SUAVE ALTERAÇÃO DA SÍNCOPE
Fabio
Carvalho
“Não digo que todos devemos proceder mal,
mas devemos dar a entender que podemos”.
Orson Welles
Um tipo entrou no botequim e se aproximando do balcão
de vidro foi logo pedindo para a parede de ladrilhos brancos manchados de
gordura e asfalto: ô meu irmão bota uma cachaça aí! Como o Nada consta não
estava lá, nada se ouviu de resposta. Ele então olhou ao redor com cara de nada
entender e o ao redor olhou para ele entendendo tudo. Neste instante, de dentro
da caixa registradora surgiu o amarra cachorro careca do responsável por aquela
esquina de três portas, e assim respondeu com a seguinte pergunta: ô Nas, você
quer a Fofa Tóba ou a Incha Pé? Voltei para as alturas pensando em mais uma
oportunidade que desperdicei de soltar os bichos com o microfone delicado
daquela bela jornalista na minha boca dentro da tenda cinematográfica da
pequena cidade de Tiradentes. Ainda bem que existe o Rosemberg para falar o que
tem que ser falado, atenuando minha dor covarde, então pude me salvar de mim
mesmo exercitando a indulgência. Tenho que aprender a tocar minha melodia sem
medo. Além de tudo ainda existem as pessoas. O inferno são os outros. Quero meu
corpo bem livre do peso da minha alma. Essa interessante frase, estava escrita
no azulejo, em cima do mictório no banheiro do Cine Belas, por onde entrei
esbaforido pelo apertão na bexiga pouco antes da primeira sessão da tarde
calorenta do filme Ninfomaníaca – Parte 1 com cortes. Tudo resolvido, assisti
ao filme, com a imagem daquela frase muito bem grafada em batom vermelho na
tela de dentro da minha cabeça. Então Deus adormeceu e começou a se arrepender
de tudo o que tinha feito. Outra frase que li ou ouvi não sei mais onde e até
agora repica nos meus olhos e ouvidos. Outro dia, chegou primeiro o elevador
automático, entramos eu e duas mulheres muito magras ambas de óculos com lentes
fundo de garrafa. Uma era muito mais velha que a outra, parecendo ser sua mãe
ou talvez sua avó. Esse elevador é bastante apertado, com duas portas
pantográficas, você entra por uma e sai pela outra. Postei-me ao lado da placa
de metal com os botões de comando e as duas ficaram de frente para mim nariz
com nariz, a mais nova olhando fixamente para o mostrador dos andares, que
naquele elevador há muito estava travado num sinal luminoso de interrogação.
Fomos subindo dentro da engenhoca, ouvindo os sons de uma velha máquina em
pleno funcionamento sem interrupções como murmúrios doces de fluidez. O trajeto
vertical era longo, subitamente o silêncio foi interrompido pela mais jovem,
que mudando a direção dos olhos arregalados para mim por trás dos óculos, disse
com a voz desafinada: Otis que está escrito ali é o nome do inventor do
elevador. - Nossa! É mesmo? Nunca soube disso. Disse eu, com espanto
verdadeiro. Os olhos fixos nos meus, e agora com leve satisfação transparecendo
em seu semblante improvável, continuou: é sim, vi num filme da (esqueci o nome)
e da Meg Ryan. Pausa. Só vi esse filme porque a (esqueci o nome) só faz
romance. E eu só vejo romance, né! Outra pausa. Balançou o rosto
afirmativamente e emendou: é sim, veja também o filme (esqueci o nome), que o
senhor vai ver! É sim. Outro longo silêncio se seguiu até chegarmos ao meu
andar. A porta pantográfica se fechou após boa tarde para lá e para cá, as duas
continuaram subindo. È difícil porque é muito simples, disse a
artista-plástica- cantora Leonora Weissman na TV Cultura. Do meu secreto
observatório bem acima do chão, aquela chuvinha fininha e retinha, que caia sem
ruído, em um silêncio surdo e abismal, me encantava como se fora a neve. A
visão das gotas perpassadas pela luz trêmula e branca me trouxe um êxtase
libidinoso. Algum tempo depois debruçado na janela do mesmo bureau nas alturas,
estou completamente estabilizado, meu estabilizador chama-se Eternity. Pergunto
a mim mesmo: pra quê outro estabilizador? Não me respondo. Continuei a procura
daquela ilusão perdida naquela tarde de Domingo sem o Cantus Firmus de Bach.
