Jangada do Brasil (a jangada do sul e o roteiro das minas)
"Três traves atadas entre si", expressão de Cãmara
Cascudo que define a jangada (ou a essência da jangada) poeticamente utilizada
por Gilberto Vasconcellos para definir a essência do trabalhismo no Brasil, na
epígrafe de seu belo ensaio Jangada do Sul. Felizmente ainda temos um
Gilberto Vasconcellos que nos salva do marasmo de mediocridade e conformismo na
análise histórico-política contemporânea. Unindo literatura (poesia), documento
e ciência, ele ilumina as biografias dos três maiores personagens da luta
trabalhista na política nacional: Getúlio, Jango e Brizola.
São três grandes heróis nacionais que hoje se unem na
imortalidade de seus espíritos dedicados à causa do Brasil, numa coincidência quase
mística que une também os seus restos mortais no descanso eterno em São Borja,
Rio Grande do Sul. Para mim, a maior virtude de Jangada do Sul está em
jogar o foco nos pensamentos lúcidos dos três grandes homens, pensamentos
"atados entre si", pela primeira vez colocados em primeiro plano da
análise histórica pelo valor que trazem à posteridade e pelo que acrescentam à
inteligência nacional, muito para além de suas próprias e inegavelmente
corajosas trajetórias políticas, que igualmente nos ensinam, mas nos fados das
tragédias, decepções, erros e derrotas, pontuadas por algumas poucas efemérides
de conquistas e vitórias, como sói acontecer nas biografias dos verdadeiros
heroís.
Chegará o dia em que nos livraremos da peste colonialista e
seus nomes e idéias ganharão o relevo merecido na memória coletiva nacional. Jangada
do Sul significa um passo importante nesta direção. A grande vitória da
"jangada do sul" será, pois, o legado da inteligência destes três
mestres que escreveram suas obras por ações, atitudes e pronunciamentos de
sabedoria política curada na faculdade da vida, a maior parte anotados pelo
escriba Darcy Ribeiro e desprezados pela intelligenzia brasileira. Gilberto as
sintetiza e as entrelaça na imagem de uma sólida e artesanal estrutura que
sobrevive quase ignorada, boiando à deriva no mar da miséria política em que
todos os seus sucessores naufragaram nos últimos quarenta anos. A pátria foi à
pique e Gilberto nos aponta a tábua de salvação: "três traves atadas entre
si".
Mas o texto tem também uma outra grande virtude. Ele traz um
convite especial a um debate que aceitamos de bom grado, até porque é um debate
que consideramos urgente e de crucial importância para o crescimento da nossa
análise histórica atual. Por outro lado, temos o dever de apontar escorregões
na casca de banana da paixão, no sentido de contribuir para a limpeza da
brilhante composição, propondo ao autor escoimá-la de cacos desnecessários e
irrelevantes, que só podem prejudicá-la.
Nota-se que à primitiva jangada definida por Cascudo, movida
e pilotada a remo, o jangadeiro apôs uma outra trave de fundamental importância
para fazê-la navegável nos mares altos e distantes: a trave vertical, fincada
na trave central, à vez de mastro para desfraldar a vela que recolhe a energia
dos ventos e a faz mover-se sem esforço humano. Uma outra quinta trave - móvel,
inclinada, apoiada na popa das três traves - será incluída na evolução da nave
a fim de torná-la pilotável, na direção desejada: o leme. Tal nave, completa em
sua evolução e pilotada pelo arguto caboclo - o maior de todos os marinheiros -
é a que o imperialismo mais teme. Contra ela mobiliza porta-aviões, cruzadores,
e destróiers a fim de impedí-la de chegar aos seus paradigmáticos destinos
históricos.
Gilberto, tal como a maioria dos melhores historiadores, só
percebeu a primeira etapa da evolução e da transcendência deste sutil projeto
de tecnologia nacional-nordestina, "de ponta", talvez porque ainda
ancorado na visão restrita e litorânea dos nossos destinos. A nossa jangada
simboliza a principal estratégia da política nacional. Ela já esteve a um passo
de se completar inteira, tem como rota priotária a conquista definitiva do
vasto território brasileiro, e passa pelas glórias das bandeiras e do roteiro
das minas.
A trave central da jangada, a que é a mais forte e mais
estrutural é, obviamente, Getúlio Vargas. Jango estaria à sua direita e Brizola
à esquerda. Juscelino é o mastro e a vela. Tancredo Neves seria o leme que
ainda nos falta. Todo o resto é torpedo contra a nossa jangada, mas nenhum
logrou botá-la a pique. Ela esta aí, à deriva, com a vela rota e esgarçada que
não logra recolher a tração dos ventos, e sem leme para lhe dar direção.
