A
PEQUENA ESTÓRIA DA BUNEKA
Fabio Carvalho
O cinema é a arte de filmar a morte em seu trabalho.
Jean Cocteau
Desde criança era atraído por aqueles seres diferentes que não tinham casa e
moravam na rua. Esse fascínio era também formado pelo medo da impressão que me
rondava: talvez pudesse me tornar um deles, medo que só me abandonou há poucos
anos, quando percebi definitivamente que não tenho vocação para tamanha
liberdade. Assim o mestre Jean Renoir definiu o homem da rua: o único ser
humano totalmente livre. Livre do relógio, livre dos compromissos, livre das
satisfações, livre das obrigações, livre do retorno e de tudo mais, será? Não
sei dizer. O que sei é que muitos, ao contrário do que se imagina, levam a vida
assim por opção consciente ou inconsciente. Não mais aceitariam trocar essa
forma de existência por um endereço fixo com todas as limitações que este
conforto acarreta. Antes de adentrar no assunto que me proponho escrevendo este
texto, vou ilustrar o que afirmo acima com o que me contou um senhor meu amigo
no café Benza Deus outro dia pela manhã. Ele foi jantar com sua mulher num
restaurante muito bom perto do seu escritório. Após se fartarem de beber e
comer, ainda restou muita comida, então ele pediu que a embalassem para levar.
No caminho até o carro, se lembrou daquele homem que dorme debaixo da marquise
na porta do seu trabalho, com quem nunca tinha trocado uma palavra. Teve uma
crise filantrópica. Consultou a mulher se poderia dar a quentinha para o homem,
prontamente ela concordou, achando que cumpririam uma boa ação pra fechar com
chave-de-ouro aquela noite. O homem, que poderia ser mais velho que ele, estava
encostado na parede, olhando para o outro lado, fumando uma beata que ninguém
sabe de quê. Ele se aproximou e disse, extendendo o embrulho: “ô meu amigo,
trouxe essa comida para você, tá quentinha viu?" No que o homem respondeu
sem se alterar a virar para ele: “em
primeiro lugar não sou seu amigo, em segundo não lhe pedi nada, portanto boa
noite e passar bem”.
São
diferenças que precisam ser observadas, nem todo morador de rua é mendigo ou
pedinte, muito menos recebe donativos. Voltando ao meu nariz, comecei a lembrar
das figuras da rua que perpassam meus caminhos pela vida afora. Que beleza esse
meu reencontro hoje com meus papéis, minhas palavras vagantes e minha janela do
infinito depois de uma curta temporada em Sampa e de um pit-stop nas serras da
Mantiqueira, ainda mais, isto acontecendo no exato dia das manifestações
contrárias à FIFA que inicia seus trabalhos excusos daqui a pouquinho. A
barulhada vista de cima só aumenta. Pois bem, vamos às minhas personagens. Com
a cronologia bastante alterada na ordem de aparição, começo por aquele que
andava sempre com uma vara de pescar e enrolando os fios de sua enorme barba
branca, repetindo aos berros nos momentos de surto, que o mar estava chegando e
que isto ele podia afirmar, pois tinha ouvido e aprendido o que os antigos do
fundo da terra vieram lhe contar. Em
geral ele era muito calmo e estava sempre com um leve sorriso na boca, como se
estivesse se lembrando de alguma coisa boa. Sonhei o Guará fazendo este
personagem. Meu Sabiá meu violão. Hoje, treze e treze no relógio, vejo pela
janela um urubu voando em círculos bem acima das nuvens, depois em espiral veio
descendo e continua, até o momento que eu tive que sair. Saí. Agora amor
Doralice meu bem como é que nós vamos fazer? Outra noite transei a lua cheia
iluminando o horizonte daquela Sexta-Feira friorenta de Julho. Voltando para
muito antes, lembro-me bem da Tereza, uma senhora magra que vagava por vários
bairros de BH, vestida com longos vestidos coloridos, com uma cabeleira malhada
até os ombros, sempre borrocada por todo rosto enrugado com um batom vermelho
sangue, que ela descolava não sei onde. Era muito tranquila e sorridente.
