorte e, por isso mesmo, projeta no mundo
uma luz estranha e quase irreal. O senhor evocava a esse respeito uma paisagem
de “ficção científica”. Minhas ocupações me deixam, infelizmente, muito poucos
momentos de lazer para que eu me familiarize com essa literatura, mas creio que
compreendo o que o senhor quis dizer, e devo confessar ao senhor que certas
passagens da sua tese inspiram-me um sentimento totalmente comparável.
Fiquei interessado, encantado – e às vezes mesmo
convencido – pelo projeto que o senhor formula de encontrar a diferença pura
até nos conceitos por eles mesmos, com a condição de retomá-los como nós ou
como singularidades no sentido de Ideias-Problemas. Essa ideia de um uso
intensivo dos conceitos vai bem além do que eu imaginava ao falar de “conceitos
flexíveis” e como que cortados “sob medida”. Em suma, o senhor encontra no campo
da ideia a ontologia das multiplicidades intensivas das quais eu vejo o tipo
puro na experiência da duração vivida: o senhor reclama uma ontologia para os
conceitos mesmos, na medida em que se possa pegá-los, por seu turno, na
duração, no movimento de sua gênese ou de sua diferenciação. As passagens sobre
o cálculo diferencial me interessaram particularmente, o senhor bem pode
imaginar: sempre considerei esse método, ou pelo menos sua ideia geradora, como
uma verdadeira sondagem feita na duração pura, com a condição evidentemente de
que não se contente em ver aí a organização lógica de um sistema de atos, mas
antes (sob a forma de que ela se revestia na origem, em Newton) uma espécie de
modelagem intelectual do movimento real. Em compensação, as passagens
consagradas à repetição, e notadamente aquelas onde intervém o eterno retorno,
causaram-me algumas preocupações. O senhor conhece as reservas que me inspiram
os escritos de Friedrich Nietzsche. Aliás, é uma questão de método, e mesmo de
estilo ou de temperamento, mais ainda que de conteúdo: jamais compreendi
seguramente.
O capítulo sobre a “imagem do pensamento” me parece
neste sentido mais bem sucedido: mas eu não estou provavelmente melhor situado
para julgar, já que o senhor, sem nomear-me, retoma aí o essencial do que já
expôs em seu estudo sobre o “bergsonismo” a propósito da minha crítica dos
falsos problemas. Toda a questão da filosofia é, com efeito, bem colocar os
problemas e, no mesmo movimento, destituir os falsos problemas que impedem de
pensar. Aliás, é aí que se distingue, no meu modo de ver, uma filosofia de
amador de uma filosofia digna deste nome. Chamo de amador aquele que escolhe
entre soluções acabadas, como se escolhe um partido político onde se vai
filiar. E chamo filósofo aquele que cria a solução, então necessariamente
única, para o problema renovado que ele colocou e que, por esse motivo, faz um
esforço para resolvê-lo. Tolerando o problema tal como ele é colocado pela
linguagem e pela opinião comum, nos condenamos de antemão a receber uma solução
pronta ou, colocando melhor as coisas, a simplesmente escolher entre as duas ou
três soluções, únicas possíveis, que são coeternas a essa posição do problema.
Equivale a querer atribuir ao filósofo o papel e a atitude do aluno que procura
a solução dizendo-se que uma olhada indiscreta no caderno do professor lhe
mostraria a resposta, anotada ao lado do enunciado. Mas a verdade é que se
trata, em filosofia e alhures, de achar o problema e, em consequência, de
colocá-lo, mais ainda que de resolvê-lo.
Observe, a este respeito, que eu bem me guardei de
intitular Matéria e Espírito o livro onde empreendo criticar a ideia do
paralelismo psico-físico. Toda a dificuldade era delimitar com precisão a
distância entre o pensamento e as condições físicas onde esse pensamento se
exerce, e de fazê-lo no campo mesmo do materialismo. Em vez de partir de uma
oposição de princípio entre dois termos exteriores um ao outro, a matéria “em
si”, considerada em suas formas rudimentares, e o espírito “em si”, identificado
com suas faculdades superiores, eu quis colocar-me no lugar onde esses dois
conceitos se tocam, em sua fronteira comum, para estudar a forma e a natureza
do contato (a experiência em geral poderia, aliás, definir-se como o lugar onde
os conceitos se tocam e às vezes se interpenetram).