Agora estou aqui sentado escrevendo e dois helicópteros da polícia chegaram tão
perto que quase entraram no meu esconderijo. Ou erraram o trajeto, ou estão me
observando. O fato é que eu os observo muito bem. Linguagem é o nome do filme
que todos deveriam ver na tela grande. O cinema serve para mostrar o que a
gente não vê. Sigamos sem teorias paranoicas e desviantes. Naquela outra manhã
acordei com os Otomanos na cabeça. Fiquei meio invocado. O quê o Império
Muçulmano tinha a ver com a bela Terça-feira, onde vários afazeres chatinhos me
aguardavam? Nada é claro. Cheguei à conclusão através de uma louca analogia,
que o otomano, me veio sonoramente porque na noite anterior ficamos falando de
otorrino. Realmente uma viagem na maionese enquanto me preparava para sair.
Encontrei o que anotei num papel pautado para usar de epígrafe em um filme que
ainda vou fazer, não sei mais de quem é a quadra, visto que escrevi ao lado os
nomes do Machado de Assis e do Ruben Dário, aí vai: jamais ficou comprovado que
aqui habitam fantasmas. Entretanto eles circulam mesmo sem comprovação. Na
sequência uma argumentação sobre o filme em questão. – Estamos diante do
problema das chaves (...). A aula de como se usa o Xilon (deve ser estudada). A
junção dela com o discípulo é o X da questão. A cenografia dos interiores feita
em estúdio deve ser ultra- carnavalesca- radical, feita pelo arquiteto Éolo
Maia (mosteiro com diversos tipos de cômodos, longos corredores com grandes
portas, Laboratório alquímico e uma caverna labiríntica). Zózimo (Guará agora
Otávio III) fazendo experimentos no seu laboratório e ensinando durante os
sonhos a seu discípulo, definindo seu potencial violento. O problema se acirra
com a insônia que persegue Marion (João Velho). Louco para dormir e receber o
mestre em sonho, pouco a pouco encontra mais dificuldades para buscar o sono, o
que o leva a ter surtos de extrema irritação agravados pelo uso contínuo de
drogas pesadas e do sexo desvairado. As sequências a serem roteirizadas devem
levar intransigentemente em conta as locações, a cenografia e antes de tudo a
relação desenvolvida dos atores dentro do quadro na proposição do movimento não
natural. Elemental. Nessa procura da não verbalização dos acontecimentos, e sim
de sua visualização. Recorreremos ao simbolismo presente na improbabilidade dos
figurinos e nas caracterizações dessas personagens (como barba, bigode e
cabelos) que devem conduzir a ação da maneira mais realista possível de forma
ralentada e quase didática. Expressionista. Mais uma frase bastante
interessante estava anotada no fim da página. Novamente não sei mais de onde a
tirei. Oh Virgem Maria, que conceber sem pecar, permita que eu peque sem
conceber... O conhecedor Mário Alves Coutinho escreveu sobre o mestre de todas
as gerações Jean Luc: Godard procura o definitivo por acaso. É certo que
prestei mais atenção no meu trajeto diário, já faz quase dois meses, do bairro
da Serra até a região central de BH. Como sempre, não sei bem porque, elegi um
mesmo caminho em zigue-zague que percorro a pé todos os dias pela manhã. Não
passo de um metódico. Nele desço a Avenida Afonso Pena até a Praça Tiradentes
onde quebro a esquerda na sombra pela Rua dos Aimorés e chego pela frente a Igreja
da Boa viagem, por onde subo pela rampa principal e atravesso a grande porta de
madeira antiga que dá no altar, até o maravilhoso jardim lateral, com enormes e
frondosos Fícus ameaçados pela praga e pela idade de mais cem anos. Defronte a
mais bela destas árvores, invariavelmente sentado no banco da alameda, um padre
de batina marrom, muito parecido com o Guignard, com os olhos fechados, as mãos
cruzadas envolvendo a barriga e uma bengala deitada sobre as coxas. De inicio
achava que ele ficava ali rezando, hoje tenho quase certeza que ele tira é um
cochilo esperto. Sem dúvidas um quadro parado tirado dos filmes do Luís Buñuel.
