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segunda-feira, 11 de agosto de 2014

CINEMA


Antonioni e Brasília    
Desde os anos 1970 passei a alimentar uma curiosidade que não podia, e agora definitivamente não pode, ser satisfeita: como Michelangelo Antonioni filmaria Brasília, que parece ter sido concebida e construida para que ele a usasse como cenário. Quem conhece a obra do mestre cineasta italiano sabe porque estou dizendo isso. Essa relação paisagem urbana/artista já foi abordada em reflexões tanto de arquitetos como de críticos de cinema e está lastreada pelo estilo antoniônico que soma frieza e modernidade, paredes invisíveis entre as pessoas e espaços que se abrem para o nada, o diálogo entre filosofia e arquitetura, sentimentos e cimento, almas assustadas e concreto armado. Aquela linguagem cantada por Caetano Veloso em seu tributo ao mestre dos planos longos e profundos: “visione del silenzio /
angolo vuoto / pagina senza parole /
una lettera scritta /
sopra un viso /
di pietra e vapore /
amore / inutile finestra”.
Refiro-me basicamente à Trilogia da Incomunicabilidade (A aventuraA noiteO eclipse), realizada na virada das décadas 1950/1960, mas a arquitetura ou a paisagem urbana têm grande importância dramática em outros filmes de sua lavra como O gritoBlow upProfissão: reporter. Antonioni se encantou com Brasília logo depois de sua construção, vendo fotos e filmes da arquitetura curvilínea e sensual de Niemeyer, e aportou na cidade em 1970 ou 71, para sentir sua atmosfera e escolher locações para um filme que desejava ardentemente fazer, Tecnicamente dolce, locado em Brasília e Amazônia e abordando uma fronteira da incomunicabilidade: o canibalismo.
O filme não foi feito e a versão que prevaleceu dessa irrealização é que o produtor Carlo Ponti desistiu do projeto, optando por Blow up, com mais possibilidades de bilheteria. Mas nos anos 1970 a informação corrente era que Tecnicamente doce tinha sido vetado pela ditadura. Rememoro essa história porque um duplo acontecimento me levou a ela esta semana: pela primeira vez tive acesso ao roteiro de Tecnicamente doce, publicado pelo próprio Antonioni em 1976, e na noite passada sonhei com imagens antoniônicas, Monica Vitti andando entre as torres e as partes da esfera seccionada do Congresso Nacional. Adorei sonhar esse sonho mas a crua realidade é que Antonioni, pelas razões financeiras de Ponti ou pela grossura ideológica da ditadura brasileira, não conseguiu concretizar o seu.
Talvez outra razão, essa indireta, também me levou ao inexistente Tecnicamente doce: filmes pensados por grandes cineastas que não foram realizados. Cito Monsieur Verdoux, projeto que Orson Welles não conseguiu fazer na Hollywood dos anos 1940 porque estava vetado pelos estúdios por ordem de Randolph Hearst, o grande empresário midiático retratado em Cidadão Kane. Welles cedeu o roteiro a Charles Chaplin e Chaplin fez o seu Verdoux, libelo contra a guerra, a hipocrisia e o cinismo. Gênios incontestáveis do cinema, tiveram de sair dos EUA e exilar-se na Europa, Chaplin acusado de comunista e Welles porque tinha “desmoralizado” o rei da imprensa. O filme de Chaplin é uma maravilha, mas fico pensando em como seria o de Welles. 
Vamos ficando por aqui porque, evidentemente, baixou em mim um caboclo cinéfilo e a cinefilia induz a conversas intermináveis. Se continuo não sei onde vou parar, mas possivelmente chegaria a Kleber Mendonça Filho e à tensão social urbana do seu nunca demais louvado O som ao redor. Juntando as coisas: Mark Peploe, roteirista de filmes de Antonioni e Bertolucci, que participou no roteiro de Tecnicamente doce, revelou recentemente que tem outro roteiro inédito escrito com Antonioni, The crew (A tripulação), e convidou Kleber Mendonça Filho para dirigi-lo. Viva Pernambuco, cada vez mais falando para o mundo. 
Por Orlando Senna

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