CARTOGRAFIA DA
AMIZADE
Fábio Carvalho
Estive pela primeira vez com o Ricardo no Cine Unibanco da Rua Augusta em
Sampa, ele então morava por lá. Era como se há muito já tivéssemos nos
conhecido. Lembro agora dessa estranha sensação, um reconhecimento através dos
olhos. A senha para a aproximação era a amizade que eu já desenvolvia com
seu parceiro e irmão de fé cinematográfica Paulo César Saraceni. Na sexta feira
bem cedo, dia 28 de Março do ano 14, íamos para o Aeroporto dos Confins,
embarcar num avião rumo ao Rio de Janeiro. Prestes a se levantar, ainda na
cama, a Isabel me conta que sonhara a noite inteira com o Ricardo e o Saraceni
em um parque. O Sarra, embora muito envelhecido e enrugado, corria e pulava
como se fora ainda um menino, e o Ricardo sentado ao seu lado, cochichava
repetidas vezes no ouvido dela o seguinte: ele é doido, ele é doido. O avião
atrasou, estávamos na lanchonete da sala de embarque, quando o post da Helena
Ignez nos atingiu feito um raio: “nosso amadíssimo e insubstituível Ricardo
Miranda morreu.” Como assim? Era a pergunta. A verdade. Um corte seco desferido
por um golpe de cutelo. Naquela manhã de mudança de planos, temerosos de dar a
terrível notícia por telefone ao Rosemberg, Bárbara Vida e o Gabriel se
encaminharam para o apartamento dele carregando a triste missão. Lá chegando ao
abrirem a porta do elevador, encontram com o Rosemberg que ia ao correio postar
uma carta para o amigo que não mais a receberia. Estou aqui nas alturas
recolhendo os cacos da memória. Antes, quando estivemos pela primeira vez
juntos na bela Cataguases, ficamos hospedados na pequena Miraí e, nas idas e
vindas pela Avenida Ataulfo Alves de taxi ou de Van, selamos nossa amizade que
se evoluiu filosoficamente. Estivemos outras vezes em Cataguases, uma delas na
cachoeira do Humberto Mauro, reunidos a um grupo extraordinário, logramos
realizar o filminho chamado Casa do Polanah. A aparente tranquilidade com o
entendimento do desenrolar do tempo, vinda de sua estatura intelectual e
sofisticação como pensador montador, sincronizou as expectativas, que enfim
descobri que tinha. Falo de mim para falar dele. Continuo me dirigindo a ele.
De outra vez em Itu, me colocou na condição de jurado, coisa que nunca tinha
aceitado, talvez para aprender a perder um pouco de minha recôndita empáfia.
Confesso que nessa função presidido por ele, vi que no cinema tudo pode ser
devidamente escrutinado sem parcialidades de outra ordem. Pode-se e deve-se
levar em conta o cinema, ele mesmo o organismo vivo em questão. Das três ou
quatro vezes em que estivemos no Festival de Cinema de Brasília, guardo comigo
os papos noturnos depois das sessões dos filmes, nas mesas da piscina do Hotel
Nacional. Seu sotaque arrastado e pausado de Araribóia e a maneira de nunca
falar sem antes pensar eram para mim bastante peculiares. Mesmo calado o seu
olhar falava muito. De outras feitas, os passeios matinais friorentos pela
barroca cidade Ouro Preto, acompanhados pelos amigos mineiros e por sua
assistente naquele momento, a bela morena carioca Litza. Continuei apreendendo
cinema por vários anos luz. Hoje, depois que saí do meu bureau secreto, só vi
mulheres andando pelas ruas, todas muito bonitas, embora ainda não se
soubessem, determinadas e altaneiras em busca de tesouros perdidos, carregando
suas grandes bolsas, onde seus mundos e fundos eram guardados. Era como a
Cidade das Mulheres do Fellini, apenas elas existiam e regiam a sinfonia do
anoitecer. A hora da Ave Maria. Ainda tinha a lua cheia de Maio ali presente, a
histeria estava no ar. O Ricardo nasceu no dia 10 de Maio, dia da primeira
exibição em BH do filme Guignard Imaginário, apenas mais uma coincidência
inexplicável. Podemos perder as manias. Reunidos em torno do mistério da
existência e da finitude, mais um ciclo se fechou, outro se inicia. Agora resta
uma mesa na sala. Trabalho muito melhor com o frio. Ontem à noite recebi um
telefonema do Otávio Terceiro, me falando de maneira bastante eloquente, como
ele bem sabe, sobre a cópia que acabara de rever de O Filme da Montagem, onde o
Saraceni e o Ricardo são os protagonistas de uma espécie de registro dos
bastidores da montagem do filme O Gerente, que veio a ser a última parceria dos
dois velhos amigos. Não resisto e transcrevo aqui um parágrafo da crônica do
Carlos Drummond de Andrade, intitulada Declarações à Colegial que veio
Entrevistar-me. “Confesso que meu trabalho de ser é afetado pela necessidade de
dar satisfações aos outros, seja sob a forma de deveres políticos e sociais,
seja para explicar porque não admiro, digamos, os filmes do Bergman. Cercado de
prazos, papéis, condicionamentos, cortesias e outros empecilhos, não sei me
explicar bem. Donde os juízos críticos: é selvagem, é pueril, é espertíssimo,
está escondendo alguma coisa”. O Ricardo detestava o artigo nos títulos.
Não se faz cinema com boas intenções. Tudo é tudo e nada é nada diante do
movimento do mar. Voltamos a Minas, das caminhadas dificultosas pelas pedras
dos becos de Tiradentes, às Janelas de Belo Horizonte cercados por diversas
Joanas. A Palavra Exata nos levou de novo para as ladeiras e catedrais da velha
Ouro Preto, onde o pintor Ronaldo, seu único irmão, viveu por algum tempo, as
imagens imaginantes fizeram a ponte até Guignard. O cais da paz interior. No
litoral do nosso Rio de Janeiro, me apresentou o Botafogo, região até então
desconhecida por mim, a não ser por Famas e Cronópios. Integrei-me naquelas
ruas estreitas que sentia mais machadianas que as do próprio Cosme Velho, pelos
quatro apartamentos em que o Ricardo me hospedou durante os últimos anos. Dois
na Voluntários da Pátria, um na Alzira Cortes onde morei por
temporadas maiores e por fim na Desembargador Burle, pertinho do quadrilátero
de bares e restaurantes, onde ainda perdura o Aurora e também da Cobal. Uma vez
o Ricardo foi para Europa e me confiou seu apartamento na Alzira Cortes. Como
chovia aos cântaros no Rio e eu estava em meio de uma crise de misantropia, fiz
um estoque alimentar para todos os níveis de fome, assim enfurnei-me durante
três dias naquela cinemateca-biblioteca rara. O amor nos foge pela janela.
Depois destes dias, cresci alguns centímetros imensuráveis na minha média
estatura. Voltei a caminhar pelas ruas com alguma altivez. Os cafés da manhã na
Padaria Imperial da Real Grandeza, os cozidos do Bismarck quase no fim ou no
começo da Voluntários perto da praia, onde conversávamos com o cineasta David
Neves, tendo eu chegado anos depois que o David já não estava, afora os ótimos
restaurantes, especialmente portugueses, com as melhores comidinhas que
localizava com sabedoria. Mesa Brasileira. O Largo dos Leões. Enfim tudo é
muito perto do pouco que não tivemos tempo de realizar: um filme. O samba é pai
do prazer. Agradeço ao mistério da vida o privilégio desta convivência que,
embora cumprida a passagem por este plano, sinto que jamais terminará. Vamos
lá.
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