Fome, secas, epidemias, matanças: a
Terra aproxima-se do apocalipse.
Talvez daqui a 50 anos nem faça
sentido falar em Brasil, como Estado-nação. Entretanto, há que resistir ao
avanço do capitalismo. As redes sociais são uma nova hipótese de insurreição. Presente,
passado e futuro, segundo um dos maiores pensadores brasileiros.
(no Rio de Janeiro)
Eduardo Viveiros de
Castro, 62 anos, é o mais reconhecido e discutido antropólogo do Brasil. Acha
que “a ditadura brasileira não acabou”, evoluiu para uma “democracia
consentida”. Vê nas redes sociais, onde tem milhares de seguidores, a hipótese
de uma nova espécie de guerrilha, ou resistência. Não perdoa a Lula da Silva
ter optado pela via capitalista e acha que Dilma Rousseff tem uma relação
“quase patológica” com a Amazônia e os índios. Não votará nela “nem sob pelotão
de fuzilamento”.
Professor do Museu
Nacional, no Rio de Janeiro, autor de uma obra influente (destaque para A
Inconstância da Alma Selvagem ou Araweté — O Povo do
Ipixuna, este último editado em Portugal pela Assírio & Alvim),
Viveiros de Castro é o criador do perspectivismo ameríndio, segundo a qual a
humanidade é um ponto de vista: a onça vê-se como humana e vê o homem como
animal; o porco vê-se como humano e vê a onça como animal. Humano é sempre quem
olha.
Nesta longa
entrevista, feita há um mês no seu apartamento da Baía de Botafogo — antes
ainda da greve dos garis (homens e mulheres do lixo), um exemplo de revolta bem
sucedida — Viveiros foi da Copa do Mundo ao fim do mundo. Acredita que estamos
à beira do apocalipse.
Vê sinais de uma
revolta nas ruas brasileiras? Aquilo que aconteceu em 2013 foi um levantamento,
mas não uma revolta generalizada. Acha que isso pode acontecer antes da Copa,
ou durante?
É muito difícil
separar o que você imagina que vai acontecer daquilo que você deseja que vá
acontecer.
Vamos separar. O
que desejaria que acontecesse?
Revolta popular
durante a Copa.
E isso significa o
quê, exatamente?
Manifestação. Não
estou imaginando a queda da Bastilha nem a explosão de nada, mas gostaria que a
população carioca o deixasse muito claro. Embora a Copa vá acontecer em várias
cidades, creio que o Rio se tornou o epicentro do problema da Copa, em parte
porque o jogo final será no Maracanã.
Mesmo nas
manifestações, o Rio foi a cidade mais forte.
São Paulo também
teve manifestações muito importantes, mais conectadas com o Movimento Passe
Livre [MPL, estudantes que em Junho de 2013 iniciaram os protestos contra o
aumento dos transportes]. Voltando ao que eu desejaria: que a população carioca
manifestasse a sua insatisfação em relação à forma como a cidade está sendo
transformada numa espécie de empresa, numa vitrine turística, colonizada pelo
grande capital, com a construção de grandes hotéis, oferecendo oportunidades às
grandes empreiteiras, um balcão de negócios, sob a desculpa de que a Copa iria
trazer dinheiro, visibilidade, para o Brasil. O problema é que vai trazer má
visibilidade. Vai ser uma péssima propaganda para o Brasil. Primeiro, porque,
se estou bem entendendo, vários compromissos contratuais com a FIFA não estão
sendo honrados, atrasos muito grandes, etc. Segundo, porque essa ideia de que
os brasileiros estão achando uma maravilha que a Copa se realize no Brasil pode
ser desmentida de maneira escandalosa se os turistas, tão cobiçados, chegarem
aqui e baterem de frente com povo nas ruas, brigando com a polícia, uma polícia
despreparada, brutal, violenta, assassina. Tenho a impressão de que não vai
fazer muito bem à imagem do Brasil. Outra coisa importante é que a Copa foi
vendida à opinião pública como algo que ia ser praticamente financiado pela
iniciativa privada, que o dinheiro do povo, do contribuinte, ia ser pouco
gasto. O que está se vendo é o contrário, o governo brasileiro investindo
maciçamente, gastando dinheiro para essas reformas de estádios, dinheiro dos
impostos. Então, nós estamos pagando para que a FIFA lucre. Porque quem lucra com
as copas é a FIFA.
Desejaria que essa
revolta impedisse mesmo a Copa?
Impedir a Copa é
impossível, não adianta nem desejar. Não sei também se seria bom, poderia
produzir alguma complicação diplomática, ou uma repressão muito violenta dentro
do país. Existe uma campanha: Não Vai Ter Copa. O nome completo é: Sem Respeito
aos Direitos Não Vai Ter Copa. No sentido desiderativo: não deveria haver,
desejamos que não haja. O que se está dizendo é que os direitos de várias
camadas da população estão sendo brutalmente desrespeitados, com remoções
forçadas de comunidades, desapropriando sem indemnização, modificando aspectos
fundamentais da paisagem carioca sem nenhuma consulta. Isso tudo está irritando
a população. Mas não é só isso: a
insatisfação com a Copa foi catalisada por várias outras que vieram surgindo
nos últimos anos, que envolvem categorias sociais diversas, e não estão sendo
organizadas nem controladas pelos partidos. Essas manifestações têm de tudo,
uma quantidade imensa de pautas [reivindicações]. Tem gente que quer só fazer
bagunça, tem gente de direita, infiltrados da polícia, neonazistas,
anarquistas. Um conjunto complexo de fenômenos com uma combinação de causas.
