Antonioni e Brasília
Desde
os anos 1970 passei a alimentar uma curiosidade que não podia, e agora
definitivamente não pode, ser satisfeita: como Michelangelo Antonioni
filmaria Brasília, que parece ter sido concebida e construida para que
ele a usasse como cenário. Quem conhece a obra do mestre cineasta
italiano sabe porque estou dizendo isso. Essa relação paisagem
urbana/artista já foi abordada em reflexões tanto de arquitetos como de
críticos de cinema e está lastreada pelo estilo antoniônico que soma
frieza e modernidade, paredes invisíveis entre as pessoas e espaços que
se abrem para o nada, o diálogo entre filosofia e arquitetura,
sentimentos e cimento, almas assustadas e concreto armado. Aquela
linguagem cantada por Caetano Veloso em seu tributo ao mestre dos planos
longos e profundos: “visione del silenzio /
angolo vuoto / pagina senza
parole /
una lettera scritta /
sopra un viso /
di pietra e vapore
/
amore / inutile finestra”.
Refiro-me basicamente à Trilogia da Incomunicabilidade (A aventura, A noite, O eclipse),
realizada na virada das décadas 1950/1960, mas a arquitetura ou a
paisagem urbana têm grande importância dramática em outros filmes de sua
lavra como O grito, Blow up, Profissão: reporter.
Antonioni se encantou com Brasília logo depois de sua construção, vendo
fotos e filmes da arquitetura curvilínea e sensual de Niemeyer, e
aportou na cidade em 1970 ou 71, para sentir sua atmosfera e escolher
locações para um filme que desejava ardentemente fazer, Tecnicamente dolce, locado em Brasília e Amazônia e abordando uma fronteira da incomunicabilidade: o canibalismo.
O
filme não foi feito e a versão que prevaleceu dessa irrealização é que o
produtor Carlo Ponti desistiu do projeto, optando por Blow up, com mais possibilidades de bilheteria. Mas nos anos 1970 a informação corrente era que Tecnicamente doce tinha
sido vetado pela ditadura. Rememoro essa história porque um duplo
acontecimento me levou a ela esta semana: pela primeira vez tive acesso
ao roteiro de Tecnicamente doce, publicado pelo próprio Antonioni
em 1976, e na noite passada sonhei com imagens antoniônicas, Monica
Vitti andando entre as torres e as partes da esfera seccionada do
Congresso Nacional. Adorei sonhar esse sonho mas a crua realidade é que
Antonioni, pelas razões financeiras de Ponti ou pela grossura ideológica
da ditadura brasileira, não conseguiu concretizar o seu.
Talvez outra razão, essa indireta, também me levou ao inexistente Tecnicamente doce: filmes pensados por grandes cineastas que não foram realizados. Cito Monsieur Verdoux,
projeto que Orson Welles não conseguiu fazer na Hollywood dos anos 1940
porque estava vetado pelos estúdios por ordem de Randolph Hearst, o
grande empresário midiático retratado em Cidadão Kane. Welles cedeu o roteiro a Charles Chaplin e Chaplin fez o seu Verdoux,
libelo contra a guerra, a hipocrisia e o cinismo. Gênios incontestáveis
do cinema, tiveram de sair dos EUA e exilar-se na Europa, Chaplin
acusado de comunista e Welles porque tinha “desmoralizado” o rei da
imprensa. O filme de Chaplin é uma maravilha, mas fico pensando em como
seria o de Welles.
Vamos
ficando por aqui porque, evidentemente, baixou em mim um caboclo
cinéfilo e a cinefilia induz a conversas intermináveis. Se continuo não
sei onde vou parar, mas possivelmente chegaria a Kleber Mendonça Filho e
à tensão social urbana do seu nunca demais louvado O som ao redor. Juntando as coisas: Mark Peploe, roteirista de filmes de Antonioni e Bertolucci, que participou no roteiro de Tecnicamente doce, revelou recentemente que tem outro roteiro inédito escrito com Antonioni, The crew (A tripulação), e convidou Kleber Mendonça Filho para dirigi-lo. Viva Pernambuco, cada vez mais falando para o mundo.
Por Orlando Senna
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