Assim, escapei da posição ordinária do problema e
das oposições que ela suscita: realismo e idealismo, materialismo e
espiritualismo. Escolhendo falar da memória em sua relação com o fato cerebral,
e mais especialmente da memória das palavras (e por isso de um fato bem
determinado e localizado), busquei encurtar o problema da relação do corpo com
o espírito dentro dos limites mais estreitos possíveis. Elevei-me de início, de
complicação em complicação, até o ponto onde a atividade da matéria roça a do
espírito. Então, de simplificação em simplificação, fiz descer o espírito, tão
perto quanto pude, da matéria. Examinando o problema da memória das palavras e
de seu envoltório sonoro, parecia-me que eu quase tocava o fenômeno cerebral no
qual prolonga-se a vibração sonora. E entretanto havia aí uma distância, e esta
distância conduzia-me a pensar que o espírito se insinua, ou melhor, insere-se
na matéria se aproximando dela por gradações sucessivas. “Espírito” e “matéria”
são, aliás, palavras muito largas para designar a articulação fina desses
planos da experiência. O sim e o não são estéreis em filosofia. O que é
interessante é o “em que medida?”. Sob este novo ponto de vista, o velho
problema do corpo e da alma poderia ser posto como novo: a filosofia exige que
se corte sob medida; e eu não posso senão subscrever a ideia que o senhor
desenvolve de uma arte dos problemas, mais exata e mais difícil que o jogo
dialético das questões e das respostas.
Mas é preciso que nos falemos mais sobre tudo isso,
e também sobre outras análises notáveis que encontrei em seu livro sem poder
evocá-las aqui. Estou prestes a ir – ou antes a ser levado – até Dax para fazer
um tratamento. Levo seu manuscrito comigo. Para o momento limito-me a enviar-lhe
meus cumprimentos, e junto a eles a expressão de meus amistosos sentimentos.
H. BERGSON
TERCEIRA CARTA
Saint-Cergue, Suiça [falta a data]
Meu caro Deleuze,
Sua adorável e interessante carta me deu o maior
prazer. Eu gostaria de lhe responder longamente, mas os movimentos da escrita
se tornaram para mim muito dolorosos – salvo em certos momentos, em que escrevo
como outrora; mas esses momentos são raros e eu nunca sei quando eles virão.
Vou me limitar a lhe falar da alegria que me causou
o anúncio desse projeto de um livro escrito à quatro mãos com o senhor Gattari
[sic]. Não sei como procedem: esta é uma das proezas às quais me sinto
totalmente incapaz, dado o que já me custa fazer concordarem entre si minhas
próprias ideias para expô-las em um texto.
Mas depois do que o senhor disse, entendo que a
redação desse livro se parecerá com uma espécie de patchwork, procedendo por
conexões de pensamentos. Isso me traz à memória uma discussão que tive uma vez
com o falecido William James. Ele descrevia o trabalho conceitual como uma
espécie de “mapmaking”, quer dizer, de cartografia. É certo que para ele, como
para mim, os conceitos são simples instrumentos de ação, ou de ferramentas. Mas
ao invés de ver aí uma objeção, ele via na filosofia um incremento de potência.
Aliás, é neste ponto que nossos estilos divergem, apesar de concordarmos num
certo número de recusas: James foi muito mais longe do que eu no sentido de uma
refutação intelectualista do intelectualismo. Seu pragmatismo o conduziu a uma
forma de “construcionismo” – se o senhor me autoriza esse termo bárbaro – que
me faz frequentemente pensar em sua própria maneira de escrever.
O senhor reivindica, como eu, um empirismo
verdadeiro, um empirismo superior – lembrando que o empirismo sempre foi, em
seus melhores momentos, uma “louca criação de conceitos” /…../ . Mas o senhor
procura do lado da variação ou da proliferação das conexões o que eu procuro do
lado da simplificação de nossos conceitos ordinários – ou de sua fluidificação.
Eu gostaria de discutir mais longamente as reflexões
que o senhor desenvolve em sua carta, mas temo faltar-me a força e me deterei,
por isso, em apenas algumas observações. A imagem do “rizoma” me parece
perfeitamente propícia a fazer sentir o tipo de multiplicidade heterogênea e qualitativa
que convém à textura de uma realidade em devir. Temo apenas que aqueles dentre
seus leitores que não tenham mais do que vagas noções de botânica poderão
imaginar aí coisas extravagantes, e que aqueles, ao contrário, que são versados
nessa matéria, encontrem ocasião para objeções sem fim, ou para reprovar
sabe-se lá que vitalismo vegetal que seria aí totalmente estranho aos seus
olhos. Mas o senhor saberá, estou certo disso, contornar essas dificuldades
/……/. Por que não dedicar uma introdução, ou mesmo um estudo separado acerca
dessa questão? Será necessário somente pensar em encontrar-lhe um título menos
/singular/ barroco que aquele de Rizoma: seu editor, sendo tão benevolente a
seu respeito, provavelmente teria dificuldade com esse título.
O senhor me permitirá agora, caro amigo, colocá-lo a
par de uma inquietude mais geral. Para isto, não me autorizo senão por minha
própria experiência, e pelas reações hostis que puderam suscitar algumas de
minhas obras. O que não foi dito sobre a intuição ou sobre o élan vital?