Uma coisa importante é que são transversais: tem gente pobre e de classe média
misturada na rua. É a primeira vez que isso acontece. O que talvez tenha em
comum é que são todos jovens. Da classe média alta à [favela da] Rocinha.
Mas agora não são
muito expressivas em termos de números. E não são as favelas que estão em massa
na rua.
Tem gente pobre e de
classe média misturada na rua. É a primeira vez que isso acontece. O que talvez
tenha em comum é que são todos jovens. As famosas massas ainda não desceram,
e provavelmente não vão descer durante a Copa. Nem sei se vão descer em alguma
momento, se existe isso no Brasil. Mas acho que vai haver uma quantidade de
pequenas manifestações. Por exemplo, a Aldeia Maracanã [pequena comunidade de
índios pressionada a sair, por causa das obras do estádio] produziu uma
confusão muito grande, se você pensar no tamanho da população envolvida. Os
moradores daquela casa eram 14 pessoas e não obstante mobilizaram destacamentos
do Bope [tropa de elite], bombas, etc. Quem está, em grande parte, criando a
movimentação popular é o estado, com a sua reação desproporcional. O Movimento
Passe Livre ganhou aquela explosão em São Paulo por causa da brutalidade da reação
policial. O Brasil nunca teve esse tipo de confronto entre a polícia e jovens
manifestantes. A polícia não sabe como reagir, não tem um método, então reage
de maneira brutal. Os próprios manifestantes não têm experiência de
organização. O que estão chamando de black bloc não é a mesma coisa que black
bloc na Dinamarca, na Alemanha ou nos Estados Unidos.
Mais volátil.
Ideologicamente
pouco consistente. Sabemos que o black bloc europeu é essencialmente uma
táctica de proteção contra a polícia. Noutros países, como os Estados Unidos,
tem uma certa táctica de agressão a símbolos do capitalismo. Aqui no Rio está
uma coisa meio misturada, ainda não se consolidou uma identidade, um perfil
táctico claro para o que se chama de black bloc. E eles estão sendo
demonizados. Acho até que, no caso do Brasil, o fato de que sejam black coloca
uma pequena ponta de racismo nessa indignação. Não duvido de que no imaginário
da classe média por trás da máscara negra esteja também um rosto negro. Pobres,
bandidos, etc. Mas isso está acontecendo ao mesmo tempo que a polícia continua
invadindo as favelas, matando 10, 12, 15 jovens por semana. Até recentemente
esse comportamento clássico do estado diante da população muito pobre, isto é,
mandar a polícia entrar e arrebentar, era algo que a classe média tomava
como... [sinal de longínquo]. Quando a
violência começou a atingir a classe média — ainda que uma bala de borracha não
seja uma bala de fuzil, porque o que eles usam na favela é bala de verdade e o
que eles usam na rua é bala de borracha, ainda assim você pode matar com bala
de borracha, pode cegar, etc —, à medida que a polícia começou a atacar tanto a
rua quanto o morro houve um aumento da percepção da classe média em relação à
violência da polícia nas favelas, o que é novidade. A imprensa fez uma imensa
campanha para santificar a polícia com a coisa das UPP [Unidade de Polícia
Pacificadora, programa para acabar com o poder armado paralelo nas favelas,
instalando a polícia lá dentro], mas todo o mundo está percebendo que essas UPP
são no mínimo ambíguas. Basta ver o caso do [ajudante de pedreiro] Amarildo,
que foi sequestrado, torturado e morto pela polícia [em Junho de 2013, na
Rocinha], e sumiu da imprensa.
Vinte e cinco
policiais foram indiciados.
No Brasil, há um
racismo político muito forte, não só ideológico como o americano. O Brasil é um
país escravocrata, continua sendo. O imaginário profundo é escravocrata. Quero ver o que vai
acontecer. Quem deu visibilidade à morte do Amarildo não foi a grande imprensa.
Foram as redes sociais, os movimentos sociais. Essa morte é absolutamente
banal, acontece toda a semana nas favelas, mas calhou de acontecer na altura
das manifestações, então foi capturada pelos manifestantes, o que produziu uma
solidariedade entre o morro e a rua que foi inédita.
Num país como este,
em que a desigualdade, a violência, continuam, porque é que as massas não saem?
Quem dera que eu
soubesse a resposta. Essa é a pergunta que a esquerda faz desde que existe no
Brasil. Acho que há várias razões. O Brasil é um país muito diferente de todos
os outros da América Latina, por exemplo da Argentina. Basta comparar a
história para ver a diferença em termos de participação política, mobilização
popular. Tenho impressão de que isso se deve em larga medida à herança da
escravidão no Brasil. O Brasil é um país muito mais racista do que os Estados
Unidos. Claro que é um racismo diferente. O racismo americano é protestante.
Mas no Brasil há um racismo político muito forte, não só ideológico como o
americano, interpessoal. O Brasil é um país escravocrata, continua sendo. O
imaginário profundo é escravocrata. Você vê o caso do menino [mulato] amarrado
no poste [no bairro do Flamengo, por uma milícia de classe média que o
suspeitava assaltante] e que respondeu de uma maneira absolutamente trágica
quando foi pego: mas meu senhor, eu não estava fazendo nada. Só essa expressão,
“meu senhor”... O trágico foi essa expressão. Continuamos num mundo de
senhores. Porque o outro era branco.
