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sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

VISÃO HISTÓRICA


Três séculos
Por Orlando Senna

Tenho a sensação e o espanto de que vivi os séculos 19 e 20 e estou vivendo este surpreendente e perigoso século 21. Essa suposta mágica do tempo não tem nada a ver com longevidade, com os mitos bíblicos de Matusalém e Noé (tenho apenas 75 anos), mas sim com circunstâncias históricas e geográficas. Na infância minha vida transcorreu em um mundo rural: em uma fazenda e em uma pequena cidade do interior baiano. As atividades da fazenda eram criatório de gado bovino e pequenas manufaturas. Não havia eletricidade, rádio, automóveis, nada dessas “modernidades” que já estavam em uso em outros lugares. A locomoção era feita em cavalos, carroças e carros de boi e o pensamento e comportamento se remetiam a 50 anos atrás. Era, em tudo e por tudo, uma extensão do século 19.
A pequena cidade, que tinha conhecido um esplendor econômico no passado com extração de diamantes, estava decadente, debilitada, sem rumo e sem futuro nas décadas 1940 e 1950 devido a uma severa diminuição das pedras preciosas em seu solo e subsolo. Uma comunidade isolada, esquecida pelo resto do mundo. Ou seja, parecia que também estava parada no tempo, com suas lembranças, suas saudades da monarquia e da escravidão, seus costumes ultrapassados, os tabus impedindo o desenvolvimento mental dos jovens, meu avô abismado com as garrafas de água mineral: “comprar água é o começo do fim do mundo”. Só parecia, pura aparência porque dois elementos básicos do século 20 já estavam presentes: eletricidade e cinema.
A eletricidade graças a um pequeno gerador movido a água, alimentado por um tanque, que fornecia luz elétrica para as ruas e metade das casas das seis da tarde às dez da noite, quando os rádios funcionavam. Luz amarela e fraca, luminosidade semelhante aos candeeiros domésticos. E o cinema graças à visão empreendedora de um empresário local, que também abriu outras salas de exibição nas cidades vizinhas, os filmes eram transportados entre elas em lombo de burro. E também havia uns poucos automóveis e caminhões, tão poucos que a criançada e os cachorros corriam gritando e latindo atrás deles quando algum aparecia. Entre as famílias de classe média a referência cultural era a França, mesmo depois da Segunda Guerra e com os filmes dos Estados Unidos sendo exibidos no cinema.
As luzes
Nós, os meninos e as meninas, sabíamos que já se vivia outro tempo na capital da Bahia, no Rio de Janeiro e nas fascinantes cidades mostradas no cinema e tão faladas no rádio e nos raros jornais e revistas que apareciam naquele fim de mundo. Também porque alguns garotos mais velhos estudavam na capital e nos contavam coisas de arrepiar os cabelos e fazer sonhar. Também porque ouvíamos dos adultos que aquele lugar era “atrasado e ignorante”. Minha meta, e também a de alguns amiguinhos, era conhecer o mundo e o caminho para isso era ir estudar na capital. Aos 12 anos de idade fui estudar em Salvador da Bahia e me deparei com o século 20, que já ia pela metade mas para mim era uma iluminada novidade. Iluminada é bem a palavra, já que meu assombro maior foi as lâmpadas elétricas deixando a noite clara como o dia. 
Em um piscar de olhos, cruzei pontes entre Freud e Lacan, entre Marx e Sartre, entre Pasteur e Einstein & Stephen Hawking. Entre Beethoven e Villa-Lobos, entre valsas e polcas e Tom Jobim, Roberto Carlos, Tropicalia, Elvis, Beatles. Tinha vivido na infância a sociedade patriarcal, o privilégio absoluto do masculino sobre o feminino, o romantismo eurolatino. Ao ganhar o mundo, me inseri na segunda metade do século 20 como se fosse um século inteiro, com suas guerras capitalismo versus socialismo, ascensão econômica e bélica dos Estados Unidos sobre todas as nações, urbanização, industrialização, o homem na Lua, direitos humanos, drogas, a espiritualidade independizando-se das religiões, o crescimento do poder da mídia. Vivi suas mudanças radicais de comportamento, suas revoluções culturais, o risco de vida e o charme embriagador das suas décadas de 60 e 70.
Máquinas inteligentes
E entrei no século 21 e no terceiro milênio. Aconteceu exatamente no dia 11 de setembro de 2001. A guerra, característica tormentosa da espécie humana, estivera bem presente nos meus dois séculos já vividos, mas naquele dia apresentou um novo formato (causar medo ininterrupto nas pessoas, estejam onde estiverem) e um novo tipo de poder de fogo ao atingir a grande potência, material e simbolicamente, em seus órgãos vitais: o poder econômico (as Torres Gêmeas em Nova York) e o poder bélico (o Pentágono). E estabeleceu-se mundialmente a Guerra ao Terror, segundo o Ocidente, ou a Guerra Santa, segundo os combatentes radicais do mundo islâmico. A lembrar que os islâmicos são quase dois bilhões de almas, quase um quinto da humanidade. 
As guerras ideológicas do século 20 mataram cerca de cem milhões de pessoas, três vezes mais do que a soma de mortos de todas as guerras desde o nascimento de Cristo. A guerra étnica-cultural-religiosa que se expande agora pelo planeta pode ir bem além na carnificina. E pode emendar com uma guerra total pela água e até por um conflito generalizado pelo controle da comunicação e chegaremos à perfeição da guerra: todos contra todos. O cenário é um planeta em mutação geológica e uma crise civilizatória degenerativa. E dizer que o que eu esperava, em minha santa ingenuidade, era uma Revolução Ontológica que, graças às novas tecnologias, abriria as portas da sabedoria, solidariedade, cooperação e paz.

O outro lado da moeda é justamente o espantoso avanço científico e comunicacional e os novos parâmetros comportamentais gerados pela cibernética. Ainda nos cueiros, o século já estava sendo apelidado Era do Conhecimento. Em que direção vamos seguir não é uma decisão das máquinas, mesmo ditas inteligentes: um drone pode destruir coisas e matar pessoas e também evitar danos e salvar pessoas e ser um instrumento de evolução das artes (cinema por exemplo), do transporte, do meio ambiente. Quem define seu uso é o ser humano, uma frase à qual muita gente reagiria com um “então estamos perdidos”. Talvez sim, talvez não. Não sabemos, nos resta a fé, essa crença sem provas que acompanha o bicho homem desde quando existe. E nos resta a militância para construir essas provas, a ação individual para reinventar o futuro.

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