A análise da esquerda sobre o fenômeno Juscelino é uma
lástima - ela coloca seus autores no mesmo saco da direita raivosa, entreguista
e lacerdista. Tancredo sequer é considerado. Demonstram com isso uma falta de
estudo e de profundidade no exame dos registros históricos que nos legaram as
trajetórias dos dois mineiros. Nossos melhores autores, Gilberto inclusive, se
recusam a enxergar que foi o governo Juscelino o que mais ameaçou o
imperialismo anglo-ianque, sem dar-lhe chance de reagir com suas táticas sujas
e seus golpes baixos. Acuou os gringos e encostou-os nos lugares de onde nunca
deveriam ter saído, fazendo tudo o que eles sempre procuraram impedir: o
crescimento econômico nacional e a exploração das nossas riquezas naturais em
nosso próprio proveito. Frustrou-lhes, com malandragem e jogo de cintura, em
todas as tentativas civis e militares que urdiram contra o seu mandato, antes e
depois da posse. Soube como ninguém usar o legalismo quase obcessivo de Lott,
fazendo com que a força do inimigo funcionasse a seu favor. Ao contrário de
Jango e Brizola, apreendeu a astúcia de Getúlio, nunca batendo-se de frente com
um inimigo que sabia muito mais poderoso. Sabia esquivar-se, contornar,
driblar, blefar, e nenhum dos nossos poderosos inimigos encontraram em sua face
uma ruga sequer de temor ao combate. Encarava-os todos, rindo. Sozinho, conseguiu
anular o poderio nefasto dos interesses colonialistas marionetados aqui nos
Assis Chatobriãns, Robertos Marinhos, Lacerdas, as alas ultra-reacionárias
militares, as direitas civis mais extremadas, e até as igrejas - juntos! Com
ele no poder, 64 seria só mais uma quartelada inconsequente, como o foram as
que se moveram contra ele antes e depois de eleito, entre 1955 e 1960.
Gilberto escorrega quando diz que 64 foi para evitar a
eleição de Brizola em 65. Não há registro histórico que autorize uma afirmação
destas. É um caco que deveria ser banido de seu texto genial. A eleição de 65
era de Juscelino, que entrava no quarto ano de campanha com o Brasil inteiro (e
a CIA) sabendo que ninguém poderia derrotá-lo. Brizola seria, no máximo, o seu
vice. O PTB não se arriscaria a lançar candidato próprio contra uma candidatura
imbatível como a de Juscelino em 65, até porque foi no governo de Juscelino, e
não nos de Vargas e de Jango, que aquele partido gozou seu maior espaço de
poder e de crescimento. 64 tinha por objetivo impedir a eleição de Juscelino.
Para os estrategistas do império era ele, sem dúvida, o mais temido líder do
terceiro mundo.
Os historiadores "de esquerda" caem na conversa de
Caio Prado Júnior, o texto mais chato e inócuo que conheço. Acho que nenhum
cristão pode ter tanto pecado para pagar pela penitência que seria a leitura do
autor de Dialética do Conhecimento. Se Juscelino foi, segundo ele,
"o presidente mais entreguista que o Brasil já teve", então que sejam
os nossos presidentes entreguistas. Foi com Juscelino que o desemprego caiu a
quase zero e o salário mínimo atingiu o topo, real e mais justo, em toda a
nossa história - desde que foi criado.
O Brasil em 1955 era uma economia agrícola incipiente, com
um PIB medíocre e uma participação insignificante no comércio internacional.
Tínhamos uma bela legislação trabalhista mas não tínhamos uma classe
trabalhadora que dela se beneficiasse. A Petrobrás extraía míseros 8 mil
barris/dia e refinava menos de 100 mil. A Eletrobrás controlava uma geração
minúscula de energia elétrica, a partir de algumas banheiras que tinham nomes
de barragens. Volta Redonda era a menor planta possível da escala siderúrgica
de então. As nossas ferrovias eram obsoletas e deficitárias, assim como o seu
fumegante maquinário de marias-fumaças do início do século. Emprego era
sinônimo de funcionalismo público; fora das tetas governamentais uma meia dúzia
de dois ou três centros urbanos, que somados não davam uma São Paulo, podiam
ser classificados como capazes de gerar postos de trabalho em quantidades não
desprezíveis. Estradas de rodagem só em volta destes pequenos centros
comerciais e industriais, uma ínfima percentagem delas asfaltadas - no mais era
cavalo e carro de boi. Importávamos tudo, desde máquinas pesadas, navios e
veículos até alfinetes, linhas de costura e palitos de dentes. O Brasil era um
vasto território vazio de brasileiros que mal ocupavam uma estreita faixa
litorânea com cerca de 100 quilômetros de largura, em média. Éramos, enfim,
tudo o que o império queria que fôssemos: um depósito intocado de preciosas
matérias primas e recursos naturais de toda espécie, reservado em sua
totalidade para as estratégias futuras de sua expansão planetária.