Como um DNA, algo
que não acabou.
Não acabou, pois é.
É o mito de que no Brasil todas as coisas se resolvem sem violência. Sem
violência, entenda-se, sem revolta popular. Com muita violência, mas sem
revolta. A violência é a da polícia, do estado, do exército, mas não é a
violência no sentido clássico, francês, revolucionário. E toda a vez que
acontecem coisas como essas manifestações de Junho, por exemplo, há aquela
sensação: dessa vez o morro vai descer. O morro não desceu. Em parte porque já
não é mais o morro, boa parte do morro é de classe média. Evidentemente, houve
um crescimento econômico. As favelas da minha infância, nos anos 50, eram
completamente diferente, como essas vilas da Amazônia, feitas de lona preta.
Hoje são casas de alvenaria, feitas de tijolos. Ainda assim a miséria continua.
Quero dizer apenas que a distância entre a classe média e o morro diminuiu do
ponto de vista econômico.
Ao fazer ascender
esses milhões da miséria, o PT neutralizou a revolução?
Em parte pode ser
isso. Houve uma espécie de opção política forçada do PT, segundo a qual a única
maneira de melhorar a renda dos pobres é não mexer na renda dos ricos. Ou seja,
vamos ter que tirar o dinheiro de outro lugar. E de onde é que eles estão
tirando? Do chão, literalmente. Destruindo o meio ambiente para poder vender
soja, carne, para a China. Não está havendo redistribuição de renda, o que está
havendo é aumento da renda produzida pela queima dos móveis da casa para
aquecer a população, digamos. Está um pouquinho mais quente, não estamos
morrendo de frio, mas estamos destruindo o Brasil central, devastando a
Amazônia. Tudo foi feito para não botar a mão no bolso dos ricos. E não
provocar os militares. A ditadura
brasileira não acabou. Nós vivemos numa democracia consentida pelos militares.
Compare com a Argentina: porque é que no Brasil não houve julgamento dos
militares envolvidos na tortura? Porque os militares não deixam. Vamos
ver o que vai acontecer agora, no dia 1 de Abril.
Com o aniversário
do golpe militar.
Já existe uma
campanha aí, subterrânea, para que no dia 31 de Março apaguem-se as luzes,
toquem-se buzinas, para comemorar o 50º aniversário do golpe. Ou seja, existe
uma campanha da direita para mostrar que a população ainda apoia a direita. Não
sei que sucesso vai ter, mas não duvido que haja uma manifestação, oculta,
pessoas que vão apagar as luzes das suas casas ou piscar as luzes à meia-noite,
alguma coisa assim.
Mas nenhuma
possibilidade de viragem à direita.
Não creio.
O atual regime não
é uma democracia?
O Brasil é uma
democracia formal, claro, mas consentida pelo status quo. A abertura foi
permitida pelos militares. A Lei da Anistia foi imposta tal qual pelo governo
militar. Eles não foram destronados, presos, criminalizados. Simplesmente foram
anistiados. E boa parte do projeto de desenvolvimento nacional gestado durante
a ditadura militar está sendo aplicado com a maior eficiência.
Pela esquerda.
Pela chamada
esquerda, pela coalizão que está no poder, na qual a esquerda é uma parte
mínima, porque tem os grandes proprietários de terra, os grandes empresários.
Está cumprindo um
ideário que vem da ditadura?
O PT é um partido
operário do século XIX. Eles têm um modelo que é indústria, crescimento, como
se o Brasil fosse os Estados Unidos do século XXI. Com grande consumo de
energia. Uma concepção antiga, fora de sintonia com o mundo atual. Agora está
começando a mudar um pouco, mas a falta de sensibilidade do governo para o fato
de que o Brasil é um país que está localizado no planeta Terra, e não no céu, é
muito grande. Eles não percebem. Acham que o Brasil é um mundo em si mesmo.
Ou seja, que não
vai ser afetado pelo aquecimento global, etc.
A única visão
global que o Brasil tem é de se tornar uma potência geopolítica. O Brasil,
hoje, é um ator maior, de primeira linha, em Moçambique, em Angola, nos países
latino-americanos. Está disputando com a China pedaços de Moçambique. A
Odebrecht está construindo hidrelétricas [barragens] em Angola e assim por
diante. O Brasil se imagina como potência que vai oprimir. Agora é a vez de
sermos opressores, deixarmos de ser os oprimidos. Agora os brasileiros da vez
vão ser os haitianos, os bolivianos, os paraguaios, que trabalham nas
“sweatshops” de São Paulo, nas terras em que plantamos soja e etc. O PT nunca
foi um partido de esquerda. É um partido que procurava transformar a classe
operária numa classe operária americana.
E nunca o Brasil
foi um país tão capitalista.
Minha mulher me
contou que, conversando com um desconhecido, operador da bolsa de valores, isto
em 2007, 2008, ele dizia: se eu soubesse que ia ser tão bom para nós jamais
teria votado contra o Lula.
Onde está a
esquerda? Qual é a sua opção de voto? Ou a opção deixou de ser votar?
Tanto a esquerda
como a direita são posições políticas que você encontra dentro da classe média.
A classe dominante é de direita de maneira genética, a grande burguesia, o
grande capital. E os pobres, a classe trabalhadora... se eu fosse fazer um
juízo de valor um pouco irresponsável diria que 60 a 70 por cento do Brasil
estaria muito feliz com um governo autoritário, que desse dinheiro para comprar
geladeira, televisão, carro, etc. Uma população que tem uma profunda
desconfiança em relação a esses jovens quebradores de coisas na rua, que seria
a favor da pena de morte, que é violentamente homofóbica.