Acredito que as pessoas não se dão ao trabalho de ler e se contentam com
resumos que elas encontram na imprensa ou em livros ruins. Recentemente tive
ocasião de conversar com Borel [Félix Édouard Justin Émile Borel, matemático e
político francês], que acreditava que devia me dar uma dupla lição de
matemática e de filosofia: é uma ilusão bastante difundida, que consiste em
acreditar que pode-se abordar a obra de um filósofo contemporâneo e refutá-la
sem se preparar, cortando os problemas que ela coloca, ou afastando-os como
futilidades, sem levar em conta os vinte e cinco séculos de meditação, de
inquietude e de esforço que estão como que condensados na forma atual desses
problemas e até mesmo nos termos de que se serve o pensador para enunciá-los.
Com mais forte razão: quando um filósofo pretende reconstruir ou transformar o
problema que recobre um conceito, é inútil buscar querelas de palavras.
Acredito que é muito difícil dizer, numa simples inspeção, se uma noção é ou
não é inteligível. A inteligibilidade de uma ideia não pode ser medida senão
pela riqueza que ela sugere, pela extensão, pela fecundidade e pela segurança
de sua aplicação, pelo número crescente de articulações que ela nos permite
colocar à nu, por assim dizer, no real e, enfim, pela sua energia interior.
Assim funciona o conceito de intuição, nele mesmo. De minha parte, considero
que em filosofia o tempo consagrado à refutação é geralmente tempo perdido. Mas
como nossa época parece querer submeter imediatamente toda reflexão ao
imperativo da discussão, temo que o senhor não escape ao gênero de dificuldades
que eu mesmo tive ocasião de encontrar, e que se veja mais de uma vez conduzido
a tomar de seu tempo e de sua energia para dar resposta a um crítico severo e
injusto. /……/
Também me parece que o livro que o senhor projeta
escrever deveria de alguma maneira antecipar-se às objeções que não deixarão de
lhe fazer, e o que talvez seja pior, às deformações que seus próprios
defensores necessariamente farão ao seu pensamento. Os primeiros objetarão,
pois isso é tudo o que sabem fazer: eles lhe dirão que não há multiplicidade
sem unidade, que a ideia mesma de uma multiplicidade pura é por consequência
destituída de sentido, etc. Os segundos se apressarão em transformar suas
analises em fórmulas prontas: eles irão clamar em toda parte a vitória do
múltiplo, o desfazimento do Um ou da transcendência. Mas não é suficiente
gritar “Viva o múltiplo!”; o múltiplo: é preciso fazê-lo. E para começar, o que
importa verdadeiramente à filosofia é saber qual unidade, qual multiplicidade
nos permite abraçar o esforço da intuição, ela mesma renovada por cada novo
problema.
Não tenho dúvida de sua capacidade de fazer seus
leitores entenderem isso, como o senhor fez antes, e tão claramente, no estudo
que teve a amabilidade de dedicar à minha obra. Aliás, o senhor talvez sentirá
um dia a necessidade de explicar-se mais longamente sobre o que lhe parece ser
a natureza do trabalho filosófico. /Entreguei-me/ Arrisquei-me nesse exercício
em O Pensamento e o Movente. Mas querendo descrever a filosofia como a
atividade mais concreta possível, corre-se o risco de produzir a impressão
exatamente inversa. É por isso que esse livro nunca me satisfez completamente.
E se fosse necessário escolher, hoje, entre todas as minhas obras, aquela que
mais se aproxima de um discurso do método, eu não hesitaria em dizer que é O
Riso. A desmontagem dos falsos problemas, à qual o senhor mesmo consagrou belos
desenvolvimentos, me parece, com efeito, uma forma de cômica filosofia. Não sei
se a ideia que o senhor se faz da besteira está de acordo com esse sentimento,
mas me parece que os combates filosóficos se parecem frequentemente com uma
curiosa pantomima de conceitos, uma espécie burlesca de pensamento.
Esperando seu tratado do método filosófico, tive
grande prazer em saber que o senhor planeja escrever um livro sobre o cinema e,
mais ainda, que cogita me associar a ele, ainda que indiretamente, e aí
retomando a teoria das imagens propostas há pouco em Matéria e Memória. O
senhor sabe que meu estado de saúde me impede há muito tempo todo deslocamento
e que eu não tive suficientes ocasiões para acompanhar os desdobramentos dessa
diversão que chamávamos outrora de “cinematógrafa”. Se pude falar dela em
alguns de meus livros, isso foi apenas até o ponto de vista do funcionamento da
máquina – não sendo eles ainda mais que uma analogia para descrever o mecanismo
da inteligência que pretende restituir a realidade movente à partir de vistas
imóveis dirigidas a ela, projetando toda mudança sobre não sei qual
representação do devir em geral /……/. Espero que o senhor encontre o quanto
antes o tempo para escrever esse livro cujo assunto me encanta e me intriga ao
mesmo tempo.
Creia, caro Deleuze, na expressão de meus fraternos
sentimentos.
H. BERGSON
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