O Karl Marx de Oswald de Andrade na Floresta dos Trópicos
Gilberto Felisberto
Vasconcellos
Até hoje Oswald de Andrade é
considerado um escritor politicamente chapa branca durante a República Velha,
quase que um escritor oficial por causa de sua amizade com Júlio Prestes,
Washington Luís, Dona Olívia Guedes Penteado, proprietário de terrenos na
cidade de São Paulo, casado com Tarsila do Amaral, uma talentosa artista filha
do latifúndio, “vivendo nas altas rodas, dissoluto, dandy e possuidor dos
carros Cadilac e Alfa Romeu, bom de conversa, exuberante, mas que não lia coisa
nenhuma, desprovido de caráter, frasista, pilhérico, moleque, excêntrico,
pândego, escrevendo em francês cosmopolita, sedutor e conquistador do mulherio,
exibidor das namoradas, recebendo favores políticos do PRP, catolicão,
puxa-saco do Papa, vinculado à política oligárquica e imperialista do café,
esbanjando dinheiro em viagens conspícuas à Europa, bancado pela família, filho
mimado e cioso de atenção, sibarita, querendo agradar o estrangeiro com
exotismo primitivista, tirando o dele da reta quando da revolução de 24 em São
Paulo, alheio e distante da Coluna Prestes, e mais chegado ao five-o-clock da
existência, enfim, um burguês patriarcal, autofágico em sêmen e herança,
dilapidado pela crise do café em 1929”.
Tudo isso foi construído por alguns de seus
amigos de geração e, mais tarde em 1934, referendado pelas lentes da USP que
substituíram os modernistas, assim com o “boom” das ciências sociais deixou no
ostracismo os romancistas de 30 na interpretação da realidade brasileira.
É evidente que há muito de moralismo
nesse juízo sobre Oswald de Andrade, além de uma apreciação crítica equivocada
que não consegue dar conta da antinomia entre o artista renovador (cuja
linguagem literária despertará interesse e admiração nos movimentos da arte
brasileira, na poesia, no teatro, no cinema) e o conformista adulador da
política oligárquica a mando da City imperialista durante a República Velha. A
impressão que se tem dessa crítica professoral e de esquerda abstrata é que
queriam-no em 1917 marxista, comunista, leninista, trotskista, ou senão membro
do partidão já em 1922, sendo que pertencer ao Partido Comunista Brasileiro não
significa ser necessariamente marxista e comunista, e muito menos uma garantia
contra a mentalidade colonizada. A dimensão bifronte do Oswald de Andrade –
esteticismo e alienação política – denunciado por gente séria de esquerda
esquece que a forma literária é política e a vida não anda em linha reta, tanto
que Mário Pedrosa, o paraibano apaixonado por Trotsky, um dos mais importantes
intelectuais da esquerda brasileira, fundador na década de 70 do Partido dos
Trabalhadores, filiou-se em 1945 à UDN que deu o golpe liberal de 1964. A Poesia Pau Brasil. O Manifesto Pau Brasil. Memórias Sentimentais de João Miramar. É
nesses livros de alta literatura produzidos na década de 20, junto com a
pintura da flora e da fauna nos quadros de Tarsila do Amaral, que se encontram
os germens da virada “equatorial” da Antropofagia e do jornalismo marxista de O Homem do Povo, cujo nível de
composição estética não deixa nada a dever a nenhum jornal revolucionário e
anticapitalista no mundo inteiro.
Em 1933 era a hora do teatro libertário O Rei da Vela, de modo que não tem o
menor cabimento afirmar que a revolução de 30 liquidou com o lance criativo de
Oswald de Andrade, afastando-o do centro da arena, por terem sido abalados os
alicerces do way of life da República Velha, onde o seu amigo Júlio Prestes foi
o representante do imperialismo inglês, e seu padrinho de casamento com Tarsila
– Washington Luís – o Presidente da República de 1925 a 1930, que apoiou o
educador Fernando Azevedo e foi no entanto contra o voto secreto, justamente no
período de maior garra modernista de Oswald de Andrade, a qual absolutamente
não se perdeu depois que se tornou marxista em 1930. Ele continuou sendo
modernista marxista, a mesma linguagem da poesia vegetal Pau Brasil é a do
teatro O Rei da Vela, insurgindo-se
contra os grupos multinacionais e seus testas-de-ferro nativos, com o detalhe
de que foi com o apoio de Washington Luís que Júlio Prestes havia sido eleito
Presidente da República logo nos primeiros meses da década de 30. Nesse
contexto não foi o colapso da Bolsa de Nova York de 1929 que teria levado o
viajor Miramar a virar marxista nos braços da encantadora Pagu.