Depois do garoto do
Flamengo ter sido amarrado por aquela milícia, ouvi trabalhadores negros pobres
dizerem: tem mais é que botar bandido na cadeia, fizeram foi pouco com ele.
Ou seja, é um país
conservador, reacionário, em que os pobres colaboram com a sua opressão. Não
todos, mas existe isso. A escravidão venceu no Brasil, ela nunca foi abolida.
Sou muito pessimista em relação ao Brasil, digo francamente. Em relação ao
passado e ao futuro. Em relação ao passado no sentido de que é um país que
jamais se libertou do ethos, do imaginário profundo da escravidão, em que o
sonho de todo o escravo é ser senhor de escravos, o sonho de todo o oprimido é
ser o opressor. Daí essa reação: tem mais é que botar esses caras na cadeia. Em
vez de se solidarizar. E podia ser o filho dele facilmente. E às vezes é o
filho dele. Oswald de Andrade, o poeta, dizia: “O Brasil nunca declarou a sua
independência.” Em certo sentido é verdade, porque quem declarou a
independência do Brasil foi Portugal, um rei português. Eu diria: e tão pouco
aboliu a escravidão. Porque quem aboliu a escravidão foi a própria classe
escravocrata. Não foi nenhuma revolta popular, nenhuma guerra civil. E em
relação ao futuro sou pessimista porque... talvez ainda tenha um pouco de
esperança, mas acho que o Brasil já perdeu a oportunidade de inventar uma nova
forma de civilização. Um país que teria todas as condições para isso:
ecológicas, geográficas.
Uma espécie de terceira
via do mundo?
É, outra
civilização. Porque civilização não é necessariamente transformar um país
tropical numa cópia de segunda classe dos Estados Unidos ou da Europa, ou seja,
de um país do hemisfério norte que tem características geográficas e culturais
completamente diferentes. Lembremos que houve um projeto explícito no Brasil, e
que deu certo, que está dando certo, por isso é que sou pessimista, que é o
projeto iniciado com Pedro II, em parte inspirado pelo célebre teórico racista
Gobineau, que era uma grande admiração de D. Pedro: o Brasil só teria saída
mediante o braqueamento da população, porque a escravidão tinha trazido uma
tara, uma raça inferior.
Havia que lavar o
sangue.
É uma ideia antiga,
que já vem dos cristãos-novos que vieram de Portugal, que tinham de limpar o
sangue. A gente sabe que quase toda a população portuguesa que se instalou no
Brasil é de cristãos-novos, Diria que 70 por cento desses brancos orgulhosos de
serem brasileiros são judeus, marranos, convertidos a ferro e fogo pela
Inquisição. Então, havia essa ideia de que o Brasil era um país racialmente
inferior porque era composto de negros, índios, portugueses com essa origem um
pouco duvidosa. E já Portugal em si não é...
A Holanda.
Exato. Não é a
coisa mais branca que podemos encontrar na Europa. A Península Ibérica é um
pouco africana, foi dominada 800 anos pelos árabes. Então o Brasil só ia
melhorar com branqueamento. Isso foi uma política de estado que durou décadas e
trouxe para o Brasil milhões de imigrantes alemães, italianos, mais tarde
japoneses. Com o propósito explícito de branquear, não só geneticamente, mas
culturalmente e economicamente. E eles foram para o Sul, de São Paulo até ao
Rio Grande. Mas, esse que é o ponto curioso, a partir do governo militar para cá
essa população branca invadiu o Brasil, a Amazônia. A colonização da Amazônia a
partir da década de 70 foi feita pelos gaúchos, muitos deles pobres, que foram
expulsos, alemães pobres, italianos pobres, cujas pequenas propriedades
fundiárias foram absorvidas pelos grandes proprietários, também gaúchos, também
brancos, e que foram estimulados pelo governo, com subsídios, promessas
mirabolantes, a irem para a Amazônia. Hoje, tem um cinturão de cidades no sul
da Amazônia com nomes como Porto dos Gaúchos, Querência, que é um lugar onde se
guarda o gado, típico do Rio Grande do Sul. Os gaúchos [de origem
europeia] chegaram numa região temperada, subtropical [sul do Brasil] em
que você podia mais ou menos copiar um tipo de estrutura agrícola, de produção alimentar
do país de origem. Só que na Amazônia isso é uma abominação. É um preconceito
muito difundido essa ideia de que pessoal do Norte não sabe trabalhar, é
preguiçoso. Você ouve muito isto no Paraná, no Rio Grande do Sul. Quem sabe
trabalhar é o colono alemão, italiano. Hoje o Brasil foi branqueado. Essa
cultura country aí é uma mistura de cultura europeia com cultura americana, de
grande carrão, 4x4, pick ups, rodeos, chapéus americanos, botas. Existe um
projeto de transformar o Brasil num país culturalmente do hemisfério norte,
seja Estados Unidos, seja essa Europa mais reacionária. Porque estamos falando
de colonos alemães que vieram do campesinato reacionário, bávaro, pomerano, e
dos camponeses italianos, que eram entusiastas do nazismo e do fascismo na II
Guerra. Continuam sendo. O que tem de grupo de extrema-direita no sul do Brasil
é muito. O foco da direita fascista, nazista é o Paraná e o Rio Grande do Sul.
Então o Brasil é um país dividido entre um sul branco e o resto não branco,
português, negro no litoral, índio no interior.
