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domingo, 3 de agosto de 2014

MUITOS BRASIS

Jangada do Brasil (a jangada do sul e o roteiro das minas)

"Três traves atadas entre si", expressão de Cãmara Cascudo que define a jangada (ou a essência da jangada) poeticamente utilizada por Gilberto Vasconcellos para definir a essência do trabalhismo no Brasil, na epígrafe de seu belo ensaio Jangada do Sul. Felizmente ainda temos um Gilberto Vasconcellos que nos salva do marasmo de mediocridade e conformismo na análise histórico-política contemporânea. Unindo literatura (poesia), documento e ciência, ele ilumina as biografias dos três maiores personagens da luta trabalhista na política nacional: Getúlio, Jango e Brizola.

São três grandes heróis nacionais que hoje se unem na imortalidade de seus espíritos dedicados à causa do Brasil, numa coincidência quase mística que une também os seus restos mortais no descanso eterno em São Borja, Rio Grande do Sul. Para mim, a maior virtude de Jangada do Sul está em jogar o foco nos pensamentos lúcidos dos três grandes homens, pensamentos "atados entre si", pela primeira vez colocados em primeiro plano da análise histórica pelo valor que trazem à posteridade e pelo que acrescentam à inteligência nacional, muito para além de suas próprias e inegavelmente corajosas trajetórias políticas, que igualmente nos ensinam, mas nos fados das tragédias, decepções, erros e derrotas, pontuadas por algumas poucas efemérides de conquistas e vitórias, como sói acontecer nas biografias dos verdadeiros heroís.

Chegará o dia em que nos livraremos da peste colonialista e seus nomes e idéias ganharão o relevo merecido na memória coletiva nacional. Jangada do Sul significa um passo importante nesta direção. A grande vitória da "jangada do sul" será, pois, o legado da inteligência destes três mestres que escreveram suas obras por ações, atitudes e pronunciamentos de sabedoria política curada na faculdade da vida, a maior parte anotados pelo escriba Darcy Ribeiro e desprezados pela intelligenzia brasileira. Gilberto as sintetiza e as entrelaça na imagem de uma sólida e artesanal estrutura que sobrevive quase ignorada, boiando à deriva no mar da miséria política em que todos os seus sucessores naufragaram nos últimos quarenta anos. A pátria foi à pique e Gilberto nos aponta a tábua de salvação: "três traves atadas entre si".

Mas o texto tem também uma outra grande virtude. Ele traz um convite especial a um debate que aceitamos de bom grado, até porque é um debate que consideramos urgente e de crucial importância para o crescimento da nossa análise histórica atual. Por outro lado, temos o dever de apontar escorregões na casca de banana da paixão, no sentido de contribuir para a limpeza da brilhante composição, propondo ao autor escoimá-la de cacos desnecessários e irrelevantes, que só podem prejudicá-la.

Nota-se que à primitiva jangada definida por Cascudo, movida e pilotada a remo, o jangadeiro apôs uma outra trave de fundamental importância para fazê-la navegável nos mares altos e distantes: a trave vertical, fincada na trave central, à vez de mastro para desfraldar a vela que recolhe a energia dos ventos e a faz mover-se sem esforço humano. Uma outra quinta trave - móvel, inclinada, apoiada na popa das três traves - será incluída na evolução da nave a fim de torná-la pilotável, na direção desejada: o leme. Tal nave, completa em sua evolução e pilotada pelo arguto caboclo - o maior de todos os marinheiros - é a que o imperialismo mais teme. Contra ela mobiliza porta-aviões, cruzadores, e destróiers a fim de impedí-la de chegar aos seus paradigmáticos destinos históricos.

Gilberto, tal como a maioria dos melhores historiadores, só percebeu a primeira etapa da evolução e da transcendência deste sutil projeto de tecnologia nacional-nordestina, "de ponta", talvez porque ainda ancorado na visão restrita e litorânea dos nossos destinos. A nossa jangada simboliza a principal estratégia da política nacional. Ela já esteve a um passo de se completar inteira, tem como rota priotária a conquista definitiva do vasto território brasileiro, e passa pelas glórias das bandeiras e do roteiro das minas.

A trave central da jangada, a que é a mais forte e mais estrutural é, obviamente, Getúlio Vargas. Jango estaria à sua direita e Brizola à esquerda. Juscelino é o mastro e a vela. Tancredo Neves seria o leme que ainda nos falta. Todo o resto é torpedo contra a nossa jangada, mas nenhum logrou botá-la a pique. Ela esta aí, à deriva, com a vela rota e esgarçada que não logra recolher a tração dos ventos, e sem leme para lhe dar direção.