Mereceu como reconhecimento pela sua personagem notável um filme de
curta-metragem feito pela Andréia Queiroga no fim dos anos oitenta. A cena
final, muito bonita, era exatamente ela se pintando, olhando a lente da câmera
como um espelho. Tinha também aquela mulher morena com os cabelos escorridos
que, durante anos a fio, ficou em pé parada numa esquina da Savassi ao lado do
La Casa di Ireni. Contam que ela tinha perdido um filho que sumiu quando
retornava da escola, então ela ficou ali esperando ele reaparecer do
desaparecimento, em uma parte de outro mundo onde ela esperava. Era uma espécie
de História de Adele H., amor para sempre irredutível e paralisado, no caso
amor de mãe para com o filho homem, uma Jocasta por assim dizer. O que me
interessa no cinema é a abstração, disse o Orson Welles. Finalmente cheguei a
um dos grandes personagens da minha infância: Tião Beiçola. Este pra mim um
caso à parte. Também já mereceu uma citação em outro curta-metragem mais
recente do Gilberto Scarpa. Um breve devaneio levou-me para outro assunto, não
posso esquecer o seu olhar, longe dos olhos meus. Naquele tempo na Barroca
pouco habitada éramos um bando, quem sabe um cardume. Enquanto corríamos nas
ruas de paralelepípedo atrás da bola de plástico branco manchado que o
borracheiro da rua de cima encheu com sua bomba de ar, um vento cinza trazia a
notícia que ele, o Beiçola, ia passar por ali. Enfim a aventura. Bólido, nosso grupo trepava no
murinho baixo do alpendre da Dona Alzira, em seguida alcançava os galhos altos
da Mangueira com mais folhagens e lá, nos achando bem escondidos, virávamos um
olho só. Aos cochichos esperávamos aquela figura passar, num misto de medo e
excitação. Passados alguns minutos, ele vinha subindo com passos vigorosos pelo
meio da rua, onde raramente surgia um carro, parecendo o Popeye, careca com
orelhas grandes e um boné virado para trás, coisa pouco comum naquela época.
Tinha
uma beiçorra etiópica, como indica seu apelido, invariavelmente com uma baba
gosmenta enlaçada, se equilibrando nos movimentos à frente da feição
enfurecida. Olhava com olhos lassos para todos os lados procurando avistar alguém,
se sabendo observado e excluído, bastante desconfiado, passava como um desfile
de Sete de Setembro, solene e achincalhado pelas maledicências da região. As
boas e as más línguas contavam que ele, no passado recente, tinha tido um
delírio sanguinário canibal: picado, cozinhado e devorado até os ossos um
adolescente num ritual satânico. Várias são as versões sobre sua história. Era
um Ogro com síndrome e fama. Acho que no fundo ele só queria ter alguém para
conversar, mas ninguém estava interessado. Imprima-se a lenda. Mais pra frente,
já na Serra, observei o Bréia que, ao contrário do Beiçola, era queridíssimo.
Morava em frente uma banca de jornal na curvinha da Rua Amapá. Todos se
preocupavam com ele: se tinha comido ou não, se estava com frio, onde ele
estava se não estava no seu posto, e assim por diante. Soube que morou por
muitos anos em um asilo mantido pela vizinhança e hoje montou sua própria banca
de jornal num bairro distante, e vive por lá muito bem, acho que ele já deve
estar beirando os oitenta. Em fim um final feliz. Precisemos. O cinema está a
caminho de tão simplesmente tornar-se um meio de expressão, isso que foram
todas as artes antes dele, isso o que foram em particular a pintura e o
romance. Após ter sido sucessivamente uma atração de feira, uma diversão
análoga ao teatro de boulevard, ou um meio de conservar imagens da época, ele
se torna pouco a pouco, uma linguagem. Escreveu Alexandre Astruc em 1948. Na
Serra também havia uma andarilha, agora desaparecida, que era chamada de Tina Turner.
Nunca mais recobrei os sentidos depois daqueles momentos loucos quando escrevia
sem direção, hoje continuo, mesmo tendo atravessado as montanhas em outra
aliteração. A Tina Turner era uma mulata franzina com pernas fortes que deixava
à mostra, abaixo das mini saias coloridas que ela trocava a cada dia. Tinha um
cabelo alisado, pintado de amarelo até os ombros. Nunca falava nem pedia nada
pra ninguém parava em frente vitrines e dava um show, fingia cantar rebolando
de verdade, para seu público que era exatamente seu reflexo. Sempre um bom
número de transeuntes parava para ver, o que para ela era indiferente. Há algum
tempo ninguém sabe o seu paradeiro. Ela
sumiu, partiu, pra nunca mais voltar. Não voltou não. Cantava Tim Maia,
acompanhado por um coro feminino. Ainda na minha primeira infância, quando
tinha cinco ou seis anos, morava numa casa que o fundo dava para um lote vago
com um matagal e muitas árvores. Do lado de dentro da casa o muro tinha um
metro e meio mais ou menos, o lote ficava uns quatro metros abaixo. Depois mais
a frente fiz várias expedições por lá, envolvendo escaladas e caçadas às
ratazanas com espingarda de chumbinho. Pois bem, nesse primeiro período
apareceu por lá um homem claro, barbudo e cabeludo, com duas moças maltrapilhas
com trouxas nas cabeças e alguns cachorros ao redor. Lá de baixo falou com meu
pai que tinha vindo do interior com as duas, que segundo ele, eram a sua esposa
e a irmã dela, elas teriam perdido os pais. Ele explicou que estava pretendendo
passar um tempo acampado por ali, porque tinha sido roubado na rodoviária e
precisava fazer uns biscates para arrumar um dinheiro, até poder descolar um
barraco para eles se acomodarem. Meu pai disse que tudo bem, o lote nem era
dele e só pediu para eles não fazerem barulho à noite, nem deixarem que pegasse
fogo na mata do lote, o que poderia causar um grave acidente. Eles foram
ficando por ali, lá em casa desenvolvemos um sistema de corda, que descíamos
com comida que minha mãe separava da nossa, três vezes ao dia, para eles. Era uma pensão completa.