O censo da
população dá por uma unha uma maioria não-branca.
O agronegócio é na
verdade o modelo gaúcho, desenvolvido no pampa, nos campos do Rio Grande.
Plantação extensa de monocultura, de soja, de arroz, de cana. Então o Brasil
está perdendo a oportunidade de se constituir como um novo modelo de
civilização propriamente tropical, com uma nova relação entre as raças, que
fosse efetivamente multinacional. Um país que se constituiu em cima do
genocídio indígena, da escravidão, da monocultura. Que continua fazendo o que
fez desde que foi criado, exportando produtos agrícolas. Que continua a
alimentar os países industrializados. Primeiro a Europa, depois os Estados
Unidos, agora a China. Continua sendo o celeiro do capitalismo.
E o matadouro.
O segundo maior
rebanho bovino do mundo, depois da Austrália. Um país que se está destruindo a
si mesmo para se transformar numa caricatura dos países que lhe servem de
modelo cultural. Em vez de, ao contrário, saber utilizar a sua situação geográfica
altamente privilegiada, a sua situação demográfica, uma população imensa, para
construir um novo estilo de civilização.
O senhor está
descrevendo a derrota do “Manifesto Antropófago” de Oswald de Andrade [visão de
um Brasil que se torna forte por comer, absorver o outro]
É, acho que sim.
Bom, nenhuma derrota é definitiva. O meu pessimismo nem passa tanto pelo fato
de que o Brasil não tem jeito, porque acho que ainda poderia haver uma
revolução antropofágica no Brasil. Mas hoje isso é uma questão que já não teria
mais sentido colocar pelo simples fato de que estamos numa situação planetária
em que a catástrofe já se iniciou. O mundo está entrando, num sentido físico,
termodinâmico, num outro regime ambiental que vai produzir catástrofes humanas
jamais vistas, no meu entender: fome, epidemias, secas, mudança de regime
hidrológico, tudo. Nessas circunstâncias, é possível que cheguemos a um momento
em que noções como Brasil, Estados Unidos, países, comecem a perder a sua
nitidez. Pode ser que daqui a 50 anos a palavra Brasil não tenha mais nenhum
sentido. Que tenhamos que falar em Terra.
É um
pré-apocalipse?
Diria que sim.
Isabelle Stengers, filósofa belga, diz que a palavra crise não é adequada
porque supõe que você pode superá-la, quando o que estamos vivendo é uma
situação que não tem um voltar atrás. Vamos ter que conviver com ela para
sempre. Um novo regime do mundo, de climas, de águas, não haverá mais peixes,
os estoques estão acabando no mundo, a quantidade de refugiados que vão invadir
a Europa vai ser brutal nas próximas décadas. Se a temperatura subir quatro
graus, que é o que todos os climatologistas estão imaginando, isso vai produzir
uma mudança total no que é viver na Terra. E a quantidade de africanos que vai
invadir a Europa vai ser um pouco maior do que aqueles pobres que morrem
afogados ali em Lampedusa. E como os países ricos vão reagir? É uma questão
interessante. Vai ser com armas atômicas? Vão bombardear quem? O meu pessimismo
passa mais por aí. No Brasil as crises são estritamente políticas. Faz reforma
política? Vai ter revolta da população? Será que há Copa? Tudo isso é verdade,
fundamental, mas a gente não pode perder de vista o cenário mais amplo.
Não vê ninguém no
Brasil, politicamente, que tenha uma visão ampla? O senhor votou na Marina
Silva [nas últimas presidenciais].
Votei na Marina em
2010, com certeza. Não tenho certeza nenhuma de que votaria nela em 2014,
talvez não.
Eduardo Campos
[candidato pernambucano que fez uma aliança com Marina]?
De forma nenhuma. A
Dilma, nem sob pelotão de fuzilamento voto nela. Esses idiotas do PSDB nem
pensar. Então talvez eu não vote. Talvez vote nulo.
Qual é a missão, o
papel, a hipótese para alguém como o senhor? Virar uma espécie de guerrilheiro
nas redes sociais?
É. Eu diria que a
revolução antropofágica do Oswald de Andrade só é possível sob o modo da
guerrilha. Estamos falando de uma coisa que foi pensada em 1928...
Mas que foi
revivendo, anos 60, agora.
O Oswald, um homem
da classe dominante, pensava no Brasil como uma coisa sobre a qual você podia
pôr e dispor. Nesse sentido, ele pertence à geração dos teóricos do Brasil, que
eram todos da elite dominante paulistana ou pernambucana: Gilberto Freyre, Caio
Prado Júnior, Eduardo Prado. Os modernistas eram uma teoria do Brasil, de como
o Brasil deve ser organizado, governado. Talvez os muitos povos brasileiros que
compõem esse país só tenham chance de ganhar uma certa emancipação cultural,
política, metafísica, no contexto do declínio geral do planeta. Nessas
condições é possível que haja esperança para os negros, os índios, os
quilombolas [descendentes de escravos], os gays, os pobres desse planeta
favela. Não esqueçamos que o mundo tem três bilhões e meio de habitantes
vivendo em cidade, metade da população mundial. Desses, no mínimo um bilhão vive
em favelas. Ou seja, um sétimo da população mundial vive em favelas. O Brasil
deve ter uma proporção maior que a Alemanha, Estados Unidos. Diria que deve
andar na casa dos 30 milhões. [A população de] um bom país europeu.
