MEMÓRIAS DAS SOMBRAS
Paulo Laender
(Sobre Farnese de Andrade em 2002)
A primorosa edição do livro Farnese de Andrade,
com texto do crítico Rodrigo Naves e a inclusão do DVD Farnese, registro
cinematográfico realizado sobre o artista e sua obra por Olívio Tavares de
Araujo em 1971, vem fazer justiça e resgatar a obra de um dos mais instigantes,
criativos e emblemáticos artistas brasileiros.Morto há seis anos, em julho de
1996, esse aluno de Guignard, contemporâneo de Maria Helena Andrés, Marília
Giannetti, Nelly Frade, Chanina e Amilcar de Castro, Yara Tupynambá, entre
tantos daquela profícua leva da Escola do Parque Municipal, em Belo Horizonte,
não alcançou em vida a dimensão do reconhecimento devido.
Avesso a todo tipo de mundanismo e ao convívio
social mais amplo que o círculo das amizades próximas, mergulhado nas
intrincâncias do seu universo pessoal, Farnese não cultivou, sequer se
preocupou com questões de mercado, assuntos de marketing ou mídia.
Na prioridade da sua criação, na necessidade da
expressão dos seus anseios, e talvez mesmo pelo seu recato e natureza reclusa,
esses assuntos não lhe significaram importância.
Nascido em Araguari em 1926, oriundo de uma
família de dez filhos, típica do interior de Minas ( o pai tabelião e a mãe,
que, além dos afazeres domésticos, cultivava o ofício da confecção de flores
para grinaldas e buquês ), Farnese teve uma infância marcada pelo episódio da
morte de dois irmãos mais velhos, que não chegou a conhecer, vitimados por uma
enchente.
Sobre ele e a família pesava essa perda, essa
tragédia particular. A memória desse universo familiar, a solidão e o
sofrimento pessoal agravado por uma tuberculose contraída por volta de 1944,
quando mudara para Belo Horizonte, e cuja cura definitiva só alcançaria em
1949, já então residindo no Rio de Janeiro, iriam marcar definitivamente sua
vida e obra, principalmente seus objetos e esculturas, testemunhas reveladoras
das lembranças e tormentos recônditos.
Farnese teve sua formação inicial em desenho com
Guignard, em Belo Horizonte, a partir de 1945. No período que se segue, e após
a cura da sua doença, até 1960 trabalha no Rio de Janeiro, como ilustrador de
inúmeros jornais e revistas.
Realiza suas primeiras exposições de desenhos e
participa de salões de arte. Em 1961, inicia seu aprendizado de gravura em
metal com Johnny Friedlander e Rossini Peres, no ateliê do MAM do Rio de
Janeiro.
Quando o conheci, por volta de 1963, habitava uma
quitinete em Botafogo, na rua da Passagem , dividindo ase pequeno espaço com
sua prensa de gravura e as bacias de ácido. Ainda trabalhava durante o dia, se
não me engano nos correios, e passava as noites imerso na magia desse pequeno
ateliê, gravando e imprimindo suas chapas. É dessa época a série das “gravuras
negras”, gravações em relevo profundo recobertas por uma aguatinta geral que lhes conferia, na negritude da
impressão final, mistério e preciosidade. Essa série vibrante, reveladora já da
sombra que sua alma artística expressaria cada vez com mais contundência, me
impressionou tão fortemente então que confesso, até hoje, ao lidar com a
gravura em metal, volta e meia tais referências brotam das minhas chapas, como
que identificação e parentesco dessa natureza barroca inevitável que paira
sobre os mineiros.
A essa época também Farnese já coletava seus
primeiros “lixos”, objetos que amontoava em um canto desse pequeno mundo onde
habitava.
A praia de Botafogo, após o aterro, reconstruída
com a areia revolvida e lançada pelas dragas na nova orla, lhe oferecia, a cada
maré, elementos e achados com os quais ia formando “uma memória encontrada”.
Passaria, a partir de então, a compor seus primeiros objetos.
Lembro-me dele contando, com humor, que durante
suas caminhadas de garimpo pela praia , com uma sacola na qual depositava seus
achados, a turma do futebol, que ali se reunia, o apelidara, carinhosamente de
“ O Cata-lixo Barbudo”.
Pouco tempo depois, em 1965, voltei para Belo
Horizonte para cursar a Escola de Arquitetura, mas ainda mantive encontros
esporádicos com Farnese, quando das minhas idas ao Rio de Janeiro ou mesmo em
exposições que por lá realizei. Trocamos alguns trabalhos e posso afirmar, com
saudosa lembrança, que mantivemos admiração e respeito mútuos em todos os
nossos encontros recheados da instigante conversa, diria quase fantástica, daquele
mago.
Em 1996 Farnese volta pela última vez a Belo
Horizonte para uma exposição na Pace Arte Galeria, vindo a morrer pouco tempo
depois, a 18 de julho daquele ano, de edema pulmonar.