A análise da esquerda sobre o fenômeno Juscelino é uma lástima - ela coloca seus autores no mesmo saco da direita raivosa, entreguista e lacerdista. Tancredo sequer é considerado. Demonstram com isso uma falta de estudo e de profundidade no exame dos registros históricos que nos legaram as trajetórias dos dois mineiros. Nossos melhores autores, Gilberto inclusive, se recusam a enxergar que foi o governo Juscelino o que mais ameaçou o imperialismo anglo-ianque, sem dar-lhe chance de reagir com suas táticas sujas e seus golpes baixos. Acuou os gringos e encostou-os nos lugares de onde nunca deveriam ter saído, fazendo tudo o que eles sempre procuraram impedir: o crescimento econômico nacional e a exploração das nossas riquezas naturais em nosso próprio proveito. Frustrou-lhes, com malandragem e jogo de cintura, em todas as tentativas civis e militares que urdiram contra o seu mandato, antes e depois da posse. Soube como ninguém usar o legalismo quase obcessivo de Lott, fazendo com que a força do inimigo funcionasse a seu favor. Ao contrário de Jango e Brizola, apreendeu a astúcia de Getúlio, nunca batendo-se de frente com um inimigo que sabia muito mais poderoso. Sabia esquivar-se, contornar, driblar, blefar, e nenhum dos nossos poderosos inimigos encontraram em sua face uma ruga sequer de temor ao combate. Encarava-os todos, rindo. Sozinho, conseguiu anular o poderio nefasto dos interesses colonialistas marionetados aqui nos Assis Chatobriãns, Robertos Marinhos, Lacerdas, as alas ultra-reacionárias militares, as direitas civis mais extremadas, e até as igrejas - juntos! Com ele no poder, 64 seria só mais uma quartelada inconsequente, como o foram as que se moveram contra ele antes e depois de eleito, entre 1955 e 1960. 

Gilberto escorrega quando diz que 64 foi para evitar a eleição de Brizola em 65. Não há registro histórico que autorize uma afirmação destas. É um caco que deveria ser banido de seu texto genial. A eleição de 65 era de Juscelino, que entrava no quarto ano de campanha com o Brasil inteiro (e a CIA) sabendo que ninguém poderia derrotá-lo. Brizola seria, no máximo, o seu vice. O PTB não se arriscaria a lançar candidato próprio contra uma candidatura imbatível como a de Juscelino em 65, até porque foi no governo de Juscelino, e não nos de Vargas e de Jango, que aquele partido gozou seu maior espaço de poder e de crescimento. 64 tinha por objetivo impedir a eleição de Juscelino. Para os estrategistas do império era ele, sem dúvida, o mais temido líder do terceiro mundo.

Os historiadores "de esquerda" caem na conversa de Caio Prado Júnior, o texto mais chato e inócuo que conheço. Acho que nenhum cristão pode ter tanto pecado para pagar pela penitência que seria a leitura do autor de Dialética do Conhecimento. Se Juscelino foi, segundo ele, "o presidente mais entreguista que o Brasil já teve", então que sejam os nossos presidentes entreguistas. Foi com Juscelino que o desemprego caiu a quase zero e o salário mínimo atingiu o topo, real e mais justo, em toda a nossa história - desde que foi criado.

O Brasil em 1955 era uma economia agrícola incipiente, com um PIB medíocre e uma participação insignificante no comércio internacional. Tínhamos uma bela legislação trabalhista mas não tínhamos uma classe trabalhadora que dela se beneficiasse. A Petrobrás extraía míseros 8 mil barris/dia e refinava menos de 100 mil. A Eletrobrás controlava uma geração minúscula de energia elétrica, a partir de algumas banheiras que tinham nomes de barragens. Volta Redonda era a menor planta possível da escala siderúrgica de então. As nossas ferrovias eram obsoletas e deficitárias, assim como o seu fumegante maquinário de marias-fumaças do início do século. Emprego era sinônimo de funcionalismo público; fora das tetas governamentais uma meia dúzia de dois ou três centros urbanos, que somados não davam uma São Paulo, podiam ser classificados como capazes de gerar postos de trabalho em quantidades não desprezíveis. Estradas de rodagem só em volta destes pequenos centros comerciais e industriais, uma ínfima percentagem delas asfaltadas - no mais era cavalo e carro de boi. Importávamos tudo, desde máquinas pesadas, navios e veículos até alfinetes, linhas de costura e palitos de dentes. O Brasil era um vasto território vazio de brasileiros que mal ocupavam uma estreita faixa litorânea com cerca de 100 quilômetros de largura, em média. Éramos, enfim, tudo o que o império queria que fôssemos: um depósito intocado de preciosas matérias primas e recursos naturais de toda espécie, reservado em sua totalidade para as estratégias futuras de sua expansão planetária.