Seria uma guerrilha
nas redes sociais? Admite o uso de violência ou uma guerrilha virtual apenas?
Nem uma coisa nem
outra. A existência da Internet mudou as condições da guerra, em geral, sim. O
maior ato de guerra recente, no bom sentido, de que me consigo lembrar foi o
Edward Snowden. Não mais os Estados Unidos espionando a Rússia, nem a Rússia
espionando os Estados Unidos, mas o vazamento de informações secretas dos
estados. Isso é muito significativo. Um jornalista morando aqui no Rio de
Janeiro, que trabalha para um jornal inglês, que recebeu informações de um
analista americano, que estava escondido em Hong Kong: isso só é possível com
Internet. As redes sociais mudaram completamente as condições de resistência ao
capitalismo.
Uma nova forma de
guerrilha?
Que não é necessariamente
violenta, embora exista o problema do hacker, do bombardeio de sistema eletrônico.
Mas o que penso não é bem por aí. Quando penso em guerrilha, é no sentido de
combates locais, ponto a ponto. Não estou falando de quebrar a porta do banco
ou bater na polícia. Falo em combates em que você seja capaz de conectar
combates locais através do mundo inteiro. Existem formas novas de resistência e
aliança entre as minorias étnicas, culturais, econômicas do planeta que passam
pela conectividade universal da rede, que é frágil, ao contrário do que se
imagina, com pontos fracos, nós, gargalos, em que os Estados Unidos têm um
poder muito grande. Mas eu diria que é muito difícil controlá-la até porque
essa rede é indispensável para o capitalismo. Difícil o capitalismo danificá-la
demais, senão vai perder seu principal instrumento hoje. Ainda que haja várias
tentativas, no Brasil inclusive, de vigilância. É possível que a gente passe
para um estado de vigilância à la George Orwell. Tudo isso é possível. Mas acho
também que a situação atual permite o desenvolvimento de uma guerrilha de informação,
muito mais que de ação física, porque a informação hoje é uma mercadoria
fundamental, estamos na economia do conhecimento, então a guerra é uma guerra
também pela informação. É por aí que tenho alguma esperança, muito mais que
numa saída nas ruas, com ancinhos, forcados, machetes.
Parar de imaginar
uma luta de classes e imaginar uma guerrilha de classes. Classe definida,
agora, não só de maneira classicamente econômica, mas no contexto da nova
economia, que mudou a composição de classes. Vários intelectuais hoje pertencem
à classe dominada, operária. Então, vejo mais uma guerrilha do que uma guerra,
com a vantagem de que as guerras em geral terminam na constituição de um novo
poder totalitário, um novo terror. O “Manifesto Antropófago” pode acabar se
realizando mais por esse lado. O sonho clássico da revolução, como
transformação de um estado A em estado B é um sonho pouco interessante.
Não há desfecho.
Não há desfecho.
Prefiro falar em insurreição do que em revolução, hoje. Um estado de
insurreição permanente como resistência. A palavra talvez seja mais
resistência, insurreição, do que revolução e guerra. Guerrilha é sempre de
resistência. O modelo da resistência francesa [na ocupação alemã], criar redes
subterrâneas de comunicação. Estamos nessa posição, somos um planeta invadido
por alienígenas, digamos, que é o grande capital, a TV Globo, o agronegócio, a
hegemonia norte-americana sobre os sistemas de entretenimento; como é que você
cria uma rede de resistência a esses “alemães”? Sou um ativista das redes, de
fato. Mas não convoco para manifestações, não pertenço a nenhuma organização,
estou um pouco velho para sair na rua. É, mas para sair na rua como black bloc
[sorriso]... Posso ir atrás do black bloc, na frente não dá.
Começou tarde a ser
um ativista/guerrilheiro. Por quê?
É uma questão
interessante. A minha relação com o ativismo na ditadura não foi receio físico.
Não que eu não tivesse medo de enfrentar a repressão. Vi vários amigos presos,
torturados, todo o mundo tinha medo. Mas não foi por isso que não entrei na
luta contra a ditadura. Foi porque não acreditava nela, em tomar o poder para
instituir uma nova ordem não muito diferente. Eu achava que era uma briga entre
duas frações da classe média alta para saber quem ia mandar no país. E eu não
tinha a menor simpatia pela ideia de mandar no país. Tinha uma desconfiança,
que infelizmente se confirmou, quando a gente vê que uma das pessoas que fez a
luta armada está mandando no país. E ela está fazendo coisas muito parecidas
com o que os militares queriam fazer, pelo menos na Amazônia. O projeto da
Dilma na Amazônia é idêntico ao do Médici [terceiro presidente da ditadura, no
período 1969-74].
O senhor se
configura como um anarquista?
Talvez...
Fora do estado.
Digamos que sim.
Mas não sou um anarquista daqueles que acham que a sociedade atual pode
prescindir do estado. Acho isso um sonho um pouco infantil.
Acha que não pode
prescindir do estado, mas que é importante cultivar...
Uma oposição, sim.