Todo dia, no final da manhã, antes de ir para a escola eu ficava dependurado no
muro conversando com ele, que era muito falador e engraçado, ao contrário das
meninas que praticamente nem os olhos levantavam para minha direção lá em cima.
Uma manhã de domingo, cedo, ainda clareando, acordei todo molhado de xixi, o
que às vezes me acontecia, e ouvi meu cachorro perdigueiro gemendo muito lá no
quintal. Ninguém ainda tinha se levantado, então resolvi ir lá ver o que estava
acontecendo. Meu cachorro estava em pé sobre duas patas, com as outras duas
apoiadas no canto do muro balançando o rabo, só que não era ele que gemia.
Trepei no muro e olhando na direção do som, por entre as folhagens, pude ver os
três completamente nus deitados sobre um lençol quadriculado engalfinhando-se
num balé esquisito. Um ménage a trois ou uma suruba, como se diz por aqui.
Prendi a respiração para que não fosse percebido e assisti aquela cena dantesca
para minha tenra idade até o final. Fiquei por anos sem me lembrar disso, agora
essas imagens me voltaram como se as tivesse visto ontem. Acho que no dia
seguinte eles desapareceram, não sei bem o que houve, mas acredito que a
vizinhança deve ter corrido com eles dali, provavelmente não fui só eu que ouvi
aqueles gemidos. Parto direto para estória da Buneka, simplesmente por preguiça
de continuar desfiando minha coleção de personagens da rua. Pois bem, ela é
mulata, com o cabelo sarará, cheio para cima e ralo para baixo, magrela como um
caniço, reta como um homem. Nenhuma curva na sua compleição física. Mesmo
quando grávida, que sempre acontecia, sua barriga ficava pontiaguda como
triangulo e nunca redonda. Muitos falam que formato assim nasce homem, como o
improvável acontece, ela teve meninas também. Nem sabe quantos filhos já pariu,
acha que no total foram treze, e treze é Galo. Muito bem conversada e simpática
para muitos, está sempre precisando de uma ajudinha para comprar o leitinho de
cada dia, para tanto com seu sorriso 1001 conquistou os mais diversos colaboradores
pelo bairro, que depois do susto da primeira visão, se compadeciam da sua
figura desprovida de atrativos. Dizem
que prestava certos favores para comerciantes e moradores: quando as turminhas
de usuários de crack, conhecidos por noiados, se instalavam nas imediações das
suas propriedades, na madrugada munida de pedras ou algum pedaço de pau ela
botava todos para correr, limpando a área, recebendo seus merecidos vinte
reais. Assim ia levando a vida até que por um período desapareceu. Começaram as
especulações. Alguns afirmavam que ela tinha sido morta em seguida desovada num
local próximo ao Hospital da Baleia, que era conhecido para esse fim, outros
que ela estava passando uma temporada no xadrez, ou ainda, tinha sido recolhida
em um desses albergues para indigentes. As versões do seu assassinato eram
várias. A mais frequente era que ela tinha sido enfiada dentro de um carro na
Rua Oriente, junto com seu atual comparsa, e levada para a tal desova. Seus
sequestradores seriam conhecidos matadores de aluguel. Surgiram requintadas
narrativas de como este assassinato teria sido feito. Sereno dos meus olhos já
correu. O mais criativo me deu muito a imaginar. Disseram que ela teria sido
decapitada em seguida toda separada em partes e, como a Elisa Samudio do caso
Bruno, jogada para os cães comerem. Eu ficava pensando no seu rosto triste, no
momento em que percebeu o que fariam com ela. Senti muito esta suposta morte.
Passados uns dois meses a voz da rua só falava que ela tinha voltado, e que
estava até gordinha. Realmente logo a reencontrei, dei os dois reais de praxe,
e ela me deu um anel para eu dar para minha “namorada”. A vida na Serra voltou
ao normal.
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