Contados de forma resumida e entrecortada, na
urgência desse pequeno texto, esses episódios não espelham a extensão da vidas
de um artista como Farnese, a grandiosidade da sua existência. Se o faço é
apenas com o intuito de sinalizar algumas datas que localizaram nossos
encontros ou momentos, a meu ver, significativos da sua vida artística e, por
tal desrespeito, peço perdão. Poucos artistas brasileiros foram capazes de
efetuar o “mergulho” com a profundidade com que ele o fez. Esse retorno na
memória aos acontecimentos marcantes de uma infância perdida em Araguari, o
estigma da doença, a consciência da presença da morte trazem a marca sofrida
dos grandes artistas que, de volta a sua”Macondo”, organizam e nos revelam os
arcanos comuns e universais que compõem a tragédia humana.
Farnese era o artista da composição e associação
dos objetos encontrados na areia da praia de Botafogo,ou no lixo de Barcelona,
cidade que habitou durante algum tempo e da qual dizia possuir o lixo mais
precioso do mundo, das fotos antigas herdada do tio fotógrafo, das gamelas e
das peças adquiridas em antiquários montou sua obra.
Essa forma de expressão que ele, na sua releitura
renovou e consolidou na arte brasileira.
O objeto veio se fixar, definitivamente, como um
segmento autônomo e próprio da nossa criação contemporânea. Próxima, pela sua metáfora
e resíduo memorial, do sentimento dos mineiros foi, entre artistas , da minha e
subsequente geração, que o objeto se estabeleceu como meio característico e
importante.
Somada à obra de Celso Renato de Lima, outro
mineiro que soube lidar com os achados, se bem que numa outra temática, Farnese veio, com seu
trabalho carregado de história e significado, instigar e referenciar artistas
como Marcio Sampaio, Fernando Lucchesi, Marcos Coelho Benjamim, José Bento, Léo
Maciel, entre muitos aqui em Minas.
A emoção entre montanhas se faz tridimensional,
ouso afirmar, e, dentro da nossa experiência com o lidar escultórico, sempre
nos detivemos em duas possibilidades ou níveis da realização volumétrica: o
objeto e a escultura. Ao pensar a origem e o significado dessas
manifestações,ambas frequentemente encontráveis num mesmo realizador, chegamos
à conclusão de ser, cada uma delas, reflexo de um universo determinado: o
objeto, pela sua característica íntima, subjetiva, misteriosa, sacralizada em
caixas, busca o inconsciente de quem o faz. Realiza-se e se suporta no mergulho
interior, através da memória, atravessando os véus que delimitam os diferentes
estágios desse retorno ao cerne. É processo doloroso, vital para o
autoconhecimento e base para a história pessoal do artista, revelador de
demônios, sofrimento e, às vezes, nem sempre, consegue atingir o “lótus”, a luz
por trás de todos os véus.
Através das
obras assim surgidas o artista estabelece linguagens, ponte, parentescos,
identifica falanges afins que lhe possibilitarão melhor localizar-se no mundo.
A escultura, por sua vez, coloca-se em nível
externo, abrangente, universal. Busca formas que possibilitem uma identidade
coletiva. O escultor produz ícones, arquétipos cuja qualidade mítica poderá
inserí-los no inconsciente coletivo, transformando-os em símbolos universais.
Sua natureza, portanto, menos pessoal ou subjetiva, espelha síntese, busca a
identificação ampla e imediata, o espaço, a grande escala, por vezes o
monumental.
Farnese com sua compulsão coletora e sua ordenação
de conjuntos, elaborou uma farta e requintada linguagem para a sua história
através do objeto.
Sua obra, executada com primor de acabamento,
exuberância técnica, virtuosismo e limpeza, consolidou essa vertente induzindo,
influenciando, sugerindo a tantos artista e àqueles que o compreenderam e
admiram retornar às suas origens, contar suas histórias, revistar seus quintais
de infância, encontrar seus demônios, seus santos, suas dores, suas alegrias
seu sagrado, seu profano e, na dualidade dessas emoções, adensar, aprofundar,
enriquecer, de significados sua própria arte ou existência.
“Não tenham medo de ir muito longe…Para ser atual
não precisam macaquear as modas espúrias:escutem as vozes de nossa tradição, se
abeberem nas raízes”, disse Guimarães Rosa e tanto o fez Farnese em obra que,
infeliz e tardiamente, o mercado, colecionadores e público começam a avaliar e
compreender, na sua extensão devida, mas que, nem por isso, perdeu qualquer
força, pelo contrário, cresce a cada dia como a imagem da memória que, ao
distanciar-se no tempo, depura o poder do significado.
(Paulo Laender - arquiteto/escultor/designer)-(
escrito em julho de 2002 revisado em abril de 2016)
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