É
preciso tomar cuidado com a anedótica psicanálise amorosa do modernismo
brasileiro mesclada aos clichês do surrealismo francês, a exemplo do fascínio
de Oswald de Andrade por Pagu, em virtude desta representar a rebeldia juvenil
politizada, no momento em que desmorona
o lar de Tarsila simultaneamente à queda do PRP. É de morrer de rir
querer psicanalisar Oswald de Andrade por um ânimo sexual caçando escândalo, que
dá na saga de Pagu convertendo-o ao marxismo pelo desejo freudiano. Em suas
transas com as mulheres o autor de Serafim
Ponte Grande é visto como se fosse um “bárbaro, edipiano, débil mental,
enraivecido e a fim possuir a sua mãe, D. Inês, sob porrada e castigo, para
vingar sadicamente os mimos e bons tratos recebido na infância da rua Barão de
Itapetininga...” (1)
Talvez para outros intelectuais e
artistas do modernismo – aliás nenhum deles se tornara marxista como Oswald de
Andrade – a revolução de 30 foi equivocadamente entendida por muitos paulistas
como um acontecimento contra São Paulo, e não contra as oligarquias de São
Paulo. E, na verdade, com a revolução de 30 São Paulo se deu melhor que o
governo Washington Luís que aprisionou a economia do café. É surpreendente que,
logo no calor da hora, Oswald de Andrade tenha sido a favor da revolução de 30.
Ele não embarcou na contra-revolução de 1932. A propósito basta cotejá-lo com o
democrata e liberal Paulo Duarte, do jornal O
Estado de São Paulo, que foi delegado de ordem política e inimigo do
tenentista João Alberto interventor em São Paulo, acusando-o de comunista.
A
interpretação psicologizante da busca da rebeldia pelo seu envolvimento com
Pagu é tão equivocada quanto dizer que ele se tornou comunista porque sua
fortuna ficou abalada em 1929. Em 1931 Pagu e Oswald de Andrade vão se
encontrar com Luís Carlos Prestes no Uruguai. Embora tenha se impressionado com
a cultura do ex-tenentista, é arriscado afirmar que sua adesão ao marxismo
tenha sido por causa desse encontro em Montevidéu. Menos importante do que
enfatizar o erro de sua avaliação quanto à cultura marxista de Prestes nessa
época, que não era leitor de Fuerbach e de Hegel, vale mais chamar atenção para
o fato de que a descoberta oswaldiana de Marx, conforme se observa no jornal O Homem do Povo de 1931, não anula o
lastro intelectual de seu passado antropofágico; ao contrário, é justamente
isso que o diferencia enquanto marxista durante as décadas de 30, 40, e 50, ao
insistir na floresta dos trópicos e na humanidade indígena como elementos que
conferem especificidade ao Novo Mundo na América do Sul, e que terá alguns
pontos de convergência com a antropologia dialética desenvolvida por Darcy
Ribeiro apenas nos finais da década de 60, embora o educador dos Cieps não
tenha reconhecido a filiação antropofágica oswaldiana na conceituação de “povo
novo”. Seria forçar a barra da literatura comparada sustentar que é o
canibalismo dadaísta e futurista o elemento fecundador da antropofágica visão
de mundo de Oswald de Andrade, a qual ele nunca abandonou até o fim da vida,
cuja essência é a reflexão sobre o binômio natureza e colônia, trazendo um
ângulo novo no plano da cultura, indo além da interpretação do Brasil como uma
empresa colonial do capitalismo mercantil.
É
por isso que o foco de sua análise é o ócio, e não o trabalho escravo e
assalariado, e que pode ser considerada uma original contribuição à crítica da
cultura no século XX, de modo que foi uma vantagem Oswald de Andrade, o poeta
modernista do Pau Brasil, ter
descoberto a floresta dos trópicos antes do conhecimento teórico de Marx e
Engels. A preguiça solar. A energia silenciosa. A vegetação. A terra antes da
energia, e a energia antes do trabalho e do capital.
É
pela “falação” que se inicia o Manifesto
Pau Brasil de 1924, a época eufórica do Oswald de Andrade vivendo
apaixonado por Tarsila do Amaral, se bem que o clima psicológico nem sempre
seja o de euforia nos romances Memórias
Sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande.
(1)
Gilberto Vasconcellos informa-nos que esta e outras ridicularias perpetradas
contra a memória do grande escritor foram publicadas em livro recente de Aracy
Amaral sobre a obra de Tarsila, em luxuosa edição. É preciso esclarecer que
essa mania de Aracy por Tarsila (e Oswald) é antiga e não se deve a laços de
parentesco, inexistentes apesar da coincidência dos sobrenomes. O que afasta a
hipótese de fobias ou histerias de família a justificá-las. Também não nos
consta que Aracy tenha exercido antes a crítica literária ou a psicanálise e, ao
que sabemos, nunca teve autoridade para exercê-las. Assim, e considerando que
tais impropérios contradizem inclusive as outras obras da autora sobre o
mesmíssimo tema, resta-nos presumir que, ao redigi-los, ela já padecesse de
determinados males da terceira idade. Contudo, o que mais nos deixa perplexos é
o amadorismo do editor que lhes dá publicidade em formato de luxo, quando
deveriam permanecer resguardados pelo sigilo ético dos prontuários médicos.
(Mario Drumond)
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