Getúlio lutou como um leão para que saíssemos dessa emperrada e anacrônica situação de subpaís-reserva-de-riquezas-para-os-outros. No segundo mandato seu cansaço era visível. O jogo de poder fazia-se de uma nova maneira desde o pós-guerra, para ele desconhecida e extremamente desconfortável. Ele se via como um velho capiau munido de um canivete enferrujado num jogo de pôquer contra um jovem caubói lustroso, a exibir seus colts 45 de ouro ao sallon amedrontado. Sabia que era fácil ganhar, mesmo sendo o caubói dono das regras e o rei do sallon (óbvio, não é possível ser-se mais imbecil que um caubói) mas sabia também que se ganhasse não levaria. Tudo que o caubói desejaria é que ele tirasse o canivete e o ameaçasse. Aí poderia fazer valer as balas de prata do seu colt de ouro, com anuência da platéia submissa. Como naquela época o caubói e o sallon ainda respeitavam o sacrifício humano, Getúlio optou pela jogada genial, literalmente um xeque-mate, de enfiar o canivete em seu próprio peito e garantir o legado de poucos e suados ganhos ao seu herdeiro imediato. Getúlio via muito na frente dos outros e já sabia quem seria este herdeiro imediato: Juscelino, o filho dileto, o qual conhecia bem pelas gestões como prefeito de Belo Horizonte e governador de Minas Gerais, e no qual cultivava as maiores esperanças de redenção da pátria e do povo que amou como ninguém mais. Juscelino foi o único governador de estado que compareceu ao enterro de Getúlio. Depois voltou ao sallon, sentou-se, fingiu-se de bobo e fez o caubói de bobo, multiplicou por cem o cacife que herdadra de Getúlio, e no final o sallon inteiro ria do caubói.

Numa viagem de avião para mostrar a imprensa onde seria construída Brasília, uma jornalista francesa, depois de horas de sobrevôo sobre o interminável cerrado, interpelou Juscelino: - Mas o senhor vai construir a capital num deserto...isso é absurrdo! Ao que Juscelino retrucou, na hora: - Não, minha filha, absurdo é o deserto.

Gênios desse naipe não dão sopa na história. Contam-se nos dedos os que surgiram nos três milênios de civilização. Então, de onde vem esse emburro com Juscelino?

Como pode ser chamado de entreguista o Presidente da República que consolidou e tornou fatos consumados, por seus alavancamentos de produção a níveis respeitáveis e realmente significativos, a Petrobrás, a Eletrobrás, a Vale do Rio Doce, a CSN, o CNPq, o IMPA; que criou a Rede Ferroviária Federal, o DNER, as Usinas de Furnas e Três Marias, a Refinaria Duque de Caxias, a Universidade Federal, a SUDENE, o ITA-CTA, o IME, o CNEN, e tantas mais unidades públicas civis e militares que vieram a conquistar prestígio mundial nas diversas áreas do conhecimento e da infra-estrutura de estado; que garantiu e assegurou o monopólio estatal sobre todas as riquezas estratégicas nacionais; que multiplicou ferrovias, portos, aeroportos e rodovias; que gerou emprego com salários e condições dignas de vida e trabalho para as massas - além de modernizar e dar consistência ao aparato de estado com um Plano de Metas vitorioso e cumprido integralmente em menos de cinco anos, coroado com a construção e inauguração da maior e mais importante cidade-estado que o mundo viu ser concebida e edificada no século 20, ainda que debaixo de ininterrupta pancadaria e de boicotes sistemáticos orquestrados por poderes alienígenas e executados por marionetes locais contra a sua administração, como jamais se teve notícia neste país?

Eis aí, neste parágrafo sem pausa para fôlego e super resumido, onde nem entram as gestões do prefeito e do governador (Escola de Arquitetura, Escola de Belas Artes, Conservatório de Música, calçamento total da cidade, Pampulha, CEMIG, Usiminas, Mannesman, três mil quilômetros de rodovias, dezenas de autarquias e estatais, e muitos etcéteras), o mastro e a vela da nossa jangada.

