para sempre amador
Marcelo Ykeda
"ser livre é muitas vezes ser só" W.H. Aude
"ser livre é muitas vezes ser só" W.H. Aude
Parece que fomos criados
para tentarmos ser grandes blocos de concreto. Um bloco de concreto. Imponente,
extenso, sólido, muito difícil de derrubar. Que se vê ao longe e se impõe na
paisagem. Mas prefiro ser uma pluma. A um sopro mais forte ela pode se
desmanchar no ar. Frágil, quase passa despercebida. Porém leve, flexível, está
sempre em movimento. Sem massa, é difícil destruí-la com uma arma de fogo, com
um soco, com choque elétrico. O vento a leva meio sem direção. Sua virtude está
exatamente em sua fragilidade; em sua leveza e na sua agilidade. O cinema livre
me ensinou que prefiro tentar ser essa pluma do que esse bloco de concreto.
* * *
O
que eu queria mesmo é poder sair esta noite, abraçar as estrelas, arremessar-me
no mar, molhar o corpo, rir muito, tirar a roupa, andar nu, cair nos seus
braços e dizer eu te amo. Mas o que na verdade faço é apenas observar os
outros, um pouco de longe, dentro do meu casulo. Foi assim que descobri o
cinema, como voyeur de minha própria vida. Como Tomek, o menininho de Não
Amarás. Se não consigo me atirar no mar, fico então aqui dentro da minha
confortável casa arremessando garrafas ao mar. Dentro dessas garrafas há
bilhetinhos que falam de mim: cada palavra, cada plano, cada gesto, vocês podem
ter certeza de que são feitos num esforço imenso em que eu procuro me colocar
inteiro, nessa tamanha possibilidade de eu ser eu mesmo. Essa possibilidade
grave que me arrepia até a espinha, que me faz abrir a escotilha do meu barco à
vela sem velas. E que é de onde eu vejo o mundo, e vejo você, rodopiando com
sua saia de havaiana, requebrando os quadris. Queria estar com você mais de
perto e dizer eu te amo. Mas não consigo me aproximar, pois há tanta coisa
entre mim e você. Como você poderia se interessar por mim? O que eu poderia te
dizer? E, além disso, eu não sei dançar. Então jogo mais uma garrafa, com a
esperança de que ela possa chegar até você, e que você seja de alguma forma
afetada por esse gesto.
Para
mim, o cinema é isso. Nada mais. Uma vez, uns amigos que eu tinha me disseram
que no início faziam filmes como se fossem cinéfilos, para entender melhor os
filmes que tinham visto. E que agora, superada essa primeira etapa, percebiam
que deveriam passar a fazer filmes como realizadores. Antes eles eram amadores;
agora, são profissionais. Exatamente! O meu desejo (a minha opção) é ser para
sempre amador. Não quero me tornar profissional. Não quero aprender como se faz
um filme, não quero me tornar um cineasta. Quero apenas jogar esse bilhetinho
no mar, quero apenas ter essa possibilidade de dizer eu te amo, quero apenas te
dar um presente sem ter que esperar nada em troca. Não penso no público, não
penso nos discursos de agradecimento, não penso na minha carreira, não penso
com quem devo convenientemente me casar, não meço as minhas palavras nem meus
planos para aumentar meu "networking", ou seja, não penso como um
realizador. Penso apenas como posso me colocar da maneira mais honesta nesse filme
que não faço a menor ideia do que possa ser. Não quero amadurecer. Não quero
ser grande. Com o tempo, fui me afastando desses meus grandes amigos que eram
amadores e que agora são cineastas profissionais premiados, estabelecidos nesse
nosso "(proto)mercado-do-cinema-de-arte". Eles agora moram longe, bem
longe de mim. E eu continuo aqui na minha casa com essa escotilhazinha aberta.
Continuo sozinho, costurando à mão cada um dos planos que não sei fazer, sem
filtros, sem color correction, sem ilha fire, sem mixagem, sem protools. Minha
precariedade não me orgulha, mas é o que tenho, é o que sou. Nesse mundo
pautado pela eficiência e pela competitividade, vou guiando o meu barquinho de
papel (vou sendo guiado), vou remando solitário, dando voltas em torno do meu
casulo. Continuo teimando. Daqui de dentro, vejo as pessoas se amando, e às
vezes doi. Às vezes preciso de ajuda, me sinto frágil, como se eu fosse um
velhinho anacrônico, que vê a vida passar pela janela. Mas isso é o que querem
me fazer acreditar. A minha loucura é que, mesmo com todos os meus limites,
minha paralisia, meu anacronismo, minhas verrugas, minhas cicatrizes, minha
dificuldade motora, eu continuo teimando em sobreviver, eu continuo teimando em
deixar aquela escotilha aberta, e de lá fico jogando bilhetes e bilhetes em
garrafas, porque vejo um grande mar que me afeta. Não sou espectador de minha
própria vida, eu a faço: esta minha solidão não é fuga do mundo, mas um gesto
de encontro, é opção que me faz. Porque sou intensamente afetado pelo mundo. Mesmo
de longe, vou vivendo e interagindo com o que vejo. Mesmo que o meu amor não
seja correspondido, eu continuo amando, tanto quanto antes. Não é a minha
vingança, é a minha única forma possível de sobreviver. Como um navegante
amador. Para sempre amador.
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