A ideia de uma abolição do estado nas presentes condições é fantasia. Existem
algumas contradições que não podemos evitar. Por exemplo, o maior inimigo dos
índios brasileiros, num certo plano, é o estado, que representa uma sociedade
que os invadiu, exterminou, escravizou, expropriou de suas terras. Ao mesmo
tempo, o estado brasileiro é a única proteção que os índios têm contra a
sociedade brasileira. Se não fosse o estado, os fazendeiros já teriam
aniquilado todos os índios. Mas é uma quimioterapia, como se o Brasil fosse o
câncer e o estado fosse aquele remédio. Faz um mal horrível, mas você tem de
tomar, é o único jeito de ter esperança de se curar. Portanto, não posso ir
contra o estado. Tenho simpatia pela tese do antropólogo francês Pierre
Clastres, “A Sociedade Contra o Estado”, um tipo de sociedade como ele entendia
que era o caso de várias sociedades indígenas, mas não imagino que isso possa
ser transferido para as nossas dimensões demográficas. Isto dito, não sei por
quanto tempo vamos ter essas dimensões no planeta, estados-nação com milhões de
habitantes. Precisamos guardar os anti-corpos contra o estado porque podemos
precisar deles no futuro.
Defende que toda a
lógica do que o Brasil poderia ser, oferecer, passaria por se tornar mais
índio. Não os índios tornarem-se brasileiros, mas o Brasil tornar-se índio, o
que significaria uma outra forma de vida, não para produzir, não para consumir.
Que significa isso na guerrilha das cidades e das redes? Como os índios podem
estar presentes aí? O que podem dar à tal insurreição contínua?
Vou juntar isso com
o final da pergunta anterior. Fui-me tornando mais activo nas redes porque
apareceram, antes não existiam, e em função da minha enorme decepção com o
final da ditadura, o fato de que continuamos reféns do grande capital, dos
grandes clãs, dos capitães hereditários que continuam mandando no Brasil, José
Sarney, Fernando Collor, Renan Calheiros. Essa aliança entre o mais arcaico,
que é Sarney, e o mais moderno do capitalismo, que são esses agronegociantes de
alta tecnologia do Mato Grosso do Sul, todos eles combinados para manter a
tranquilidade política: não deixemos as massas virem atrapalhar. Então, a minha
decepção com a trajetória depois da ditadura; a minha decepção maior ainda com
a trajetória do PT, a partir da eleição do Lula, na qual ele escreveu uma carta
aos brasileiros dizendo que não ia tocar no bolso dos ricos; a minha decepção
ainda maior com a performance do governo Dilma em relação ao meio ambiente, à
Amazônia, aos índios, a total incapacidade política da presidente para ter o
mínimo de diálogo, por mais fictício que seja com as populações indígenas, ao
contrário, ela demonstra um desprezo, um ódio mesmo, que me parece quase patológico;
tudo isso me levou ao ativismo. Todo o mundo tem uma imagem do Brasil como país
preguiçoso, relaxado, laid back, onde tudo é mais devagar. E existe uma grande
ambiguidade nossa em relação a essa imagem. Por um lado achamos interessante a
imagem de um país easy going, por outro lado temos uma grande vergonha disso,
nos queremos transformar num país performante, que vai para a frente,
produtivo. A gente quer ao mesmo tempo ser sambista e grande potência mundial.
Eu acho que devia continuar sendo sambista. Que a gente devia saber explorar as
virtudes do não-produtivismo. A ética protestante, que nos deu o espírito do
capitalismo, para falar como Weber, nunca esteve inscrita no DNA do Brasil,
graças a vocês portugueses, que também não a tinham [risos]. Tiveram durante
século e meio, mas depois... Então, por um milagre histórico fomos preservados
dessa maldição que é a ética produtivista do capitalismo. Fomos capturados pelo
capitalismo porque nos invadiu, domou. O capitalismo foi possível porque a
Europa invadiu a América. Se não fosse a America, a Europa não teria deixado de
ser o que era na Idade Média, um fundo de quintal. Na Idade Média, as
sociedades desenvolvidas eram o Islã, a India e a China. Os europeus eram um
bando de bárbaros, sujos, mal vestidos, católicos. Mas por acaso os portugueses
e os espanhóis deram de cara com o novo mundo e o capitalismo tornou-se
possível. Porque foi o ouro do Novo Mundo, milhares de toneladas, e tudo o que
saiu da América, novas plantas, novos recursos alimentares, que permitiu a
expansão do capitalismo e depois a revolução industrial. Se não tivesse
havido invasão da América, destruição da América não teria havido Europa
moderna. Hoje, no mundo, as principais plantas que servem de alimentação
mundial são de origem ameríndia: o milho, que se planta em toda a parte, a batata,
que permitiu a revolução industrial inglesa, a mandioca, da qual toda a África
do Oeste hoje vive. Só que a América já era, não tem mais Novo Mundo para
descobrir, a terra fechou, arredondou, além de que o pólo dinâmico do
capitalismo foi para a China.
Voltando aos
índios.
O Brasil tem muito
poucos índios comparado com os países andinos ou mezo-americanos. Estão na casa
de um milhão, num país de 200 milhões. Mas têm um poder simbólico muito grande,
até porque têm uma base muito grande, 12 por cento do território brasileiro.