Saio pela Rua dos Timbiras e na esquina com Sergipe, exatamente embaixo da
placa como um sentinela, o senhor negro de cabelos e bigodes brancos, numa
cadeira de rodas, sempre com camisas sociais muito bem passadas e engomadas.
Trocamos todo dia um bom dia. Subo pela Rua dos Guajajaras até encontrar a Rua
da Bahia que desço meio quarteirão e entro na galeria do mítico edifício Arcangelo
Maleta, passo pelos bares e saio pela porta principal, já na Avenida Augusto de
Lima. Por vezes retomo a Rua dos Guajajaras e desço direto ao meu destino, em
outras sigo pela Avenida até o Bar Banzai, onde tomo um café amargo com o gordo
dono da loja de tintas, fazendo a resenha do futebol. Quando vou por aí, ainda
passo por dentro do Mercado Central. Como se vê um verdadeiro périplo. Dê
Lírios. Como prestei mais atenção dessa vez, percebi que atravessava vários
portais todo dia e me voltou o sintoma da minha velha doença, velho! Apesar de
ter jurado a mim mesmo e prometido aos meus comparsas mais constantes, que
nunca mais faria nenhum trabalho, sem antes arranjar as condições para tal,
pensei em um filme para ser realizado imediatamente. Bastava arrumar uma
mini-câmera e filmar uns três planos sequencia do meu caminho diário e montar
tirando a continuidade das ações. Cheguei entusiasmado com a ideia, ia
documentar meu trajeto. Em seguida olhando pela janela, achei isto tudo uma
descarada bobagem, nada original, o que mais se tem feito por aí, são esses
documentários subjetivos, uma tremenda egolatria. Ademais todo caminho é
interessante, não seria o meu que teria alguma onda mais que os outros. Mudei
de direção e fui fazer uma coisa que nunca tinha feito na vida, comprar
talheres. Quando muito raramente vou comprar algo, só me interesso por
promoções. Nessa busca, andando pela Rua dos Caetés, vejo o que procurava e
entro na loja, quando vem vindo lá do fundo uma mulher negra belíssima, rindo
para mim, era ela a vendedora. Mais alta que eu, com os cabelos cacheados e
cheios aumentando sua altitude, olhos rasgados cor de cobra e dentes
branquíssimos contornados pelos lábios desenhados, além de um corpo escultural.
Não me lembrava de ter visto tanta beleza exuberante, reunida numa pessoa só.
Como mágica descobri a nova onda daquele filme. Então, como estou sentado no
sofá e só vejo o céu e as nuvens, dei inicio a mais essa viagem inconsequente.
Ela seria da seguinte forma: a vendedora vestida com um pano trabalhado
enrolado pelo corpo vive o contra plano do caminho que eu faço, agora filmada
de frente por um fotógrafo steadicam, ou seja, ela seria eu, a minha
personagem. Depois na montagem, as imagens da mini câmera seriam a subjetiva
dela/eu. Seguindo ela sobe num elevador antigo, anda por longos corredores, até
chegar de frente uma porta de correr, onde toca a campainha. A atriz Michelle,
no vestido que ela usou no lançamento do filme do Éder em Sampa, abre a porta e
a recebe com um abraço e um beijo na boca, lânguido, romântico e apaixonado.
Câmera lenta ou música de câmara. Lá dentro tomam champanhe, enquanto a
personagem da Michelle prepara uma Guacamole para o jantar à luz de velas. Tudo
termina com uma noite de amor entre as duas, que não é mostrada. Enfim uma
chuva forte limpou a tela seca e poluída, veio em ficção. Ainda
inventei estes dois títulos esdrúxulos: No Centro do Bureau Secreto e A Língua
Roxa da Cantora. Pode ser que o segundo não sirva para esse filme, mas há de
encontrar o seu. O cineasta David Neves escreveu: Paulo Emílio Sales Gomes
colocou bem essa definição (por via de comparação com o teatro) do que vem a
ser o cinema: a aflitiva tranquilidade das coisas definitivamente organizadas.
Voltando ao meu umbigo, talvez por ter escrito mais esse experimento
absolutamente desnecessário, consiga escapar de ter que filmá-lo.
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