Jango e Brizola eram do tipo que puxava o canivete na primeira provocação do caubói. Brizola tentou imitar o empreendedorismo juscelinista na sua gestão no governo do Rio de Janeiro, inclusive com a presença de Oscar Niemayer nos fronts arquitetônicos. Mas não soube contornar Roberto Marinho nem Lula, ambos a serviço do caubói para destruir tudo que ele conseguira. E destruíram mesmo. Gilberto chamou a atenção para o erro de Brizola na questão estética-televisiva. Juscelino jamais incorreria em tal erro. Aliás, ele soube combater também neste campo-de-guerra invisível da semiologia, trazendo os artistas ao seu lado e identificando-se na imortalidade de suas obras. Oswald de Andrade foi o primeiro a chamar a atenção nacional sobre o fenômeno Juscelino e a profetizar os grandes destinos de estadista que ele anteviu no prefeito de BH. Glauber Rocha disse que "Juscelino libertou a estética baiana". A trajetória de Juscelino era projetada na interface estética nacional através das obras iluminadas de uma plêiade de grandes artistas, imunizando-o contra os ataques doentios de uma mídia bem paga e desesperada para derrubá-lo.

Getúlio ficaria orgulhoso de seu herdeiro se fosse vivo para vê-lo em ação - seria o maior de seus aliados. Todo esse papo contra Juscelino de "abertura às multinacionais", "indústria automobilítica", "privilégios ao capital estrangeiro", "inflação galopante", "dívida externa", e outras conversas fiadas plantadas pelos estrategistas do Pentágono não o pegariam. Ele conhecia de cor e salteado essa ladainha, também contra ele foram imputados tais "entreguismos". A Ford entrou no Brasil em 1919, quando Rockefeller já mandava e desmandava por aqui. A GM veio logo depois. Oswald de Andrade anotou que a saída de Washington Luis e a entrada de Getúlio em 1930 aconteceu sob a observação - de camarote - do capital internacional. Há quem diga que a Proclamação da República não fora mais que uma quartelada para derrubar Pedro II, o qual se recusava a aceitar os cacos velhos das ferrovias inglesas que as companhias internacionais queriam nos enfiar goela abaixo. E enfiaram. A inflação no período Juscelino girou em torno dos 24% ao ano, em média. Nada de mais para quem como nós já vivemos inflação de 2.000% no governo Sarney. A dívida externa que Juscelino deixou era de U$ 2,7 bilhões (quando assumiu eram 2 U$ bilhões). Hoje é de quanto mesmo? No governo Juscelino o salário mínimo chegou ao topo dos U$ 188 (numa época em que um carro novo era vendido por U$ 1,000). E o trabalhador quase não pagava imposto direto ou indireto, tinha saúde e escola de graça para a sua família, gastava mixaria para comer e morar, e menos ainda para se transportar. Getúlio sabia o que era um estado forte, e que não conseguira fazer o Brasil forte em seus governos. Tentou por todas as vias, desde a criação do Conselho de Desenvolvimento Industrial e da Comissão Mista Brasil-EUA, trazer a colaboração internacional ao crescimento do país. Os EUA faziam beicinhos, nunca ajudaram. A Ford até publicou um relatório "científico" que dizia "não ser possível fundir motores automotivos nos países tropicais". Só vieram quando perceberam que os alemães (VW, DKW), os italianos (Alfa Romeo), os franceses (Simca) e os japoneses (Toyota) iam acabar fazendo o que eles não queriam que fosse feito, de jeito nenhum: contribuir ao crescimento econômico do Brasil, industrializando-o e equipando-o para a indústria automobilística. E contribuíram mesmo. Aí veio para cá a mixuruca Willys Overland. O Brasil só foi um estado forte no mandato de Juscelino. Pena que o mandato era curto e não permitia reeleição. Se lograsse um novo mandato, ia ele mesmo colocar o leme na jangada, e seríamos hoje a maior nação americana. De nada nos adiantou Jango peitar o caubói com reforma agrária, reformas de base, etc. Só fez o que o caubói queria: puxar o canivete. Jango estava certíssimo, ninguém pode negá-lo. Mas infelizmente o jogo político não é feito com as virtudes da razão, da sinceridade, da coragem e da justiça.

Tancredo, outro herdeiro legítimo de Getúlio na política brasileira, procurou sabiamente imitar Juscelino, nos mínimos detalhes, desde as suas viagens antes da posse que não houve. Fez o mesmo trajeto de Juscelino em 1955, por países da Europa e nos Estados Unidos, e procuraria imitá-lo se chegasse à Presidência. Mas o caubói já conhecia a história e não queria passar por outro vexame no sallon. Eliminou-o antes que começassem a jogar prá valer, ainda que Tancredo não tivesse puxado o canivete - pois nem o caubói nem o sallon se importam mais com os sacrifícios humanos.

E a jangada do Brasil permanece sem leme

(fim da provocação inicial, só para começo do debate).

Mario Drumond
BH 12/04/2005


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