Está tudo invadido [por obras ou fazendeiros] mas oficialmente é terra
indígena. Além de que têm um poder de sedução no imaginário ocidental. A
Amazônia tem um poder simbólico imenso. Embora, ao contrário do que os
brasileiros pensam, não seja só brasileira, a maior parte da Amazônia está no
Brasil. E é um objeto transcendente, uma espécie de última chance, último lugar
da terra. O que dá ao Brasil um poder simbólico que ele não sabe usar, ao
contrário, a Amazônia tem servido para atacar o Brasil por não saber cuidar da
Amazônia. E sabe uma coisa? Não sabe mesmo. E não está sabendo se valer da
Amazônia como um trunfo mundial. Nem como um lugar onde poderia se desenvolver
uma civilização menos estúpida, do ponto de vista tecnológico e social. Os
índios aí servem como exemplo. Estão na Amazônia há pelo menos 15 mil anos. Boa
parte da floresta amazônica foi criada pela atividade indígena. Boa parte do
solo foi criado com cinza de fogueira, detritos humanos. A Amazônia é essa
floresta luxuriante em parte por causa da ação humana, dos índios. Perante
isto, o modelo sulino, gaúcho, europeu, de ocupação da Amazônia, é um plano
liso que você possa encher de fertilizante, para poder plantar plantas transgênicas,
resistentes a herbicidas, para produzir soja para vender para China, para em
seguida pegar esse dinheiro e dar Bolsa Família. Não seria mais simples fazer
com que essas pessoas não precisassem de Bolsa Família dando para elas terra
para plantar, fazendo a célebre reforma agrária que jamais foi feita no Brasil?
Estamos exportando terra, solo e água na forma de carne, de soja. Um quilo de
carne precisa de 15 mil litros de água para ser produzido, um quilo de soja,
7500 litros. Essa água toda, que poderia estar sendo usada para plantar comida
para nós, está sendo usada para produzir soja para alimentar gado europeu, ou
em tofu e miso na China. O Brasil destruiu mais de metade da sua cobertura
vegetal, a Mata Atlântica, que era igual à Amazônia do ponto de vista
ambiental, para plantar cana e café durante a colonização. E ficamos mais
ricos? Agora estão devastando a Amazônia para produzir soja e gado. Estamos
ficando mais ricos? Os pobres estão melhores porque está caindo mais migalha da
mesa dos ricos, não porque vieram sentar na mesa.
Isso também afetou
os índios, não? Em São Gabriel da Cachoeira, o município mais indígena do
Brasil [estado do Amazonas], um dos grandes problemas é o alcoolismo.
Impressionante ver o estado em que muitos índios vivem em São Gabriel. É um
resultado desse erro de tentar converter o índio em brasileiro nesse modelo que
está a descrever?
O alcoolismo é uma
praga da população indígena das três Américas. Tem a ver com várias coisas. Uma
delas é genética, mesmo. Os índios têm, por razões de evolução, muito menos
resistência ao metabolismo do açúcar no organismo. Por isso que eles têm essa
tendência à obesidade e à diabetes. Segundo, os índios sempre tiveram álcool,
na América do Norte menos, mas todos os índios da Amazônia preparavam bebidas
fermentadas, etc. É a mesma coisa com o tabaco, só que ao contrário. O tabaco é
indígena. Os índios fumavam, mas não tinham câncer, ou a taxa devia ser muito
pequena, assim como o alcoolismo existe entre nós, mas é muito menos violento.
Porquê? Os índios, para fazerem o tabaco deles e a bebida deles, tinham que
produzir à mão. Tabaco tinham de plantar, de enrolar, de fazer um charuto,
levava cinco dias para fumar, eram objetos custosos. A cerveja que faziam
levava semanas. Aí, chega de repente a cachaça, seis meses de trabalho indígena
concentrado numa garrafa que custa dois reais. A mesma coisa com a gente:
quando você pega num maço de cigarro que tem concentrado seis meses de trabalho
indígena, você fuma um atrás do outro. Você morre de câncer aqui e os índios
morrem de cirrose lá. O capitalismo apresenta aos índios uma coisa que eles
nunca tiveram: o infinito mercantil. Os objectos não acabam nunca. Você tem uma
quantidade infinita de cachaça. É como se chegassem aqui marcianos que nos
dessem soro da vida eterna. Os índios não entendem e consomem, consomem,
consomem. Eles produziam pouco para ter tempo livre. O que acontece agora é que
continuam produzindo pouco mas os produtos chegam em quantidade infinita. E
eles não têm estrutura social, política, institucional. Vai levar séculos para
que desenvolvam resistências. Todo o ser humano gosta de se drogar, alterar a
consciência, desde o café até ao LSD, então nos índios o álcool entrou
destruindo tudo. É certamente a coisa mais destrutiva em todos os índios das
Américas. Não há sociedades perfeitas. É preciso distinguir entre modelo e
exemplo. Os índios são um exemplo, não um modelo. Jamais poderemos viver como
os índios, por todas as razões. Não só porque não podemos como não é desejável.
Ninguém está querendo parar de usar computador ou usar antibiótico, ou coisa
parecida. Mas eles podem ser um exemplo na relação entre trabalho e lazer.
Basicamente trabalham três horas por dia. O tempo de trabalho médio dos povos
primitivos é de três, quatro horas no máximo. Só precisam para caçar, comer,
plantar mandioca. Nós precisamos de oito, 12, 16. O que eles fazem o resto do
tempo? Inventam histórias, dançam. O que é melhor ou pior? Sempre achei
estranho esse modelo americano, trabalha 12 horas por dia, 11 meses e meio por
ano, para tirar 15 dias de férias. A quem isso beneficia? A única vantagem
indiscutível que a civilização moderna produziu em relação às civilizações
indígenas foram os avanços na medicina. Se você fosse viver o resto da vida no
mato o que levaria? Penicilina. Foi de fato um avanço. Mesmo assim nossos
avanços sempre avançam demais. Hoje preferimos manter uma pessoa de 90 anos
sofrendo horrivelmente, tem de viver, tem de viver, a família vai à falência.
Ou seja, não sabemos mais morrer. Todo o mundo antes do século XX sabia morrer.
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