Getúlio lutou como um leão para que saíssemos dessa
emperrada e anacrônica situação de subpaís-reserva-de-riquezas-para-os-outros.
No segundo mandato seu cansaço era visível. O jogo de poder fazia-se de uma
nova maneira desde o pós-guerra, para ele desconhecida e extremamente
desconfortável. Ele se via como um velho capiau munido de um canivete
enferrujado num jogo de pôquer contra um jovem caubói lustroso, a exibir seus
colts 45 de ouro ao sallon amedrontado. Sabia que era fácil ganhar, mesmo sendo
o caubói dono das regras e o rei do sallon (óbvio, não é possível ser-se mais
imbecil que um caubói) mas sabia também que se ganhasse não levaria. Tudo que o
caubói desejaria é que ele tirasse o canivete e o ameaçasse. Aí poderia fazer
valer as balas de prata do seu colt de ouro, com anuência da platéia submissa.
Como naquela época o caubói e o sallon ainda respeitavam o sacrifício humano,
Getúlio optou pela jogada genial, literalmente um xeque-mate, de enfiar o
canivete em seu próprio peito e garantir o legado de poucos e suados ganhos ao
seu herdeiro imediato. Getúlio via muito na frente dos outros e já sabia quem
seria este herdeiro imediato: Juscelino, o filho dileto, o qual conhecia bem
pelas gestões como prefeito de Belo Horizonte e governador de Minas Gerais, e
no qual cultivava as maiores esperanças de redenção da pátria e do povo que
amou como ninguém mais. Juscelino foi o único governador de estado que
compareceu ao enterro de Getúlio. Depois voltou ao sallon, sentou-se, fingiu-se
de bobo e fez o caubói de bobo, multiplicou por cem o cacife que herdadra de
Getúlio, e no final o sallon inteiro ria do caubói.
Numa viagem de avião para mostrar a imprensa onde seria
construída Brasília, uma jornalista francesa, depois de horas de sobrevôo sobre
o interminável cerrado, interpelou Juscelino: - Mas o senhor vai construir a capital
num deserto...isso é absurrdo! Ao que Juscelino retrucou, na hora: - Não, minha
filha, absurdo é o deserto.
Gênios desse naipe não dão sopa na história. Contam-se nos
dedos os que surgiram nos três milênios de civilização. Então, de onde vem esse
emburro com Juscelino?
Como pode ser chamado de entreguista o Presidente da
República que consolidou e tornou fatos consumados, por seus alavancamentos de
produção a níveis respeitáveis e realmente significativos, a Petrobrás, a
Eletrobrás, a Vale do Rio Doce, a CSN, o CNPq, o IMPA; que criou a Rede
Ferroviária Federal, o DNER, as Usinas de Furnas e Três Marias, a Refinaria
Duque de Caxias, a Universidade Federal, a SUDENE, o ITA-CTA, o IME, o CNEN, e
tantas mais unidades públicas civis e militares que vieram a conquistar
prestígio mundial nas diversas áreas do conhecimento e da infra-estrutura de
estado; que garantiu e assegurou o monopólio estatal sobre todas as riquezas
estratégicas nacionais; que multiplicou ferrovias, portos, aeroportos e
rodovias; que gerou emprego com salários e condições dignas de vida e trabalho
para as massas - além de modernizar e dar consistência ao aparato de estado com
um Plano de Metas vitorioso e cumprido integralmente em menos de cinco anos,
coroado com a construção e inauguração da maior e mais importante cidade-estado
que o mundo viu ser concebida e edificada no século 20, ainda que debaixo de
ininterrupta pancadaria e de boicotes sistemáticos orquestrados por poderes
alienígenas e executados por marionetes locais contra a sua administração, como
jamais se teve notícia neste país?
Eis aí, neste parágrafo sem pausa para fôlego e super
resumido, onde nem entram as gestões do prefeito e do governador (Escola de
Arquitetura, Escola de Belas Artes, Conservatório de Música, calçamento total
da cidade, Pampulha, CEMIG, Usiminas, Mannesman, três mil quilômetros de
rodovias, dezenas de autarquias e estatais, e muitos etcéteras), o mastro e a
vela da nossa jangada.
Jango e Brizola eram do tipo que puxava o canivete na
primeira provocação do caubói. Brizola tentou imitar o empreendedorismo
juscelinista na sua gestão no governo do Rio de Janeiro, inclusive com a
presença de Oscar Niemayer nos fronts arquitetônicos. Mas não soube contornar
Roberto Marinho nem Lula, ambos a serviço do caubói para destruir tudo que ele
conseguira. E destruíram mesmo. Gilberto chamou a atenção para o erro de
Brizola na questão estética-televisiva. Juscelino jamais incorreria em tal
erro. Aliás, ele soube combater também neste campo-de-guerra invisível da semiologia,
trazendo os artistas ao seu lado e identificando-se na imortalidade de suas
obras. Oswald de Andrade foi o primeiro a chamar a atenção nacional sobre o
fenômeno Juscelino e a profetizar os grandes destinos de estadista que ele
anteviu no prefeito de BH. Glauber Rocha disse que "Juscelino libertou a
estética baiana". A trajetória de Juscelino era projetada na interface
estética nacional através das obras iluminadas de uma plêiade de grandes
artistas, imunizando-o contra os ataques doentios de uma mídia bem paga e
desesperada para derrubá-lo.
Getúlio ficaria orgulhoso de seu herdeiro se fosse vivo para
vê-lo em ação - seria o maior de seus aliados. Todo esse papo contra Juscelino
de "abertura às multinacionais", "indústria
automobilítica", "privilégios ao capital estrangeiro",
"inflação galopante", "dívida externa", e outras conversas
fiadas plantadas pelos estrategistas do Pentágono não o pegariam. Ele conhecia
de cor e salteado essa ladainha, também contra ele foram imputados tais
"entreguismos". A Ford entrou no Brasil em 1919, quando Rockefeller
já mandava e desmandava por aqui. A GM veio logo depois. Oswald de Andrade
anotou que a saída de Washington Luis e a entrada de Getúlio em 1930 aconteceu
sob a observação - de camarote - do capital internacional. Há quem diga que a
Proclamação da República não fora mais que uma quartelada para derrubar Pedro
II, o qual se recusava a aceitar os cacos velhos das ferrovias inglesas que as
companhias internacionais queriam nos enfiar goela abaixo. E enfiaram. A
inflação no período Juscelino girou em torno dos 24% ao ano, em média. Nada de
mais para quem como nós já vivemos inflação de 2.000% no governo Sarney. A
dívida externa que Juscelino deixou era de U$ 2,7 bilhões (quando assumiu eram
2 U$ bilhões). Hoje é de quanto mesmo? No governo Juscelino o salário mínimo
chegou ao topo dos U$ 188 (numa época em que um carro novo era vendido por U$
1,000). E o trabalhador quase não pagava imposto direto ou indireto, tinha
saúde e escola de graça para a sua família, gastava mixaria para comer e morar,
e menos ainda para se transportar. Getúlio sabia o que era um estado forte, e
que não conseguira fazer o Brasil forte em seus governos. Tentou por todas as
vias, desde a criação do Conselho de Desenvolvimento Industrial e da Comissão
Mista Brasil-EUA, trazer a colaboração internacional ao crescimento do país. Os
EUA faziam beicinhos, nunca ajudaram. A Ford até publicou um relatório
"científico" que dizia "não ser possível fundir motores
automotivos nos países tropicais". Só vieram quando perceberam que os
alemães (VW, DKW), os italianos (Alfa Romeo), os franceses (Simca) e os
japoneses (Toyota) iam acabar fazendo o que eles não queriam que fosse feito,
de jeito nenhum: contribuir ao crescimento econômico do Brasil, industrializando-o
e equipando-o para a indústria automobilística. E contribuíram mesmo. Aí veio
para cá a mixuruca Willys Overland. O Brasil só foi um estado forte no mandato
de Juscelino. Pena que o mandato era curto e não permitia reeleição. Se
lograsse um novo mandato, ia ele mesmo colocar o leme na jangada, e seríamos
hoje a maior nação americana. De nada nos adiantou Jango peitar o caubói com
reforma agrária, reformas de base, etc. Só fez o que o caubói queria: puxar o
canivete. Jango estava certíssimo, ninguém pode negá-lo. Mas infelizmente o
jogo político não é feito com as virtudes da razão, da sinceridade, da coragem
e da justiça.
Tancredo, outro herdeiro legítimo de Getúlio na política
brasileira, procurou sabiamente imitar Juscelino, nos mínimos detalhes, desde
as suas viagens antes da posse que não houve. Fez o mesmo trajeto de Juscelino
em 1955, por países da Europa e nos Estados Unidos, e procuraria imitá-lo se
chegasse à Presidência. Mas o caubói já conhecia a história e não queria passar
por outro vexame no sallon. Eliminou-o antes que começassem a jogar prá valer,
ainda que Tancredo não tivesse puxado o canivete - pois nem o caubói nem o
sallon se importam mais com os sacrifícios humanos.
E a jangada do Brasil permanece sem leme
(fim da provocação inicial, só para começo do debate).
Mario Drumond
BH 12/04/2005
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